O Sistema Único de Assistência Social (Suas) brasileiro passa por um processo de desmonte “dramático e violento”, deixando sob ameaça anos de trabalho baseado na noção de direitos – e não de ajuda –, na atenção às populações vulneráveis, conforme estabelece a Constituição de 1988. Os ataques configuram-se, por exemplo, pelo fechamento dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) por todo o país; pelo esvaziamento do papel dos municípios no cadastramento de novos beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família, para centralizar esse processo na instância federal; e na busca por se substituir o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) – porta de entrada humanizada na Assistência – pelo autocadastramento dos beneficiários via aplicativo para celular (hoje, as famílias são incluídas nos programas a partir dos Cras e unidades de saúde, entre outros equipamentos públicos).
Eliane Bardanachvili, Fiocruz, 10 de março de 2021
Esses são apenas alguns sinais de cenário mais amplo de desorganização, pelo atual governo, de toda a estrutura da Proteção Social do país, conforme analisam em encontro virtual realizado pelo blog do CEE-Fiocruz, em 26/02/2021,a ex-ministra da Assistência Social e Combate à Fome do governo Dilma Rousseff (2011-2016), Tereza Campello, e as pesquisadoras Sonia Fleury (CEE-Fiocruz), que conduziu o debate, Lenaura Lobato e Monica Senna (Universidade Federal Fluminense) – as três, integrantes do grupo de pesquisa Futuros da proteção social, do Centro.
A Assistência Social é um dos tripés da Seguridade Social – ao lado da Saúde e da Previdência –, conforme define a Constituição de 1988, conformando-se como um sistema único, descentralizado e participativo. Desse tripé, é a política pública mais jovem: o Suas foi instituído em 2005 (Resolução 130 do Conselho Nacional de Assistência Social), reorganizando a política de assistência social do país e articulando ações e recursos da União, estados e municípios, dentro do pacto federativo, voltados a atender os mais pobres.
“A assistência social entendida como política pública organizada é algo recente. Está na Constituição de 1988 como parte da Seguridade e como direito universal, mas o Sistema Único de Assistência Social passa a existir a partir dos anos 2000, para organizar uma política de cuidados, uma rede de proteção que vinha se universalizando”, esclarece Tereza Campello. A pasta da qual esteve à frente, é, hoje, na estrutura do atual governo, uma secretaria inserida no Ministério da Cidadania.
Como observa a ex-ministra, é importante pensar a proteção social de forma integrada, em vez de se olhar, separadamente, para a Saúde, para a Previdência ou para a Assistência. “Quando se discute o desmonte, talvez fique pouco evidente que se trata do desmonte de todo o sistema de proteção social; está se desorganizando o sistema todo”, considera, destacando que não se trata apenas do desmonte em aspectos mensuráveis, como a redução em 67% dos recursos de serviços assistenciais do Suas, em 2020. Há também aspectos “intangíveis”, como a desorganização de coordenações, a já citada centralização de ações na União, desrespeitando o pacto federativo, a quebra da “delicadeza” do processo de integração entre Assistência Social e Saúde, algo construído no dia a dia, envolvendo mudança de cultura e integração de equipes. “Quando se fala no Sistema Único de Assistência Social, está se falando de organizar todo um trabalho de acolhimento voltado à família; de um conjunto de políticas que se somam, relacionadas a prevenção à violência, a abandono, a população de rua, a criança em trabalho infantil, a idosos em situação de abandono”, descreve Tereza.
“Estamos em um momento dramático, não só por conta da crise sanitária, mas da crise econômica, da crise social e da crise política – e o governo, em vez de enfrentar essas situações, se aproveita da crise, tira vantagem, para acelerar o processo de desconstrução”, aponta, referindo-se, entre outros fatos, ao ocorrido na semana da entrevista, de tentativa de condicionar, em uma emenda constitucional, a aprovação do Auxílio Emergencial ao fim do piso para a Saúde e para a Educação. “Uma mostra de que não existe limite para o oportunismo e para acelerar uma agenda de desconstrução do Estado de bem estar social no Brasil”.
