Por Agatha Cristie*
No Brasil, o aborto feito por mulheres é considerado crime pelas autoridades e pela maioria da sociedade. Mas, essas mesmas autoridades e essa mesma sociedade, capitalista, patriarcal e heteronormativa, naturalizam a completa desresponsabilização dos homens em assumir a paternidade biológica e a criação de seus filhos.
Enquanto isso, os dados mostram uma dura realidade para a maioria das mulheres e crianças brasileiras: 5,5 milhões de crianças não tem o nome do pai no registro, segundo o Conselho Nacional da Justiça; 11,6 milhões de famílias brasileiras são compostas por mães solos e seus filhos, das quais 56,9% estão abaixo da linha da pobreza revela o IBGE.
Neste Dia dos Pais, vamos conversar com homens que decidiram exercitar a paternidade com responsabilidade e afeto. Eles cozinham, lavam, passam, dão banho, botam pra dormir, levam para a creche, escola, capoeira e o futebol, brincam, conversam, orientam. Ou seja, não fazem nada além do que uma mulher mãe, em especial a mãe solo, faz no cotidiano, é verdade!
Mas então, qual a importância de contar essas histórias? É que elas guardam exemplo. E como nos ensinou Paulo Freire - patrono da Educação brasileira - em Pedagogia do Oprimido, é preciso ensinar a ler o mundo para poder transformá-lo, e ensinar exige exemplo. Neste caso, de homens que não naturalizaram o machismo, o sexismo, a falta de afeto e a educação violenta e decidiram assumir suas responsabilidades e, hoje, compartilham, dividem, os cuidados de suas crias.
Criação com afeto e ancestralidade
A ancestralidade sempre foi um valor central na vida de Luiz Muller Souza de Faria - o Biula, 33 anos, e o seu filho Akin de Jesus Manholer, de apenas 2 anos e 8 meses, é a mais bela ligação desse legado de antepassados que ele diz já ter sentido e experienciado. “Desde os primeiros sons dos seu coração acelerado na primeira ultrassom, senti em mim a força da minha mãe, da minha vô, dos meus ancestrais, ressoando naquela vida. Ali me reencontrei como pessoa, como homem, filho e pai”, disse.
Como pai, Biula conta que, o seu maior medo é o de faltar, de não ser o apoio que o Akin precisa, no momento dos seus primeiros passos ou para enfrentar as hostilidades que o mundo reserva e contra as quais nem sempre se consegue superar, pelo menos não sem marcas. Foi por isso, que Biula e Natália Gomes Fernandes decidiram criar juntos um "Guerreiro Forte" Iorubá.
“Escolhemos esse nome e com esse significado porque queríamos dedicá-lo como uma oração ao seu futuro, para que ele tenha força. A gente sabia que ele devolveria com sua doçura e amor cotidiano os mesmos votos. Desde seu nascimento, também me transformei em uma pessoa mais forte. Sou porque ele é!”, afirma Biula.
Como homem negro, militante e morador da periferia de Campinas, em São Paulo, Biula conviveu desde sempre com a violência como principal forma de disciplinar, orientar e educar: “a vida entre senzalas e casas grandes, deixou marcas profundas na forma com que nossas mães e pais nos ensinaram a proteger”.
Desde pequeno, ele ouvia da avó e da mãe que era melhor apanhar em casa do que na rua, melhor apanhar delas do que da polícia. Para Biula, a vida na quebrada é violenta, as pessoas nunca se acostumam, mas arrumam formas de justificá-las na sua consciência e muitas dessa justificativas são verdadeiras. “O chinelo da minha mãe, e o medo da sua cinta me livrou do tráfico, da PM e do presídio”, afirma.
“De certa forma o medo dela me protegeu. Mas hoje não é o meu. Medo e violência caminham juntos. Minha mãe também apanhou muito quando criança, provavelmente minha avó também e sua mãe, a mãe de sua mãe....Interessante é que até essa tarefa de bater nos filhos "para educar" também recai sobre as mulheres. O histórico de violência física, envolvendos homens, tem outra motivações como a autoridade, para o filho "ser homem", pelos próprios problemas da masculinidade destes pais”, comenta Biula.
