Verónica Gago e Luci Cavallero, Revista Anfibia e elsaltodiario.com, 18 de abril de 2020
O vírus acelerou em todo o planeta a compreensão do neoliberalismo em seus mecanismos perversos sobre corpos concretos. Alguém imagina o que seria desta pandemia sem o debate que o feminismo e outras militâncias vêm fazendo sobre a politização dos cuidados, dos trabalhos essenciais invisibilizados, o endividamento público, os extrativismos, a violência machista? O campo de batalha do capital contra a vida não é abstrato, está composto de cada uma das lutas contra a precariedade que estão atravessando agora mesmo esta crise.
Das imagens de dor que circulam faz semanas, não há trivialidade possível. O vírus acelerou de forma simultânea em todo o planeta a compreensão do neoliberalismo em seus mecanismos mortíferos sobre corpos concretos. Poderíamos dizer que isto não é uma novidade. O neoliberalismo mostrou que convive perfeitamente com máquinas de morte: as que acontecem nas fronteiras e nos campos de refugiadxs, para lembrar as mais brutais. Mas agora o vírus, que não discrimina por classe e não seleciona segundo o passaporte, montou um ensaio geral da vida neoliberal como um espetáculo que vemos acontecer online, com um contador necropolítico em tempo real. A partir disto, há dois lugares de enunciação que não nos resultam eficazes. Um rápido atestado de óbito para o capitalismo (que inclui desde o editorial do Washington Post passando por teóricos consagrados) ou, em contraponto, uma insistência de que a pandemia confirma o controle capitalista totalitário sobre a vida.
Queremos propor então uma série de pontos que atualizam uma agenda aberta, coletiva, que existia antes da pandemia e que nos serve, como recurso comum, para respirar e imaginar saídas.
Estender a quarentena às finanças
A medida que avançam os números de corpos infectados pelo vírus, as bolsas de todo o mundo vão caindo. Mais uma vez, as finanças exibem sua dependência da força de trabalho quando se trata de manter os valores. Os governos pró-austeridade da Europa deram meia volta e desviaram recursos para os serviços sociais de emergência, mas reforçando traços nacionalistas ou securitistas. Na Argentina, a emergência deslocou a renegociação da dívida com o FMI, enquanto o próprio FMI — junto ao Banco Mundial — pediu o perdão da dívida para alguns países para aliviar os efeitos da pandemia.
No entanto, isso não anula o problema do endividamento público e privado. Mas também nos cria a exigência de expandir a quarentena financeira além da pandemia. Uma semana antes de que surgir o primeiro caso de coronavírus na Argentina, as feministas marchávamos com uma bandeira que dizia “A dívida é com a gente” e “Vivas, livres e sem dívidas nos queremos!”, pondo imagens concretas ao diagnóstico que agora se tornou sentido comum: que o capital explora nossas vidas precarizadas tenhamos ou não salário.
Sabemos que uma possibilidade que se lança nesta crise a nível global é o relançamento da dívida privada como maneira de completar a renda que não é suficiente para pagar aluguéis que se acumularão, para comprar alimentos cada vez mais caros e para pagar serviços públicos. Um novo ciclo de endividamento foi o que se mostrou como solução na Europa e Estados Unidos para retomar o consumo depois da crise de 2008. Há capacidade para que desta vez essa “saída” não seja nossa opção?
Com base em demandas específicas dos movimentos sociais, vários governos adiaram o pagamento de empréstimos pessoais e hipotecários, suspenderam ordens de despejo e concederam renda extraordinária para a quarentena. A pergunta é o que acontecerá quando estas medidas forem relaxadas e, sobretudo, que não consigam evitar o endividamento pessoal para atravessar a crise. Fica evidenciada uma disputa pelo destino e o montante das despesas sociais. Legitimados como extraordinários pela emergência sanitária, não podem ser tratados apenas como medidas de exceção, porque são o pontapé inicial de uma reorganização necessária e urgente do uso dos dinheiro público e da reorientação da estrutura tributária.
Sabemos que os subsídios sociais que parecem meras transferência monetários estão carregados de valores morais que legitimam ou deslegitimam formas de vida. Desde o bordão de que os subsídios incentivam a vagabundagem (uma discussão que remonta o século XVIII) aos mandatos de gênero combinados com cortes no orçamento, podemos ver qual população é selecionada a cada momento para assumir privações e punições. Agora, diante do suspense global da austeridade como medida emergencial, a disputa é como se determina politicamente a quem é dada a ajuda e como deixar de ter caráter transitório.
A batalha pelo público nada mais é que uma batalha pela redistribuição da riqueza. Quem contêm o colapso são xs trabalhadorxs da saúde e as redes e organizações populares que produzem desde máscaras até a partilha de alimentos. Hoje mais do que nunca é possível questionar a segmentação classista no acesso à saúde.
Aqui se lança também uma concepção sobre o trabalho, sobre quem produz valor e sobre que modos de vida merecem ser assistidos, cuidados e pagos.
Nesse sentido, aqui se inscrevem as reivindicações pela renda básica, universal, por uma renda de cuidados e o que, de modo geral, se poderia pensar como um “salário feminista”. Todas medidas indissolúveis, para que sejam efetivas, da ampliação dos serviços públicos.
O doméstico como laboratório do capital
O atraso de alguns governos em decretar a quarentena ou o deboche sobre a gravidade da pandemia em outros marcou cenários políticos bem diversos. Estão os líderes que em uma performance de virilidade decadente apostaram em um malthusianismo social com consequências catastróficas — como vemos nos Estados Unidos, Grã Bretanha e como se anuncia no Brasil e na Índia. Poderíamos pensar em cada uma destas respostas como uma particular conjunção entre um neoliberalismo que não se deixa morrer e formas fascistas que vem em sua salvação. Há outros líderes que cortaram as medidas de segurança dxs trabalhadorxs — como no Chile e no Equador ou até certo momento na Itália. Na Argentina, no entanto, o governo se antecipou com medidas sanitárias e econômicas para a contenção dos efeitos da pandemia. A quarentena como medida pública está sendo eficaz em reduzir a quantidade de contágios por dia, um marco para países com sistemas de saúde devastados por anos de políticas neoliberais.
Por outro lado, como se insiste especialmente nas perspectivas feministas, sabemos que há múltiplas formas de quarentena, segmentadas por gênero, raça e classe e, mais ainda, que nem todos os corpos têm a possibilidade de ficar em uma casa, e os confinamentos implicam em abusos e violências machistas para muitxs. Neste panorama aparece a complexidade, revelada a seguir, do que implicam medidas sanitárias globais e generalizadas. Por isso, vemos como as lutas por direito à moradia se interconectam e se complexificam com as denúncias de aumento da violência machista. O recorde de feminicídios em tempos de quarentena exibe algo que já vínhamos diagnosticando: a implosão de lares, verdadeiros campos de guerra para muitas mulheres, lésbicas, travestis e trans que ensaiam táticas de fuga e que agora, com o vírus, passam 24 horas com seus agressores. A barulheira feminista de segunda passada na Argentina trouxe voz para esta violência surda. Houve panelaço nas ruas das favelas, nas sacadas e quintais, inventando formas de protesto para evidenciar que a quarentena não deve ser sinônimo de isolamento. Porque a casa não pode ser um lugar de especulação imobiliária nem de violência machista, e que quando passar esta pandemia restará um horizonte em relação à luta pelo acesso à moradia e uma reflexão ainda mais profunda: onde e como queremos morar? O que significa produzir uma espacialidade feminista que problematize o #ficaemcasa proposto pelos governos, não apenas contrapondo como alternativa à violência machista a construção de abrigos? Também aqui a pergunta que se reitera é por que lar é sinônimo de família nuclear heterossexual: é nestas famílias que aconteceram 12 feminicídios nos primeiros 10 dias de quarentena. Estes diagnósticos são profusos graças a uma politização feminista que os trouxeram à tona desde o primeiro momento e que desfizeram a ilusão de espaço doméstico como lugar seguro.
Queremos dar um passo além e nos perguntar como o capital aproveitará esta medida de confinamento para reconfigurar as formas de trabalho, os modos de consumo, os parâmetros de renda e as relações de sexo e gênero. Mais concretamente: estamos diante de uma reestruturação das relações de classe que toma como primeiro plano o âmbito da reprodução?
A politização do espaço doméstico é uma bandeira feminista. Dissemos que ali se produz valor, que os cuidados que mantêm a vida são historicamente invisibilizados e imprescindíveis, que o confinamento entre quatro paredes é uma ordem política de hierarquias patriarcais. Podemos ler aqui uma tradução do capital que busca aproveitar esta crise super-explorando o espaço doméstico? Será que o imperativo do teletrabalho, da escola em casa, do home-office, está levando ao máximo a exigência de produtividade a essa casa-fábrica que funciona porta adentro e todos os dias da semana sem limite de horário? Quem pode assegurar que terminada a emergência sanitária esses avanços na flexibilização do trabalho que atomizam xs trabalhadorxs e que xs precarizam ainda mais vão retroceder?
Voltamos a nos perguntar: de que tipo de casas falamos? Interiores com pouco espaço, saturados com cargas familiares, agora também devem ser produtivos em trabalhos que há alguns uns dias eram feitos em escritórios, fábricas, oficinas, comércios, escolas e universidades. Há uma exigência de hiperatividade enquanto nos movemos menos. O capital minimiza os custos: nós, trabalhadorxs, pagamos o aluguel e os serviços de “nosso” local de trabalho; nossa reprodução social se não “precisamos” de transporte para ir trabalhar fica mais barato; enquanto o delivery por aplicativos assegura logísticas precárias de entrega.
O espaço doméstico também excede às casas: é composto pelos espaços dos bairros e comunidades, que são super-explorados diante da crise, que inventam redes com recursos escassos e que faz tempo já falam de uma situação de emergência.
A leitura feminista do trabalho torna-se uma chave antineoliberal geral
A quarentena amplifica a cena da reprodução social: quer dizer, a evidência da infraestrutura que mantém a vida coletiva e da precariedade que suporta. Quem mantém a quarentena? Todos os cuidados, as tarefas de limpeza e manutenção, os múltiplos trabalhos do sistema de saúde e de agricultura, hoje são uma infraestrutura imprescindível. Qual é o critério para declará-los como tal? Que expressam o limite do capital: aquilo que a vida social não pode prescindir para continuar. Também existe toda uma logística e partilha do capitalismo de plataforma que, apesar de confiar na metafísica dos algoritmos e no GPS, dependem de um corpo concreto. Esses corpos, em geral imigrantes, são os que cruzam a cidade deserta, os que permitem — com sua exposição — manter e abastecer o refúgio de muites.
Trata-se de áreas de trabalho que tem traços de trabalho feminilizado e precário. As tarefas historicamente desprezadas, mal pagas, não reconhecidas ou diretamente declaradas como não-trabalho se revelam como a única infraestrutura insubstituível. Uma espécie de inversão do banquete do reconhecimento. O trabalho comunitário desempenha um papel fundamental aqui: dos centros de saúde à coleta de lixo, dos refeitórios às creches, substituíram o que foi privatizado, despido e subfinanciado sucessivamente. Tão insubstituíveis são estas tarefas que em muitos bairros se tornou impossível pensar em uma quarentena que implique em um confinamento em cada casa, surgindo a frase “Fique em seu bairro”.
Estas infraestruturas coletivas são as verdadeiras tramas da interdependência, nas quais a reprodução é delegada, ainda que siga sendo desprezada. Se isto estava claro apenas em países de terceiro mundo, hoje é o cenário imediatamente global.
É sobre estas tarefas que o movimento feminista fez uma pedagogia do reconhecimento nos últimos anos, chamando greves internacionais e aprofundando diagnósticos que evidenciaram a precarização como uma economia específica da violência. Hoje, esse diagnóstico é capa de todos os jornais do planeta. A partir desta constatação, é necessário pensar na reorganização global dos trabalhos — seus reconhecimentos, salários e hierarquias — durante e pós-pandemia. Falando de outra maneira: a pandemia pode ser também o ensaio geral de outra organização de trabalho. Não podemos ser ingênuas a respeito disso. Haverá uma tentativa de corrigir a crise de legitimidade do neoliberalismo com mais fascismo: mais medo, mais ameaças de outrxs como inimigxs e tudo o que leva a uma elaboração paranóica da incerteza compartilhada.
A greve em disputa ou quem tem o poder de “parar”
Poderíamos dizer que o freio de mão do mundo que foi acionado pela pandemia parece um simulacro de “greve”. Depois da enorme paralisação feminista internacional na América Latina (ainda que na Itália já não tenha acontecido pelo coronavírus e na Espanha as feministas tenham sofrido acusações por tê-la feito), não deixa de ser impressionante essa “inversão” da paralisação, da detenção em nível global. E ainda assim a pandemia não deixa de se encher, em seu interior, de chamados à greve: de aluguéis, dxs trabalhadorxes da Amazon, dxs metalúrgicxs na Itália, de trabalhadorxs da saúde, de estudantes.
Como afirmaram as feministas da Coordenadora 8M do Chile, é necessário uma greve das tarefas que não sejam essenciais para a reprodução da vida. Sem dúvida, a greve em tempos de coronavírus é um elemento em disputa. Por um lado, como já dissemos, nesta “paralisação” do mundo dos trabalhos feminilizados — esses que visibilizamos com a greve feminista — se evidenciam como os únicos que não podem parar. E isso hoje está mais claro que nunca. Por outro lado, há uma exigência de greve dos pagamentos: aluguéis, hipotecas, serviços básicos, juros de dívidas. Diante de tarefas essenciais, a receita financeira e imobiliária é o que deve parar de extrair valor e de manter as promessas de austeridade no futuro.
O campo de batalha do capital contra a vida se lança hoje sobre que trabalhos são declarados essenciais e como remunerá-los de acordo com esse critério, implicando em uma reorganização global do trabalho. O campo de batalha do capital contra a vida se lança hoje na capacidade coletiva que tenhamos de suspender a extração de rendas (financeira, imobiliária, das empresas transnacionais do agronegócio responsáveis pelo colapso ecológico) e de modificar as estruturas tributárias. Este campo de batalha não é abstrato. É composto de cada luta durante a crise, de cada iniciativa concreta. O desafio é conectar as demandas que surgem de diversos territórios e transformá-las em um horizonte futuro aqui e agora.
Tradução sem fins lucrativos feita por Estela Rosa e revisada por Luciana di Leone para o Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ, autorizada pelas autoras.