Como contabiliza a ex-ministra, o auxílio emergencial de em média R$ 250, por quatro meses, como anunciado pelo governo, resulta em um total de 30 bilhões, mas, para os que já recebem o Bolsa Família, representa um acréscimo de apenas R$ 60. Ela lembra que a taxa de desemprego do país está em mais de 20%, considerando-se “o desemprego aberto e o desemprego oculto”, isto é,14 milhões de desempregados “assumidos”, e mais de 10 milhões sem trabalho, que não estão procurando emprego mas gostariam de trabalhar. “Fora os 29% da população em subocupações, ganhando menos que o mínimo razoável para sobreviver”, acrescenta Tereza, lembrando, ainda, do abandono escolar decorrente da pandemia, que chegou “a números que não víamos desde a década de 80”, deixando, entre outras consequências, as crianças sem merenda escolar e sem acesso à internet para aulas remotas. “Com a pandemia, as desproteções que já existiam se sobrepõem. É exatamente neste momento que mais se precisa da área que garante o mínimo de proteção, que é a Assistência Social. A pobreza é multidimensional – quem é pobre de dinheiro, é pobre de falta de água, saneamento, energia”.
Com a organização da assistência social como sistema, a partir de 2005, explica Tereza, o governo passou a cofinanciar a rede de assistência, com a participação dos estados e dos municípios, que passaram a se organizar com equipamentos específicos, os Cras, para onde se dirigem as famílias em situação de vulnerabilidade. “Quem é classe média nem conhece os Cras, que, em geral, estão nas periferias”, observa, lembrando que o sistema de assistência social acaba cumprindo o papel de porta de entrada para outras políticas públicas. As famílias, ao buscarem o Cras para passar a receber o Bolsa Família, preenchem o Cadastro Único, no qual registram um conjunto de informações que passam a orientar as ações dos gestores, de modo a atender as demandas ali registradas. “O Cadastro Único faz com que acabemos conhecendo aquela família. quem são as pessoas que estão lá, como é a casa onde moram, como é o piso, como é o teto, se tem água ou não, saneamento ou não, se pagam aluguel, se há idosos morando ali. Isso é de uma riqueza importantíssima. Com esse conjunto de informações, é possível organizar e ofertar política pública para essa população, como é o caso da Minha Casa Minha Vida, como é o caso do Pronatec e outros serviços”, diz a ex-ministra, que participou da criação do Bolsa Família.
Tereza alerta que toda essa rede está sendo desmontada. “Não houve só corte de dinheiro da assistência social. O cadastro único está sendo completamente desqualificado, a rede de assistência social está fechando. Em uma parte grande dos municípios, os Cras ou estão fechados ou trabalhando já a meio turno, e com isso, toda essa organização do sistema está indo por água abaixo”.
Para a professora e pesquisadora Lenaura Lobato, o Sistema Único de Assistência Social representa uma “revolução” em termos de proteção social no Brasil. “Não existe, até onde eu saiba, ou até onde nossos estudos apontam, uma estrutura como a do Suas”, afirma. Ela destaca a quebra de paradigmas e de “concepções históricas” que viam a assistência em uma perspectiva assistencialista. “O Suas rompe com essa noção e se organiza como política pública e como sistema nacional, com uma concepção de prestação de serviços por uma estrutura impressionante, presente praticamente no país inteiro, em suas dimensões continentais, ainda com precariedades, mas consolidada”.
Lenaura identifica, no processo de desmonte do sistema, a busca pela redução do Estado, e pela desconstrução do Estado de bem estar social, para se priorizarem aspectos fiscais, de controle de contas. “Há uma reorientação de como o Estado deve tratar as populações vulneráveis e tradicionais, com programas de perfil controlador e ultraconservador”. Para Lenaura, existe uma nova condução, "ainda quede forma atabalhoada” e pouco explícita, dos programas de assistência nesse sentido. “Não é uma mudança exatamente liberal, mas de fundo conservador, que está por trás de tudo isso”.
Tereza Campello observa que, como o sistema de Assistência Social é relativamente recente, em seu processo de construção convivem ainda o antigo com o novo, com valores em disputa. “A antiga assistência, que chamamos de assistencialismo, continua funcionando em muitos lugares. São 5.570 municípios no Brasil. Alguns atuam na área de assistência social como na década de 40 e outros, implantando um Suas completamente profissional, com gente formada, equipes multidisciplinares, protocolos de atendimento”, analisa. “Há a antiga ideia de ajudar o pobre, a pessoa coitadinha, que leva à ideia do voluntário, da madame, do eu sou rica, vou distribuir sopa, ajudar no fim de semana. E há o que a Constituição trouxe, organizada pelo Suas, que é a ideia do direito. O conceito de proteção social é baseado no direito, o direito do cidadão de ter acesso à assistência social pública e universal”.
A ex-ministra lembra que Assistência e Saúde vinham trabalhando juntas, com equipes mistas que saíam, por exemplo, para cuidar das populações de rua, ou atuar na atenção a usuários de álcool e outras drogas, uma revolução “silenciosa”, que “não deveria ter sido tão silenciosa assim”, conforme observa. “Tudo isso está em um processo de desorganização dramático e violento”, alerta.