“Mas como não ser violento em um contexto extremamente violento, como o da periferia das metrópoles paulistas na década de 90?”, questiona-se e responde: “uma tarefa muito mais complexa do que a atual. Desta forma sinto como um compromisso para com todes essas ancestrais, que sofreram na própria carne está dor, fazer diferente com meu filho”.
Paternidade responsável
“Meu dia-dia com o Akin é uma loucura extraordinária!”. Apesar de penosa e cansativa, “pelas dificuldades de vividas em uma sociedade atomizada, de vidas privadas da comunidade, em que desde as menores tarefas da reprodução da vida é no cada um por si”, a rotina da paternidade do Biula é exercida com alegria e resiliência.
“Eu agradeço a Oxalá todos os dias por esse privilégio, de poder me reeducar um pouco a cada dia com essas criaturas que são as crianças e meu filho. Estou em processo de reeducação permanente em relação ao trabalhos doméstico, aprendendo sempre. Mesmo tendo um educação doméstica em que sempre tive minhas tarefas e responsabilidade, há ainda muito a entender, e entender é sempre a partir do fazer”, disse.
Para Biula, a vida fica cada vez mais complexa e sua reprodução também, quando se tem um filho e, para isso, os homens não não foram preparados é preciso ir à luta. “Durante os primeiros 8 meses de Akin, eu fui mais responsável pelas alimentação, atividades lúdicas, cuidados. Com a creche, passamos a ter um divisão mais equitativa, porque ele passou a ficar mais tempo sob cuidados de terceiros. Ainda assim, as tarefas do planejamento não foram e ainda não são tão fáceis pra mim. Agora, em tempos de pandemia, estamos tendo a oportunidade de fazer um intensivão de múltiplas trocas e aprendizados. Então, acho que há esperança de sair mais preparado para dar conta de equilibrar melhor a vida”, relata.
Biula também sempre teve no pai a figura de um grande amigo e, apesar, do pai nunca ter sido violento com ele, Biula acredita que a masculinidade que produziu o seu pai o “violentou” muito mais do que a “violência” da mãe. “Tive a melhor infância que pude lembrar, meus pais, cada um a sua forma são formas de resistência que carrego comigo e transmito ao Akin, em cada lição que passo a ele. Pena ter perdido o meu pai tão cedo. Ele não teve, em vida, o prazer de ver que nós podemos ser diferentes se não em nós mesmos, mas nos filhos e netos que criamos”, lamenta e ensina.
“Paternidade, se tá fácil, você tá errando”
A frase estampa uma das camisas da marca Mamahood, criada por Priscila Josefick, logo após o nascimento do seu primeiro filho, o Tim Tim, e representa a rotina familiar de Álvaro de Souza Neiva Moreira, 41 anos, carioca, jornalista, dirigente partidário, e pai de três filhos, a Beatriz - Bia, de 18 anos, o Matheus, de 16, e Alice, 11 anos.
Álvaro se tornou pai pela primeira vez ainda jovem, aos 22 anos. Ele tinha recém acabado a graduação, ainda não tinha uma vida profissional e financeiramente estável, isso o deixou inseguro, mas não impediu que ele e sua companheira, à época, seguissem em frente com a gravidez. “Foi o maior susto. Não ter uma segurança mais estrutural impactou bastante. Ainda assim, foi a maior alegria da minha vida. Meus filhos são a maior alegria na minha vida”, disse.
Para ele, ter um filho obriga o pai a amadurecer sob vários pontos de vista como, passar a ter uma família, garantir o sustento dessa família e enfrentar questões que vão mudando ao longo do tempo. “A medida que eles foram crescendo apareceram diversas questões. Hoje, estou com dois filhos adolescentes e uma pré-adolescente, aí as questões são bastante diferentes de quando eles eram bebês. Mas, felizmente a nossa relação é muito boa. A gente se dá muito bem, tem uma relação de muito carinho e cumplicidade, de amizade, então a gente conversa bastante. É óbvio que temos dúvidas e inseguranças, mas no geral a nossa cumplicidade facilidade bastante”, conta Álvaro.
A coisa pega, conta Álvaro, quando as atividades da militância atravessam o lazer dos filhos, e geralmente isso acontece nos finais de semana, o que ele tenta evitar, mas nem sempre consegue. Ele vem de uma família cuja a militância política de esquerda é uma tradição. Seu pai, o seu Neiva, foi militante histórico do PT, sua mãe e seus tios também. Dirigente do PSOL no Rio de Janeiro, Álvaro tem trabalhado em home office, por causa da pandemia do COVID-19, e passa uma média de 10 horas em reuniões online e sente-se sobrecarregado com as tarefas domésticas.
