Henri Acselrad, A terra é redonda, 2 de julho de 2020
O retorno à cena pública brasileira de ideias autoritárias e social-darwinistas nos remete a uma antiga discussão sobre as relações entre memória e História: a memória, por um lado, originada em fontes orais; a historiografia, por outro, tendo por base documentos escritos analisados por quem não necessariamente vivenciou a experiência histórica. Aos poucos, firmou-se a ideia de que história e memória se conectam e se complementam. Poderíamos acrescentar que quando, com medo do julgamento da História, os agentes de práticas violentas exercidas em regimes autoritários ocultam e destroem documentos, como foi o caso dos criminosos nazistas na Europa e dos torturadores e promotores do regime de exceção no Brasil, a memória é mais do que um complemento – ela torna-se um instrumento essencial para a própria História. O testemunho dos que viveram este passado é indispensável para se restituir o que ocorreu de modo que historiadores possam, por sua vez, procurar explicar analiticamente por que isto ocorreu.
A contribuição da memória para a História pode ser representada de diversos modos. Entre as metáforas-chave evocadas para exprimir os trabalhos de rememoração[i], há referências à arquitetura – a memória seria como uma construção, composta de relatos e imagens. Há também menção à arqueologia: a memória procederia a uma escavação das camadas mais ou menos profundas de experiências passadas. É comum também o uso da metáfora da cartografia: rememorar seria rever os espaços percorridos no passado para melhor mapear e escolher as trajetórias do presente. “Não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial”, nos diz Halbwachs[ii]. “As lembranças afloram nos lugares”, acrescenta a escritora Siri Hustvedt[iii], retomando os escolásticos do século XIII: as memórias precisam de localização para funcionar. Lugares mentais facilitam a retenção das lembranças e espelham uma concepção da realidade. Isso explica que existam lugares de memória destacados, hoje, para espelhar o projeto democrático. Instalações onde concentraram-se as práticas da tortura durante a ditadura 1964-1985, por exemplo, são devidamente assinaladas para confrontar os que promovem o esquecimento, festejam ditaduras e cultuam a desumanidade.
A ausência de um trabalho de memória junto às escolas e o silenciamento sobre os crimes da ditadura nos levaram a esta espécie de democracia truncada que hoje conhecemos, favorecendo o surgimento na opinião pública de uma parcela – é preciso reconhecer – protofascista, que, para muitos, vem sendo alimentada a partir da ignorância e da exploração da ignorância. Mas é preciso lembrar também que, ao lado do esquecimento das arbitrariedades do regime de exceção, um trabalho de mascaramento dos fatos foi desenvolvido ativamente, não só nos meios militares, mas também fora dele.
Vale a pena, a este propósito, revermos um episódio de promoção da falsificação histórica ocorrido em pleno auge da ação repressiva da ditadura. No Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, o diretor-geral – então nomeado pelo regime – promoveu, nos anos de 1970 e de 1973, dois concursos de redação, cartazes e hinos destinados a premiar os alunos afinados com a ideologia vigente[iv]. Dizia a Portaria de 31 de março de 1970: “Considerando que deve ser despertado entre a juventude o interesse de analisar os benefícios proporcionados ao País pela Revolução de 31 de março de 1964; considerando que é oportuno e salutar induzir os jovens alunos à elaboração de trabalhos sobre a Revolução de 1964, resolve instituir entre os membros do corpo discente um concurso, cujo prêmio principal consistirá numa viagem de ida e volta a Manaus, com todas as despesas pagas aos autores dos melhores trabalhos sobre a ´Revolução de 31 de março de 1964 e seus benefícios`”[v]. A Comissão Julgadora era integrada por membros das Forças Armadas designados pelo Ministro do Exército. Ao todo, nos dois concursos, foram premiados os trabalhos de 77 alunos, tendo sido as redações publicadas na íntegra em dois volumes editados pelo próprio Colégio. Além da viagem a Manaus – dita “para conhecer as ações militares na selva” – um dos concursos previa prêmios em dinheiro.
As redações premiadas, além de conterem reproduções de peças da propaganda oficial enaltecendo a “segurança nacional” e as obras do governo, traziam claros indícios da distância entre a pregação do regime e as provas dos fatos. Afirmavam, por exemplo, que “a popularidade crescente do Governo Médici, já observada por alguns analistas da imprensa internacional, emana não apenas da recuperação do prestígio do Poder executivo ou da dignidade restabelecida da figura presidencial, mas do próprio processo de reeducação do povo.”; ou: “estaríamos envolvidos por um caos total, se não fosse a redentora Revolução de Março de 1964, que veio pôr fim a um longo período de práticas demagógicas, subversivas e subservientes, pois insãiradas (sic), muita vez, por nações tradicionalmente inimigas das democracias.”; ou, então: é “extraordinária no Brasil de hoje a união que sentimos em todas as classes, imbuídas do mesmo ideal. As divergências foram totalmente sanadas; hoje o ideal de um é o de todos, independente de cor, credo, posição…”[vi]. Entre os hinos compostos para o concurso (segundo as normas estabelecidas , “a melodia podia ser marcha ou canção, porém de cunho épico”)[vii], encontrava-se uma “Saudação musical ao Almirante Rademaker” (“Seja Benvindo Augusto Vice-Presidente…”) e uma antipoética metáfora da “Menina Revolução” (“Tudo ia muito mal até que a menina acabou com o carnaval…) [viii]
Através de entrevistas realizadas quarenta e cinco anos depois com uma dezena dentre os alunos premiados nos referidos concursos, foi possível recolher alguns elementos da memória daquela experiência. Foram várias as justificativas para a participação dos entrevistados nos certames: alguns alegaram terem deles participado por razões utilitárias (“Eu queria era ir para a Amazônia!”; ou, “a Zona Franca na época era um negócio interessante do ponto de vista de comprar calça jeans”), sem – então, como hoje – acreditarem na justeza do regime que enalteciam em suas redações. Outros alegaram terem participado dos concursos por acreditarem então na justeza do regime, embora avaliem hoje terem sido, à época, iludidos ou terem se enganado; um ex-aluno alegou ter deles participado por, então como hoje, acreditar na justeza do regime de exceção.
O apoio dos próprios pais, por vezes, pesava: “Meu pai advogava para os militares e eu pedi a ele para me ajudar, me dar algumas ideias. Nós escrevemos o trabalho e ele corrigiu”. Mas a capacidade daqueles jovens questionarem o material de propaganda era, de fato, limitada: “A cada ano que a ´Revolução` fazia aniversário era uma enxurrada de material na própria imprensa. Foi mais ou menos em cima daquilo que eu me baseei. Eu peguei as informações do que aconteceu.” Apesar dessa crença na veracidade do discurso oficial, esse mesmo entrevistado reconhece que não teria sido possível a alguém participar do concurso se escrevesse que o país vivia sob uma ditadura: “Quem não concordasse, não iria se expor dessa forma, escrevendo para criticar. Não teria chance de ganhar e ainda atrairia sobre si olhos indesejáveis”. Outra concorrente premiada afirma que “tudo era muito confuso, sem levar em conta as opiniões do povo brasileiro, que não tinha direito de defender uma educação onde o aluno pudesse questionar o professor, colocar suas ideias, pois não devemos aceitar tudo que é imposto. É importante termos nossas ideias e poder defendê-las”. Como completou outra informante, por serem muito jovens, alguns estudantes não teriam sido capazes de relacionar o concurso com o regime de exceção que o Brasil vivia: “acredito que teríamos uma visão mais crítica desses concursos e seu real objetivo, se na época tivéssemos mais idade”.
Foi através deste tipo de “espontânea colaboração”, nos termos do Diretor da instituição, que, “a mocidade mostrou que não permitiria que aventureiros e bolchevistas internacionais concretizassem o seu macabro propósito de desmoralizá-la”[ix]. O concurso integrava, assim, uma espécie de pedagogia da desinteligência, que transformava a educação em um rito destinado a inibir a crítica e difundir o mote autoritário de que “aqui, não se fazem perguntas”.
Este exemplo de disseminação da falsificação histórica mostra que além do exercício da violência repressiva e da censura, os regimes de exceção empenham-se em desqualificar seus oponentes e capturar ideologicamente seus potenciais críticos, indicando que o terror de Estado não é capaz, por si só, de eliminar completamente o pensamento crítico. Cabe reconhecer, por outro lado, que também nos contextos em que vigoram liberdades formais, como os de hoje, as condições de produção e circulação de um pensamento reflexivo não são totalmente livres de constrangimentos e ameaças.
Como afirma Hustvedt: “a memória só concede os seus dons quando sacudida por algo do presente”[x]. A presença viva de uma ideologia neofascista no país é hoje um alerta para sacudir nossa memória. Pois é visível a convergência que hoje se configura entre, por um lado, os valores de um projeto neoliberal – que enaltece a competição social-darwinista, que produz e justifica as desigualdades como inerentes à competição e, por outro lado, uma discriminação ofensiva que os sujeitos autoritários escancaram com relação aos despossuídos e aos diferentes. Reconstituir uma memória justa – fiel à experiência dos que têm e tiveram, ao longo da história, sua dignidade e seus direitos desrespeitados é um passo importante para se barrar a reprodução do racismo e das desigualdades.
No mito grego da invenção da escrita pelos deuses, o deus Theuth jactou-se de que a escrita seria um recurso salvador para a memória e o saber[xi]. O Rei Thamus o contestou, alegando que a escrita poderia, ao contrário, levar a que os homens se descuidassem da memória, pois eles poderiam passar a confiar excessivamente nos textos escritos, ao invés de gravar as recordações vivas em suas próprias almas. Sabemos que todo o apreço que temos pelos livros e documentos como registros escritos da memória e do conhecimento deve ser acompanhado de um estímulo à sua preservação, dadas as ameaças de sua possível destruição. Mas sabemos também que esses registros impressos devem ser sempre expostos à discussão e interpretação, de modo a que se possa revisitar e, como pensava Thamus, gravar nas mentes as recordações vivas, alimentando e atualizando, como somos hoje chamados a fazer, as lutas em defesa das liberdades públicas. O pensamento de La Boétie, já no século XVI, alertava que “por mais profunda que seja a perda da liberdade, ela nunca está perdida o bastante; nunca se acaba de perdê-la”[xii]. Na contraface do que postulou La Boétie, no Brasil de hoje, o exercício da memória mostra que por mais que se conquistem liberdades, elas nunca estarão conquistadas o bastante.
*Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ).
Notas
[i] Fernanda Arêas Peixoto. “Derivas urbanas, memória e composição literária”. Redobra, n. 13, ano 5, 2014, pp.29-34;
[ii] Maurice Halbwachs, A Memória coletiva, ed. Vértices, São Paulo, 1990.
[iii] Siri Hustvedt, A mulher trêmula, Cia das Letras, São Paulo, 2011, p. 97.
[iv] Este episódio é descrito em maior detalhe em H. Acselrad, “A educação e as desventuras do debate de ideias”, Revista Brasileira, ano VI, n. 91, abril-maio-junho 2017, p. 153-160, Rio de Janeiro.
[v] Colégio Pedro II, A Revolução de 1964 julgada pelos estudantes de 1970, Rio de Janeiro, 1970, p. 13.
[vi] Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973. pp. 33, 47 e 68.
[vii] Colégio Pedro II, op. cit., 1973, p.22.
[viii] Colégio Pedro II, op. cit., 1973, p 323 e 303.
[ix] Colégio Pedro II, op. cit., 1973, p.11.
[x] Siri Hustvedt, op. cit.
[xi] Werner Jaeger, Paideia, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1956.
[xii] Pierre Clastres, “Liberdade, mau encontro, inominável”, in Etienne La Boétie – Discurso da Servidão Voluntária. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1982.