Luciana Araujo*
Alguém que tivesse chegado ao Brasil neste 7 de setembro sem muita informação e assistido ao pronunciamento de Lula, e ao ligeiro balbuciar reacionário de Jair Bolsonaro, ficaria em dúvida sobre qual dos dois ocupa a cadeira do Palácio do Planalto. Com começo, meio, fim e em linhas gerais, muito correta, a fala de Lula ao país demonstrou a altivez e autoridade que faltam ao liliputiano autoritário que distribui perdigotos em meio a concentrações populares durante a maior pandemia do século, mesmo após diagnóstico de infecção pelo novo coronavírus - na personificação surrealista de uma arma química.
Bolsonaro, por sua vez, no que pareceu uma fala improvisada pela exigência de resposta ao oponente, foi ele mesmo. Esqueceu que existe uma pandemia cujos ainda altos índices de contágio já ceifaram quase 130 mil vidas e se arrastam mais que a média internacional por responsabilidade do governo, que nem ministro da Saúde tem há quase quatro meses. Falou pouco, mal e saudou mais uma vez a ditadura empresarial-militar que, segundo ele, venceu "contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada."
Ouvir essa do amigão do Queiroz e pai de um político investigado pelo que se tornou o mais atual e nacional símbolo de corrupção no país - as 'rachadinhas' - seria risível se não fosse trágico.
Lula recolocou-se na arena política para 2022 afirmando posições que vão na direção dos interesses dos explorados e oprimidos. Mas seu próprio discurso e os governos que encabeçou ou foi co-dirigente exigem um debate com seriedade sobre as afirmações brandidas neste dia da (suposta) Independência. A isso se propõem os treze pontos a seguir:
1) Lula disse bem que, na Amazônia, o Estado brasileiro deveria se apresentar com cientistas que produzissem conhecimento para alimentar o povo e farmacologia para o trato de doenças, respeitando os costumes e tradições dos povos indígenas. Esqueceu de se desculpar por ter imposto Belo Monte às nações indígenas que se mobilizaram por anos contra o empreendimento, denunciando os impactos sócio-ambientais e ameaças aos costumes e terras indígenas que a usina levou para o meio da Volta Grande do Rio Xingu, no Pará. Também esqueceu o Código Florestal que aprovou no Congresso Nacional, inaugurando a atual fase do modelo de "desenvolvimento" resultante no desastre atual que ameaça irreversivelmente a Floresta e seus povos. Assim como não lembrou que foi ele quem impulsionou as destrutivas hidrelétricas de Jirau e Madeira. E não disse, ainda, o que pretende fazer na atualidade em relação ao "Novo Modelo Institucional de Energia" que instituiu em 2004 e botou sob gestão do MDB de Michel Temer (aquele vice não tão decorativo, por ele imposto a Dilma, que pagou com alta traição a quem tanto lhe deu a mão).
2) Também corretamente, Lula afirmou que o acordo de cessão da Base Militar de Alcântara, no Maranhão, merece ser denunciado (no mundo jurídico, revogado). Mas, se os governos do PT não levaram o acordo adiante, dada a pressão dos movimentos sociais, a entrega do território foi assinada com anuência e defesa do governador Flávio Dino (do historicamente aliado petista PCdoB), governo do qual o PT participa. Se corretamente Lula defende a denúncia do acordo anti-soberania nacional, este deve ser um compromisso que não pode ser subordinado aos "acordos de governabilidade" que nos levaram também ao golpe de 2016.
3) Lula denunciou ainda que Bolsonaro colocou banqueiros e especuladores para dirigir nossa economia. Mas quem são Henrique Meirelles e José Levy? O que foi o significado da 'Carta aos Brasileiros' de 2002, que resultou em rupturas importantes de quadros petistas e na criação do PSOL? Podemos ter do Lula reflexivo o compromisso de que não haverá nova 'Carta aos Banqueiros' nem operadores da especulação internacional num possível novo governo petista?
4) Outra denúncia importante feita por Lula é que instituições que se confundem com o desenvolvimento de país estão sendo esquartejadas e alienadas. Mas não esquecemos que os governos petistas realizaram mais rodadas de leilões de bacias petrolíferas que o PSDB, incluindo Libra - sob intensa repressão da Força Nacional aos militantes que denunciavam o esbulho do patrimônio nacional. O Lula do 7 de setembro se compromete a não avançar com a política de entrega do que restou do nosso petróleo e da Petrobras em um novo governo, e a reverter o que for recuperável?
