Investigador de movimentos de protesto no seu país, Volodymyr Ishchenko fala nesta entrevista dos debates sobre a Ucrânia na esquerda global, do crescimento do extremismo e do futuro da identidade ucraniana.
Francisco Claramunt entrevista Volodymyr Ishchenko, La Brecha /Esquerda.net, 29 de março de 2022
Fora da Ucrânia e da Rússia, há um debate na esquerda e entre os seus intelectuais sobre qual deveria ser a posição nesta guerra. Algumas vozes, como Noam Chomsky, favorecem uma solução negociada para a invasão e defendem esta procura de compromisso diplomático como a única abordagem sensata de um ponto de vista progressista. Outros, como Étienne Balibar, apelam à esquerda internacional para que dê o seu total apoio à resistência ucraniana e, pelo menos por enquanto, deixe outras considerações de lado ou em segundo plano. Como vê este debate?
Não concordo verdadeiramente nem com Chomsky nem com Balibar. A minha opinião é que a prioridade acima de tudo deve ser salvar as vidas ucranianas, as cidades ucranianas, a economia ucraniana. Quanto mais cedo se conseguir um acordo de paz, mais vidas se salvarão, menos cidades serão destruídas e menos a economia será prejudicada. Se a guerra tender a arrastar-se, se já não se tratar de parar a invasão russa, mas de, por exemplo, provocar a queda de Putin - que pode não ser um objetivo alcançável - isso significará transformar a Ucrânia no Afeganistão. Um lugar onde uma guerra eterna dura anos a fio, com um estado falhado, com a economia a regressar a um estado pré-moderno, com a indústria completamente destruída e milhões de refugiados incapazes de regressar a casa durante anos. E este cenário, honestamente, seria o melhor cenário possível para a Ucrânia caso esta guerra degenerasse num conflito nuclear. Claramente, não desejo isto para o meu país.
No que diz respeito à Ucrânia, e deixando de lado a propaganda russa sobre uma "Ucrânia Nazi" que não existe, existem certamente elementos de extrema-direita na Ucrânia. Grupos que hoje em dia são insignificantes do ponto de vista eleitoral, mas que durante a guerra do Donbass fortaleceram a sua penetração nas forças armadas. Pensa que é inevitável que uma situação de guerra prolongada em todo o país conduza à ascensão e capacitação destas forças ultra-nacionalistas que cresceram durante a revolução do Maidan e depois ganharam posições de poder no aparelho de defesa e segurança?
Sim, sem dúvida. No caso de uma guerra prolongada, haveria uma destruição progressiva do Estado ucraniano e das instituições militares, proporcionando mais oportunidades para que os grupos radicais assumissem o controlo. Quanto mais mortos e feridos entre a população causados pela invasão russa, maior é a destruição, maior é o ódio. E movimentos que concentram a sua retórica no ódio e capitalizam o ódio mais facilmente crescerão nesse cenário, como é óbvio. Aqueles que falam em fazer da Ucrânia um novo Afeganistão para as tropas russas [em referência à derrota soviética em 1989 e à derrota dos EUA em 2021], aqueles que dizem que temos de nos preparar para resistir numa guerra a longo prazo estão a abrir a janela através da qual as forças de extrema-direita entrarão para assumir o controlo.
Acontecerá exactamente como aconteceu no Médio Oriente: foi o colapso das instituições estatais causado pela invasão estrangeira no Iraque, o colapso institucional na Líbia, na Síria, que criou o espaço para grupos extremistas tomarem o poder em grandes partes desses países, com consequências desastrosas. Não compreendo como é que algumas pessoas podem esperar um cenário diferente no caso de uma guerra prolongada na Ucrânia.
Num artigo recente para a Al Jazeera, lamenta o fim da Ucrânia multicultural em que cresceu. Será isto devido ao crescimento esperado destes grupos de extrema-direita, desta ideologia ultra-nacionalista? Vê o fim desta ideia de uma Ucrânia multicultural e multiétnica como inevitável?
Esta é uma de várias razões. Antes da guerra, eram possíveis as chamadas identidades ambíguas na Ucrânia. Alguns ucranianos entendem a sua identidade nacional como uma oposição à Rússia, mas muitos outros não entendem a sua ucranidade desta forma. Muitas pessoas sentem-se ucranianas e russas ao mesmo tempo. Por exemplo, em muitas famílias o pai é russo e a mãe ucraniana. Ou o contrário. Tudo isto será muito difícil depois desta guerra. O russo é agora o inimigo. Milhares de pessoas estão a sofrer devido a esta invasão. A posição que a língua russa goza hoje em dia na Ucrânia será provavelmente perdida. Esta guerra será - está a ser - uma grande transformação na forma como os ucranianos pensam sobre si próprios, sobre a sua identidade e sobre o russo e os russos. A reconciliação é possível, claro. Foi possível mesmo após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo depois do Holocausto. Mas levará muitos anos e exigirá mudanças políticas muito sérias, tanto na Ucrânia como na Rússia.
Na sua coluna para a Al Jazeera, critica a recente decisão do governo ucraniano de suspender 11 partidos da oposição pelos seus pontos de vista "pró-russos", expressos antes da invasão. Entre eles, o segundo partido mais votado do país. Nesse artigo também lembra ao leitor que a esquerda já estava muito enfraquecida no panorama político ucraniano, e decisões como esta, que reduzem as vozes dissidentes, só a enfraquecem ainda mais. Neste cenário, quais são as perspetivas dos movimentos sociais ucranianos e das forças progressistas em plena invasão russa? Haverá lugar para eles na resistência contra o ataque e ocupação russa?
Quais são actualmente as oportunidades para os sindicatos e movimentos sociais na Síria ou na Líbia, por exemplo? Um dos horrores da guerra é que ela fecha qualquer espaço para quaisquer movimentos sociais progressistas, tal como os conhecemos. A guerra requer movimentos completamente diferentes, como uma guerrilha, movimentos militarizados, paramilitarizados. E não há absolutamente nenhuma oportunidade para lançar um tal movimento na Ucrânia de hoje. Muitas pessoas dos movimentos sociais e de esquerda na Ucrânia estão a alistar-se nas Forças de Defesa, mas o seu impacto político, nestas circunstâncias, será insignificante. Atualmente, não há qualquer hipótese de mudar nada na ideologia dominante ou na orientação da guerra.
O debate fora da Ucrânia sobre onde centrar a análise para compreender o que está a acontecer é ainda mais complicado pelo facto de haver uma pressão constante da corrente política dominante, que acusa a esquerda de ser suspeita de parcialidade pró-russa e, portanto, cúmplice na invasão. Vê uma divisão dentro da esquerda da Europa central e oriental entre um campo mais anti-NATO e um campo mais anti-russo? Acha que este é um bom quadro para um debate dentro do campo progressista?
Mas será que esta invasão torna a extrema-direita menos extrema? Será que a torna algum tipo de organização patriótica, anticolonial e visionária? Claro que não. E a guerra não era inevitável. Sabemos que foi apenas em Fevereiro que a CIA começou a ver sinais de tomada de decisões russas a favor da guerra, quando essa acumulação de tropas estava em curso desde Outubro. Durante todos aqueles meses, houve oportunidades para uma solução diplomática para este conflito e muito poderia ter sido feito de forma diferente.
A esquerda deve ter posições de ofensiva e não estar sempre a pedir desculpa, "oh, estávamos a falar demasiado sobre a NATO e não o suficiente sobre a Rússia, etc.". Devemos manter as nossas posições, apontar para a complexidade do problema, defender a verdade. Não abraçar o oportunismo de saltar de um extremo - falando apenas da expansão da NATO como se a Rússia não tivesse culpa na guerra - para o outro - uma visão completamente russócêntrica, em que o debate sobre a NATO e o nacionalismo ucraniano é marginalizado, mesmo tabu. Discutir a NATO e o nacionalismo ucraniano não é justificar a invasão russa. É necessário ver estes fatores como parte do quadro geral, e como parte do problema que conduziu a esta guerra. Caso contrário, eles procurarão apresentar-se como parte da solução.
Sabemos que há muitos fatores que conduziram a esta guerra. Putin tem, sem dúvida, a primeira e principal responsabilidade. Foi ele que carregou no botão, apesar de ter outras opções. A guerra foi a sua escolha, e ele é e será culpado por ela. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que outras forças contribuíram para nos trazer até aqui. Não basta simplesmente dar um tom "esquerdista" à narrativa de guerra da tua classe dirigente e desatar a repetir platitudes sobre o "imperialismo russo". Há muito para estudar e compreender sobre o imperialismo russo como um fenómeno real, e a simples repetição de clichés superficiais não melhorará a nossa análise nem a nossa capacidade de propor formas de sair desta guerra.
Entrevista de Francisco Claramunt, publicada em La Brecha a 24 de março de 2022. Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.
Volodymyr Ishchenko é doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional Taras Shevchenko em Kiev e é investigador associado no Instituto de Estudos da Europa Oriental da Universidade Livre de Berlim. O seu trabalho tem-se centrado no estudo da sociedade civil, protestos e movimentos sociais na Ucrânia e na região. É autor de vários artigos académicos sobre política ucraniana contemporânea, a revolta da Euromaidan e a guerra civil ucraniana que começou em 2013-2014. Publicou em Post-Soviet Affairs, New Left Review, Globalizations, Commons: Journal of Social Criticism, entre outras revistas especializadas, e colaborou com o Guardian e a Jacobin, entre outros órgãos internacionais. Está neste momento a trabalhar na obra coletiva The Maidan Uprising: Mobilisation, Radicalisation and Revolution in Ukraine, 2013-2014. Desde o início da invasão russa, tem sido solicitado por inúmeros órgãos de comunicação internacionais para partilhar a sua leitura dos acontecimentos. O Esquerda.net já resumiu em quatro partes (aqui, aqui, aqui e aqui) o seu trabalho sobre a esquerda ucraniana antes e depois de 2014. Esta entrevista foi publicada na revista uruguaia La Brecha.