O "Dicionário da Invisibilidade" foi lançado em Lisboa, em 19 de junho. O Esquerda.net falou com Ana Sofia Palma, José Falcão, Mamadou Ba e Txema Abaigar, que coordenam o livro, e André Carrilho, responsável pela capa e ilustrações.
Mariana Carneiro, Esquerda.net, 13 de junho de 2021
O lançamento oficial do "Dicionário da Invisibilidade", integrado no plano da Festa da Diversidade de 2020 (que não se pôde realizar devido à pandemia de covid-19), contará com a participação da e dos coordenadores, a que se seguirá um debate sobre a temática do Dicionário.
No final da sessão, que se vai realizar no dia 19 de junho, próximo sábado, a partir das 14h30, no Fórum Lisboa (Av. de Roma, onde se encontra sediada a Assembleia Municipal da cidade), será transmitido o Documentário "Olhares sobre o Racismo", realizado para o 30º Aniversário do SOS Racismo. Estão ainda agendadas sessões de apresentação para Beja, a 26 de junho, e Porto, a 9 de setembro.
O "Dicionário da Invisibilidade", um trabalho colaborativo militante que mobilizou cerca de 170 pessoas, conta com capa e vinte ilustrações de André Carrilho. O livro já estará a chegar às livrarias, podendo ainda ser adquirido nas bancas do SOS Racismo, nomeadamente durante o lançamento oficial, ou enviando um email para esta associação: sosracismo@gmail.com(link sends e-mail). Para o efeito, deve ser indicado no email nome, morada e NIF e, se possível, um contacto direto. A obra tem um preço de capa de 25 euros.
Recuperar a história de "Los nadies"
O projeto surgiu em 2018 de uma “ideia genial” do José Falcão, que “a partilhou no imediato connosco os três e, nós todos, com o mundo”, lembra Ana Sofia Palma.
O “Dicionário da Invisibilidade” foi patenteado em final de outubro / início de novembro de 2018, altura em que “saiu da clandestinidade”, diz José Falcão. O objetivo? Acabar com a “fábula montada para defender os privilégios” daqueles que nos querem impor uma narrativa coletiva que excluiu uma grande parte da humanidade.
Para Txema Abaigar, esta pareceu, de imediato, “uma ideia muito necessária", pois vivemos num momento em que “as elites do sistema, querem ‘vender-nos’ a sua história de opressão e desigualdade, através das suas ‘personagens’ imperialistas, racistas, xenófobas, machistas, classistas, iluminadas, etc.”
O "Dicionário da Invisibilidade" torna-se, neste contexto, num “bom instrumento para recordar as nossas referências mais marcantes e recuperar a história de ‘Los nadies’ (‘Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos...’, Eduardo Galeano, 1940)”.
Fannie Lou Hamer, ilustração de André Carrilho.
“Trazer outras visões à história enriquece-a e prepara-nos. Garantir a memória permite-nos entender o que ainda falta fazer. O ‘Dicionário da Invisibilidade’ é o nosso contributo ao debate sobre o que é visível ou o que se torna invisível, o que não pertence e o que se torna incontornável”, frisa Ana Sofia Palma.
Em causa está, de acordo com Mamadou Ba, “uma disputa para a memória” que quer “inscrever narrativas esquecidas dentro da narrativa coletiva”.
“Várias tonalidades do mundo são invisibilizadas porque a doutrina hegemónica da narrativa coletiva sobre o que significa universalismo e democracia deixa de fora esses contributos”, explica.
De acordo com Mamadou Ba, o universalismo “deixou de fora uma parte substancial da humanidade”. “Quando olhamos para o que se traduziu como conhecimento, como saber, parte substancial desse saber não está incluída na doutrina do universalismo. Grandes pensadores como Hegel, Kant, Diderot, Tocqueville são os pilares do pensamento ocidental e deixam de fora os outros pensamentos com os quais até dialogaram”.
Existe ainda “uma disputa política sobre representação”. “Quem representa o quê, quem tem lugar nessa representação global, como é que isso se disputa e como é que formamos uma ideia de um imaginário coletivo em que todas as pessoas, independentemente de fazerem parte do hemisfério norte ou do hemisfério sul, fazem parte da humanidade. Porque a humanidade é um projeto que está em construção. Então, é preciso combater a invisibilização”, destaca o ativista.
Hugo Blanco, ilustração de André Carrilho
Um terceiro ângulo diz respeito a um “compromisso antirracista”, e à necessidade de “sair da lógica dicotómica entre tradição e cultura, entre civilização e costumes, que é uma forma eurocêntrica de olhar a produção do conhecimento”.
O "Dicionário da Invisibilidade" é uma “forma de inscrever o combate antirracista numa dimensão teórica, que é algo que faz falta. Não é possível disputarmos a ideia de raça ou a ideia de pertença sem discutirmos e disputarmos a ideia de presença, de visibilidade”, vinca Mamadou Ba.
Carolina de Jesus, ilustração de André Carrilho
“Uma contribuição para a construção de representatividade diversa numa narrativa global”
“Rapidamente concluímos que era conveniente e necessário fazer confluir, em torno da ‘visibilidade’, referências muito conhecidas em âmbitos militantes da libertação e transformação social, mas em permanentes processos de invisibilização pelos meios culturais sistémicos e mainstream, com personagens determinantes, ainda que praticamente desconhecidas, na/s História/s dos Povos. Em suma, referir numa obra deste tipo, e juntas/os, a Rosa Luxemburgo e hondurenha Doña Pascualita ou o Zeca e a Zumbí dos Palmares ou a Soledad Barrett”, relata Txema.