5) Ao falar sobre a importância do combate à fome e às desigualdades, Lula desperta a atenção para dois temas urgentes e historicamente atrasados no Brasil: a reforma agrária e a reforma urbana. Nos governos Lula, no entanto, deu-se continuidade e aprofundamento ao modelo do agronegócio exportador de commodities e ampliou-se o controle de porções enormes do território brasileiro e de toda a cadeia produtiva e comercial agrícola por grandes grupos oligárquicos associados ou diretamente do capital financeiro internacional. E mesmo o 'Minha Casa, Minha Vida' não supriu a demanda por moradia dos setores mais pauperizados da classe, atendendo mais à parcelas médias da população e cedendo às exigências dos setores bancário e de construção civil. Em 2014, na inauguração do empreendimento João Cândido, conquistado pelo MTST em São Paulo, o próprio Lula reconheceu que o modelo de construção por meio de contratações de médio porte, e sob gestão de um movimento social sério, resultou em unidades habitacionais maiores a custo muito menor. Simplesmente porque não incluem o ágio cobrado pelas mega empreiteiras (não precisa nem ser economista pra saber disso).
6) A "revolução pacífica" anunciada por Lula como feito de seus governos, foi desmontada em um ano e meio - também sem nenhum tiro e apenas com um punhado de prisões, para mostrar quem é a elite nesse país e que quem pensou poder participar da festa pode ser expulso quando bem lhes der na telha. E aí ganha peso outra promessa feita por Luiz Inácio em seu pronunciamento. A raiz do golpe de 2016 está também na política de pés de barro da conciliação. Nós, que desde o início nos perfilamos na denúncia do golpe, da armação imperialista que construiu o impeachment de Dilma com uma cara de processo jurídico legal e da arbitrariedade da prisão Lula não podemos nos furtar ao balanço que a história exige para que possamos disputá-la em outras condições.
7) Na política educacional, o ex-presidente precisa reconhecer que "o destino trágico do Museu Nacional" por ele mencionado foi também produto do desfinanciamento nos governos petistas.
8) É verdade que todos os avanços sofreram encarnicada oposição dos conservadores, aliados aos interesses de outras potências, mas também instalados nos ministérios dos governos petistas - ocupados por Crivellas/Macedo e outros que enterraram políticas que pretendiam avanços nos direitos sexuais e reprodutivos, o kit anti-homofobia, o controle social da mídia etc.
9) O "novo contrato social" para defender os direitos do povo trabalhador tem que revogar as reformas da Previdência desde 1998, que só retiraram direitos e desmontaram a seguridade social sem estancar o dito "rombo" das contas públicas. Até porque os sonegadores bilionários que devem ser cobrados - e não os trabalhadores urbanos, servidores públicos ou viúvas de civis - nunca foram.
10) Acabar com o teto de gastos tem que ser um compromisso inflexível. Essa é a única forma de termos possibilidade de um país que mantenha as conquistas mínimas para preservação dos direitos sociais e trabalhistas que vêm sendo implodidos desde a aprovação da Lei das Terceirizações.
11) Não acreditar e não aceitar "os pactos pelo alto" tem que ser outro compromisso irrefreável, sem nova 'Carta aos Banqueiros' e sem a defesa absoluta dos contratos injustos que sustentam o Estado brasileiro desde o 7 de setembro de 1822.
12) Se Lula refletiu muito na quarentena, saudamos, mas é preciso ir a fundo na frase em que se compromete à "reconstrução do Brasil sem privilégios oligárquicos e autoritários". Para isso, será necessário romper com "os usineiros heróis", garantir um verdadeiro estado democrático de direito que não assassine um jovem negro a cada 23 minutos (dado de 2015); não amplie o encarceramento de mulheres em 567,4% (como ocorreu entre 2000 e 2015); não aumente em 54% a taxa de homicídios de mulheres negras (como ocorreu entre 2005 e 2014); que promova a reforma agrária e urbana ao invés dos mega-eventos; que revogue a Lei Antiterrorismo editada por Dilma nos estertores de seu governo e que agora é usada contra todos os que se opõem ao Planalto, a Política da GLO que sufoca estados com a Força Nacional sem resolver nenhum problema de segurança e aumentando o genocídio, a Lei de Drogas que levou o Brasil ao quarto lugar mundial em população carcerária (em 2015).
13) E a condição sine qua non para tudo isso é a garantia de independência e autonomia dos movimentos sociais e da auto-organização da classe, sem manietar as organizações dos trabalhadores e da juventude - como verificamos de 2003 a 2013. E que resultou na incapacidade de reagir com a força necessária para impedir o golpe, a prisão ilegal da maior liderança operária da América Latina e na marcha reacionária em curso no país.
(*) Luciana Araujo é jornalista, militante do Movimento Negro Unificado e da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo