Marina Ruzzi*
A luta por direitos sexuais e reprodutivos vem de longa data. Não fazem sequer 30 anos que foram incluídos no rol de direitos humanos na ONU e que passaram a ser passíveis de uma luta institucional mais clara dentro dos estados nacionais. No Brasil, isso significou, por exemplo, a ampliação da rede de aborto legal, a Lei do Minuto Seguinte, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e humanização no parto. Apesar disso, o movimento conservador brasileiro atual deixou clara a sua fragilidade, especialmente por meio dos ataques sofridos desde as eleições de 2018.
O governo Bolsonaro é a face do neoconservadorismo brasileiro. Um dos aspectos mais importantes da aliança entre neoliberais e conservadores, que sintetiza aquilo que podemos chamar de neoconservadorismo, é que há uma convergência em uma narrativa de crise que tem como locus a família. Em síntese, o ingresso da mulher de maneira mais expressiva no mercado de trabalho remunerado no século XX e suas reivindicações são vistas como fatores desestruturantes do casamento heteronormativo e a criação dos filhos.
Embora o movimento neoconservador tenha como principais atores sociais representantes religiosos cristãos e católicos, que historicamente têm suas diferenças e disputas, foi possível alcançar uma aliança que se baseia na rejeição comum ao aborto e à homossexualidade. Assim, a consolidação de movimentos sociais feministas catalizaram a reorganização de alas conservadoras a fim de se estruturarem, de maneira reativa, à conquista de direitos das mulheres, especialmente relativas à sua autonomia sexual.
E essa aliança chega a uma nova dimensão a partir do aprendizado acerca da acentuada juridificação da moralidade. Tais setores religiosos passaram a levar suas preocupações sobre a regulamentação moral da sexualidade para o mundo do direito, em especial a área dos direitos humanos, utilizando-o como arena e como estratégia. Não a toa, não apenas o governo Bolsonaro nomeou representantes cristãos conservadores para liderar pastas relevantes da área de direitos humanos, como a ministra Damares Alves para o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, como reivindica que sua próxima nomeação para o Supremo Tribunal Federal, prevista para o final de 2021, contará com alguém “terrivelmente cristão”. Entendendo que várias disputas relativas a tais direitos têm sido levadas ao STF, a nomeação de alguém conservador que poderá ficar em seu cargo por muitos anos, possibilitará o avanço de uma agenda neoconservadora em questões como a descriminalização do aborto.
Damares é atuante desde antes da criação da Associação de Juristas Evangélicos (Anajure), responsável por lobby no congresso e por fazer acompanhamento de ações tidas como problemáticas no Supremo Tribunal Federal (como a legalização da união homoafetiva e “ideologia de gênero” nas escolas). Atualmente, como uma das representantes da alta ala ministerial, não tem medido esforços para retroceder direitos sexuais e reprodutivos.
O movimento neoconservador não está restrito ao Brasil. No âmbito internacional, o Brasil tem se associado a iniciativas contra o aborto, marcada pela assinatura da Declaração de Genebra, defendida por Damares no Conselho de Direitos Humanos da ONU, alegando que “jamais aceitariam que o aborto seja visto como forma de planejamento familiar”. Isso sucedeu o pleito do Brasil a um dos assentos no conselho, no qual omitiu quaisquer compromissos para com a defesa de direitos das mulheres e das LGBTQIA+.
No âmbito do Poder Executivo, verificamos um verdadeiro desmonte dos equipamentos públicos da rede de aborto legal (de 76 hospitais em 2019, para 42 em 2020). Além disso, aproveitaram-se da pandemia para fazer ampliar seus retrocessos. Em junho de 2020, o Ministério da Saúde editou uma nota técnica (Nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS) destacando as dificuldades que mulheres e meninas podem encontrar no acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia e propondo medidas para superar esses obstáculos. Dois dias depois, Bolsonaro distorceu o conteúdo do documento em um tweet, dizendo que o governo estava buscando identificar seus autores e que não apoiava "qualquer proposta que vise a legalização do aborto". O Ministério da Saúde então exonerou dois dos três técnicos que assinaram a nota.
Em agosto, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 2282/2020 que “Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. A Portaria altera as regras existentes, dificultando significativamente o atendimento a vítimas de violência sexual que procuram hospitais para a realização do aborto previsto em lei. Um dia antes do julgamento da inconstitucionalidade dessa portaria no STF, o Ministério a revogou e substituiu pela Portaria 2.561/2020, que ameniza alguns dos pontos mais controversos, mas mantem a essência da proposta original: constranger profissionais da área da saúde a tomar atitudes policialescas no trato com as mulheres que buscam o recurso ao aborto legal no sistema de saúde.
Tais movimentações ocorreram após as significativas manifestações sociais a respeito do caso da menina de 10 anos no Espírito Santo que engravidou após ter sido sistematicamente estuprada por seu tio e tido seu direito ao aborto legal prejudicado, tendo de ir até Recife para garanti-lo. Tal episódio contou com a presença de Damares e de Sara Winter, sendo que esta última divulgou o local onde seria realizado o procedimento, gerando covardes ataques de conservadores na porta do hospital. Damares está atualmente sendo investigada pela PGR a fim de apurar se atuou diretamente para impedir a realização do aborto.
O Congresso Nacional não tem agido em descompasso com o governo federal. No âmbito legislativo, convém destacar a pesquisa realizada pelo CFEMEA de 2020, que mapeou as propostas de lei que versavam sobre direitos sexuais e reprodutivos. Das 62 proposições apresentadas em 2020 na Câmara dos Deputados e Deputadas, 46 tratam especificamente da questão do aborto, que se dividem em dois grandes blocos: de um lado as reações às medidas apresentadas pelo Governo Federal, mais diretamente pelo Ministério da Saúde, restringindo o acesso ao aborto legal no Brasil; de outro, as reações à tragédia da menina do Espírito Santo.
Além disso, houve uma série de tentativas de inserir o direito à vida desde a concepção nos mais diversos documentos. Como exemplo, podemos destacar o Decreto nº 10.531/2020, que instituiu a “Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031”, colocando como diretriz a “promoção do direito à vida desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e proteção às gestantes”.
Contra todas as guinadas conservadoras, houve intensa agitação social e ações de movimentos e parlamentares comprometidos. Foi através dessa pressão pública que algumas dessas medidas foram revogadas ou então que estão avançando a passo mais lento. Porém, o desmonte e o projeto neoconservador são reais. Se a estruturação dessas forças políticas se deu a partir de uma reação à conquista de direitos e à organização dos movimentos feministas, cabe a nós a luta por sua garantia e ampliação.
Marina Ruzzi é advogada feminista e militante da Insurgência-SP.