Zeca Afonso, ilustração de André Carrilho
O autor reconhece que “a história das e dos de baixo, ainda tem no subsolo muitos personagens marcantes escondidas, especialmente mulheres, indígenas, minorias e diversidades, etc.”, mas espera que esta obra “seja mais um passo nessa recuperação da nossa História e das nossas histórias”.
De facto, não existiu a pretensão de “seguir o cânone teórico da feitura de um dicionário convencional”, assinala Mamadou. “É por isso que os critérios de escolha das entradas é absolutamente versátil. Não está cingido a critérios meramente académicos. São opções editoriais que estão orientadas por opções políticas”, continua.
Berta Cáceres, ilustração de André Carrilho
O ativista reforça que “não temos a pretensão de ter um dicionário exaustivo do ponto de vista da definição teórica do que significa um objeto dicionário, mas temos a pretensão de contribuir para o debate teórico, para o debate político, e essa pretensão está espelhada na escolha diversificada dos eixos, das temáticas, das regiões geográficas e dos e das protagonistas que escolhemos”.
Os critérios são, por isso “interseccionais, eles cruzam-se. Todas as dimensões entram na escolha dos critérios”.
Como critério para inserir entradas partem do princípio de que “todo o conhecimento é valioso desde que ele esteja ao serviço do avanço da humanidade”. E escolhem um tempo que sabem que “marca o tempo da definição do que é ‘civilização’, modernidade”. o “início da empresa colonial – como marco histórico para definir a partir de que momento é que outras histórias, outras narrativas não são tidas em conta nas narrativas globais”.
Ken Saro-Wiwa, ilustração de André Carrilho
O “Dicionário da Invisibilidade” surge neste contexto como um contributo para “a construção da representatividade diversa numa narrativa global”.
“Nascia connosco uma rede de contactos pelo mundo todo”
José Falcão descreve como o processo de construção do Dicionário foi “sempre muito participado”: “Cerca de cento e setenta pessoas participaram no processo, das quais sessenta fora do país”, afirma o ativista antirracista, assinalando a “grande participação” da América latina.
“Numa altura em que toda a gente estava em confinamento, mais de uma centena de pessoas que se inscreveram no SOS Racismo puderam colaborar”, acrescenta.
Este foi, portanto, um “trabalho militante para militantes”.
Leila Khaled, ilustração de André Carrilho
Ana Sofia Palma continua: “Ao mesmo tempo que o mundo parava, se recolhia devido à covid-19, nascia connosco uma rede de contactos pelo mundo todo - tínhamos Europa, África, América, Ásia, Oceânia, todas e todos ligados em torno das invisibilidades. E de todos os lados nos iam chegando entradas para o Dicionário”.
José realça o interesse que o “Dicionário da Invisibilidade” tem suscitado: “Mais de 20 câmaras municipais já compraram o Dicionário e muitas outras estão a contactar o SOS Racismo”. O Alto Comissariado para as Migrações também já solicitou exemplares.
O ativista espera que a obra possa circular agora por escolas, associações e bibliotecas.
Phoolan Devi, ilustração de André Carrilho
“Ter a capa e as ilustrações de André Carrilho foi uma enorme mais valia”
Para José Falcão, “ter a capa e as ilustrações de André Carrilho foi uma enorme mais valia”.
E André Carrilho conta-nos como começou esta parceria. Contactou o SOS Racismo “há uns meses para uma possível colaboração” porque considera que esta associação faz um “trabalho muito importante para a democracia portuguesa”.
“O Zé Falcão propôs-me ilustrar este livro, e eu achei que era um bom projeto. O livro é todo deles, o meu envolvimento é apenas ao nível das ilustrações”, refere.
Para André Carrilho, esta foi uma “oportunidade de conhecer um pouco da história que não estamos tão habituados a estudar”. “Foi um trabalho que me permitiu aprender, além de criar”, frisa.
“Se queremos um mundo plural e multicultural temos de ver o mundo por diversos prismas, de diversas perspetivas”, defende o ilustrador.
Sobre qual a ilustração que se tornou mais desafiante, responde: “O Alcindo Monteiro, pela história, pela tragédia que está por detrás, pela proximidade que eu sinto em relação à história dele”.
Alcindo Monteiro, ilustração de André Carrilho
“Um início de caminhada”
Ana Sofia Palma deixa claro que a publicação do “Dicionário da Invisibilidade” é “um início de caminhada” e que o livro “pretende lançar a discussão para um debate que esperamos seja profícuo”.
“Desde cedo tivemos noção que esta não seria nunca uma obra terminada, nem faria sentido. Assim a ideia será dar-lhe continuidade neste mergulhar conjunto na memória, talvez através do site”, continua.
Ali Primera, ilustração de André Carrilho
“Como é um trabalho colaborativo militante, ele vai-se estender à medida dos nossos compromissos políticos, da nossa militância, da capacidade de mobilizar pessoas para alargar, para abrir, para contribuir para o Dicionário”, remata Mamadou.
Mariana Carneiro é Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do trabalho