Mônica Senna destaca a importância de o Suas reconhecer seus usuários como sujeitos de direitos e a preocupação com “o que fomos, o que poderíamos ser e o que estamos nos tornando”. Ela analisa o caminho que vem tomando o CadÚnico, idealizado para ser um instrumento de inclusão social, orientado pelo lema Conhecer para incluir, e que agora corre o risco de ser substituído por um autocadastramento via aplicativo de celular – na forma como se deu com o Auxílio Emergencial. “O mote conhecer para Incluir aponta para um avanço significativo da inclusão da população em um conjunto amplo de serviços, benefícios, programas, com reconhecimento de seus direitos sociais, a exemplo do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada, só para citar alguns”.
Ela lembra que, inicialmente, chegou a haver uma discussão quanto à possibilidade de o CadÚnico representar, em vez de uma forma de inclusão, um instrumento de controle das populações pobres. O cadastro contém informações sigilosas de mais de 77 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade social e pobreza. “Essa preocupação estava associada à forma histórica como a pobreza vinha sendo tratada. Mas, aos poucos, sobretudo a partir da Era Suas, isso foi mudando”, explica, alertando, no entanto, que essa “lógica do controle” pode ser uma ameaça, hoje.
“Essa proposta do atual governo de informatização do cadastro, para além de todos os problemas que haverá, de acesso à tecnologia por parte da população, não está descolada do avanço do desmonte do Suas, das políticas sociais, do esvaziamento do sistema”, considera, lembrando do termo fraudefobia, para ilustrar a ideia de que os pobres precisam ser controlados, vão fraudar, vão querer se dar bem.
A pesquisadora lembra, ainda, que o Suas prevê o compartilhamento da gestão entre União, estados e municípios, e que, no atual processo de desmonte, estes últimos podem se converter “em força de resistência importante”. Ela indaga, no entanto, sobre a possibilidade ou não de se construir uma base de apoio nesse sentido, tendo em vista que um grande percentual dos trabalhadores do Suas tem vínculos trabalhistas frágeis, como cargos comissionados e contratos temporários. “Isso muda a dinâmica”, considera.
A partir das observações de Mônica, Tereza Campello observa que o Cadastro Único, ao buscar conhecer “um conjunto de questões que envolvem cada família”, pode se tornar uma ferramenta tanto de inclusão, se nas mãos de um governo progressista, quanto de exclusão, se nas mãos de um governo ultraconservador. “A mesma ferramenta pode servir para proteger ou para expor. Por anos, o Cadastro Único foi uma ferramenta de inclusão. Quando quisemos organizar o programa de cisternas no Nordeste, por exemplo, fomos no Cadastro Único verificar quem não tinha água; serviu para fazer um planejamento público. Os municípios também usam para se planejarem”, diz Tereza.
Há, no entanto, por outro lado, quem ache que se devem usar as informações do cadastro, para “provar que o pobre não é pobre”, como aponta a ex-ministra. “Acham que, se a pessoa não tem renda, mas tem geladeira, tem televisão, temos que descontar um tanto do Bolsa Família dela! Será que ela tem que vender a televisão para comer? Muitas vezes, a pessoa tinha uma determinada condição e caiu na pobreza, ou ganhou a televisão da patroa, ou tem uma moto que comprou usada para instrumento de trabalho”, pondera. “Isso revela a completa falta de compreensão do que é pobreza e do nível de desigualdade abissal que organiza a sociedade brasileira. Essas pessoas não querem superar as desigualdades, querem ver como economizam um dinheirinho. Para esses preconceituosos, a pessoa é pobre por sua própria culpa, porque não trabalha, porque não se esforça. E, se parto do princípio de que o pobre é pobre porque é vagabundo e está tentando fraudar, minha política social é gastar o mínimo com esse vagabundo e ainda fiscalizar para que ele não fraude”, critica.
Tereza analisa também a “lógica fiscalista” que vem orientando pensamentos e ações. “O ódio que marca o olhar inclusive de parte dos gestores públicos passou a dominar. Não se discute mais política social do governo dentro do Ministério da Cidadania. O auxílio emergencial ou o novo Bolsa Família está sendo discutindo onde? No Ministério das Finanças! São os fazendários que estão discutindo política social. O debate de política social no Brasil começa em quanto vai custar! É muito ou é pouco?”.