“Eles reclamam um pouco, mas eu me esforço muito para tentar equilibrar a paternidade e a militância. Não é uma coisa fácil mas hoje está bem pactuada entre nós. Eles percebem a militância como uma coisa muito central na minha vida, e de fato é. Eles também sabem que a militância era uma parte muito central na vida do meu pai e de outras pessoas da família, e, em alguma medida guardam uma admiração disso. Veem com bons olhos a minha convicção de que é necessário lutar para construir um mundo melhor, diferente, mais justo, mais democrático para todas as pessoas, com menos sofrimento, menos exploração, com afeto”, afirma.
Guarda compartilhada
A Bia e o Matheus são filhos da primeira companheira do Álvaro. Desde a separação a guarda das crianças é compartilhada meio a meio e eles se organizaram para minimizar o impacto dessa nova rotina. Os dois decidiram continuar morando no mesmo bairro, estabeleceram que escola e atividades extracurriculares também seriam feitas no bairro onde moram, e assim, conseguiram organizar a vida deles e das crianças, especialmente no primeiro momento da separação.
“É óbvio que sempre tinha dificuldade tipo, esqueceu o uniforme lá [casa da mãe], um livro da escola lá tinha que voltar pra pegar. Mas no geral, a nossa boa relação, a organização que montamos, o fato da gente morar próximo facilita muito até hoje”, explica Álvaro. “É claro que, às vezes, tem atrito, tem divergência sobre como lidar com as situações que eles nos trazem, mas no geral, a gente consegue ter um diálogo aberto e permanente, isso facilita bastante”, completa.
Filho único por parte de mãe e o filho mais velho por parte de pai, Álvaro Neiva também cresceu em guarda compartilhada, desde os cinco anos, quando seus pais se separaram. “Acho que tive um bom exemplo em casa. Sempre fiquei metade do tempo com minha mãe e metade com meu pai. Todas as tarefas de criação sempre foram muito compartilhada entre eles. Isso foi uma referência pra mim. Meu pai casou de novo, teve mais três filhos e nunca mudou, convivia com as três famílias, de meu pai, de minha mãe e de minha madrasta. Depois meu pai se separou dela também e agora passava metade do tempo com nós quatro e metade do tempo sozinho”, relata.
Papéis de gênero
A polêmica envolvendo o ator Thammy Miranda, após ter sido convidado para uma campanha publicitária da empresa Natura sobre os Dia dos Pais, levantou questões importantes como, os papéis de gênero impostos à maternidade e a paternidade, em uma sociedade que coloca as identidades cis como regra.
Para Mário Leony, delegado da Polícia Civil de Sergipe e membro da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBT, pai é quem ama e cuida. “A paternidade independe de vínculo consanguíneo e, no caso do Thammy, ser pai é independente de um genital. A maternidade e a paternidade diz muito sobre os papéis de gênero em nossa sociedade e precisamos enfrentá-los. Libertar as mulheres do trabalho exclusivo de reprodução social e subverter essa “normalidade” cisgênera e heteronormativa”, afirma.
Adoção homoparental
Mário Leony é casado com o arquiteto Sérgio Fernandes há 13 anos. Juntos, eles se preparam para tornarem-se pai. Mas, embora haja um número elevado de jovens sem família e Estatuto da Criança e do Adolescente reconheça a legitimidade da adoção de crianças por casais homossexuais, eles ainda encontram dificuldades na hora de adotar um filho.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 9,6 mil crianças e adolescentes na fila de espera para serem adotadas no Brasil. A primeira adoção homoparental, no Brasil, só aconteceu em 2005. De lá para cá, a adoção de crianças por casais homossexuais ou transexuais têm se tornado mais frequente, mas não menos difícil.
“Queremos muito crescer a nossa família, criar um filho juntos. Mas, por conta de toda a demora do processo de adoção em nosso país, a nossa gestação já dura mais de dois anos. A sensação é de que o processo não avança, mas não vamos desistir. É o nosso sonho e também nosso direito”, disse Mário Leony.
Agatha Cristie é jornalista, do Time de Comunicação da Insurgência.