Sonia Fleury faz uma análise na qual reforça apercepção de uma visão fiscalista orientadora das políticas sociais, e destaca um aspecto menos visível nesse cenário: a luta de classes. “Há o preconceito em relação aos pobres e o conservadorismo, colocando os pobres no seu devido lugar, não com direitos, mas como sujeitos a alguma ajuda de emergência”, observa. “Esses aspectos são bastante visíveis, mas o que dá a liga entre o posicionamento do [ministro da Economia, Paulo] Guedes, a posição fiscalista, financeirista e o conservadorismo de Onyx [Lorenzoni, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência] e Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos]? É a luta de classes. É importante que eles se juntem,para colocar os pobres em seu lugar de pobres, para servir. Eles se juntam num projeto de dominação de classe”.
Para a sanitarista, esse projeto vem se construindo, ao mesmo tempo em que destrói o que foi realizado, com iniciativas como a Emenda do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, “que quebra o movimento sindical, tira o direito dos trabalhadores do mercado formal”, avançando, agora, para outras políticas de proteção social, de assistência, saúde e educação. “Vejo o desenho de um modelo novo de relação Estado-sociedade, que se reflete na proteção social. Qual é esse modelo? Acabar com os direitos sociais e tirar os recursos voltados a benefícios sociais como direitos, para transformá-los em assistencialismo. Há um projeto claro de redução dos benefícios alcançados não só nos últimos governos, mas – considerando os direitos trabalhistas – desde a era Vargas”, analisa Sonia, verificando implicações desse projeto na destruição do pacto federativo.
“O federalismo, de acordo com o artigo 23 da Constituição, é democrático e social, voltado ao combate à pobreza, à redução das desigualdades, uma pactuação entre os três níveis de governo para, por meio desses sistemas de política social construídos, reduzir as desigualdades e a pobreza. Isso vai por água abaixo”, considera.
Sonia identifica a tendência à centralização da área assistencial pela União, “como um projeto claramente populista”, na forma como se deu com o auxílio emergencial. “Tirar dos municípios e dos estados e trazer diretamente para o nível central, porque isso dá voto”, observa, acrescentando que, ao lado do projeto de destruição federativa, há o de destruição da inteligência do Estado, mirando-se nos sistemas de informação das áreas de Saúde e Assistência. “Vejo como tendência a possiblidade de comercialização dos dados que estão nesses sistemas”, analisa.
“Há um projeto autoritário, populista, centralizador, antifederativo, antidemocrático, de destruição do aparato estatal e de dominação de classe social”, resume, lembrando que, ao lado da batalha pelo auxílio emergencial às populações sem renda, durante a pandemia, é preciso lutar pela renda mínima como direito de cidadania. “No mundo inteiro, discute-seque o mercado não vai absorver a população trabalhadora e que é preciso garantir-lhe um mínimo, inclusive, para que as economias funcionem”.
Como uma mensagem de afirmação à possibilidade de resistência ao desmonte da proteção Social em curso, Sonia recordou sua decisiva participação na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, para inclusão da Assistência Social no texto constitucional, como assessora do então senador Almir Gabriel, relator da Comissão da Ordem Social. “Não havia a subcomissão de Assistência Social, somente as de Saúde, Previdência e Meio Ambiente. Eu batalhei arduamente para convencê-lo de que, sem assistência, não existia seguridade social em lugar algum do mundo. Ele respondeu que, se eu conseguisse definir Assistência, incluiria. E foi assim que o texto entrou, pelas minhas mãos”, relata Sonia, sobre o episódio e o texto original entregue ao senador, que estão registrados no livro Os direitos dos desassistidos (Cortez, 1986). “Houve, desde então, a formação de uma massa crítica, de uma institucionalidade, de quadros, que pode surpreender hoje, como nos surpreendeu na Constituinte. Por isso, talvez possamos contar com uma fonte de sustentação contra o desmonte da Assistência”, espera.
Sonia destaca que seu otimismo vem também da experiência com a coordenação do Dicionário de Favelas Marielle Franco. “Percebo que, apesar da violência e do abandono das favelas, mesmo na pandemia, há uma cidadania insurgente nas periferias das cidades. É lá que existe hoje uma cultura política, que questiona o racismo, o patriarcalismo político, o autoritarismo que está aí. Isso me dá gás para continuarmos pensando que podemos, trabalhando a questão da proteção social, de forma conjunta, e não esfacelada, reverter e sustar as barbaridades que se tentam perpetrar a cada dia”.
“Também observo que há um movimento acontecendo, apesar de estarmos trancados em pandemia”, acrescenta Tereza. “Um movimento que envolve três grandes frentes: as mulheres, os negros e os jovens. Isso muda a cara do que era a luta tradicional. É daí que teremos um processo de reconstrução, não só da resistência, mas da luta. Apesar da pandemia e do pandemônio, existe uma força insurgente, e é nisso que temos que apostar”.