A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis do comércio internacional e seus agentes, é a que cria uma escassez 'artificial' de vacinas, o que gera lucros astronômicos à custa de não ter vacinas suficientes para aliviar as graves consequências da pandemia e prevenir a morte de milhões de seres humanos
Vicenç Navarro, Público, 3 de feveriro de 2021. A tradução é do Cepat.
Estamos imersos em uma das maiores crises sociais e econômicas que o mundo já experimentou. A evidência científica que apoia tal observação da realidade é esmagadora. De indicador a indicador (da mortalidade da população ao emprego), mostra-se a enorme dor e sofrimento que a pandemia está causando. E as pessoas sabem disso.
Os níveis de cansaço, frustração e indignação que a maioria da população está passando em grande parte dos países dos dois lados do Atlântico Norte preocupa em grande medida os maiores centros de reflexão dos establishments econômicos e financeiros, bem como os fóruns políticos e midiáticos em cada país.
Do que não se fala nos debates sobre a pandemia
E, consequentemente, está havendo um grande debate sobre como responder a esta pandemia. Mas neste debate começam a ser abordadas temas que eram intocáveis até agora. Vou me explicar. Há um fato que não é tratado nesses fóruns políticos e midiáticos e que, no entanto, é de grande importância. Já sabemos controlar, conter e, portanto, superar a pandemia. Temos o conhecimento científico e os recursos para resolver alguns dos maiores problemas que existem e prevenir tantas mortes.
Além do mais, sabemos como a pandemia pode ser controlada para recuperar um certo grau de normalidade. O leitor deveria conhecer essa realidade. A ciência sabe hoje como isso poderia ser resolvido. E não me refiro apenas às ciências virológicas e epidemiológicas e outras ciências básicas da saúde pública, mas também às aplicadas, como as ciências sociais e econômicas. Sei do que estou falando.
Também sou professor da Johns Hopkins University, incluindo sua bem conhecida Escola de Saúde Pública, de onde são realizados os bem conhecidos estudos sobre a pandemia, conhecidos e citados internacionalmente. E posso garantir que sim, se sabe como controlar a pandemia. Sabemos, por exemplo, que não é possível haver recuperação econômica sem primeiro conter a pandemia. Ignorar o segundo para corrigir o primeiro, como fez a administração Trump, levou a um desastre econômico, social e de saúde. Nenhum país conseguiu isso.
Novamente, existem milhares de dados que mostram o grande erro de ignorar essa realidade. Agora, o leitor perguntará: se sabemos controlar a pandemia e temos recursos para isso, por que isto não é feito? E outra pergunta que deriva da anterior é: por que os meios de comunicação não estão noticiando e os governos não estão agindo?
O silêncio ensurdecedor sobre a razão pela qual não se resolve o que é solucionável
A resposta à última pergunta é fácil de saber e tem a ver com a ideologia e a cultura dominantes nesses países, o que torna difícil ir além do que o pensamento hegemônico permite considerar. Um desses obstáculos é, por exemplo, o sacrossanto “dogma da propriedade privada”, considerado fundamental para a sobrevivência da ordem social, esta última marcada por outro dogma, o das também sacrossantas “leis do mercado” como o melhor sistema de alocação de recursos. Esses dogmas regem o comportamento dos meios político-midiáticos da maioria dos grandes países dos dois lados do Atlântico Norte e desempenham um papel essencial para dificultar o controle da pandemia.
Um claro exemplo disso. O motivo da falta de vacina
Como indiquei em um artigo recente (“Por que não existem vacinas anticoronavírus suficientes para todos? Público, 30-12-20), o maior problema que existe no controle da pandemia no mundo, hoje, é a falta de vacinas contra o coronavírus, carência que ocorre até em países considerados ricos dos dois lados do Atlântico Norte, o que é um absurdo, já que são países ricos (e, aliás, um grande número de países pobres possui os recursos para produzir as vacinas).
Na verdade, o desenvolvimento da parte mais essencial na produção das vacinas de maior sucesso (Pfizer e Moderna) ocorreu com fundos públicos, em instituições públicas, em países ricos (e, muito especialmente, nos Estados Unidos e Alemanha). É o que reconhece nada menos que o presidente da Federação Internacional de Indústrias Farmacêuticas, Sr. Thomas Cueni, em um artigo publicado no New York Times, há algumas semanas: "The Risk in Suspending Vaccine Patent Rules", 10-12-20.
Nele sinaliza que "é verdade que sem fundos públicos de agências [instituições públicas do governo federal dos Estados Unidos] como U.S. Biomedical Advanced Research and Development Authority e o Ministério Federal de Educação e Pesquisa, na Alemanha, as empresas farmacêuticas globais não teriam sido capazes de desenvolver vacinas covid-19 e de modo tão rápido”. O Sr. Cueni poderia ter acrescentado que isso também ocorre com a maioria das grandes vacinas que vem sendo produzidas há muitos anos.
A parte fundamental no desenvolvimento de qualquer vacina é o conhecimento básico, que costuma ser pesquisado em centros públicos ou com fundos públicos para pesquisa em saúde. A indústria farmacêutica, que sem esse conhecimento básico não poderia desenvolver vacinas, utiliza tal conhecimento para avançar em sua dimensão aplicada, ou seja, a produção de vacinas.
Mas o que o presidente dessa federação internacional esquece de mencionar é que, além de utilizar o conhecimento básico que os Estados financiam, esses mesmos Estados oferecem às empresas farmacêuticas um grande presente, garantindo-lhes um monopólio na venda do produto por muitos anos, que podem chegar até vinte, o que lhes garante lucros astronômicos (os mais altos do setor empresarial de qualquer país).
Aí está a origem da falta de vacinas. Simples assim. A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis do comércio internacional e seus agentes, é a que cria uma escassez "artificial" de vacinas, o que gera lucros astronômicos à custa de não ter vacinas suficientes para aliviar as graves consequências da pandemia e prevenir a morte de milhões de seres humanos.
O que poderia ser feito?
O mais lógico seria que, como propõe Dean Baker (o economista que analisou a indústria farmacêutica internacional com maior detalhe, rigor e senso crítico), os Estados que já financiaram o conhecimento básico ampliassem sua intervenção para incluir, além do conhecimento básico, o aplicado, produzindo eles próprios as vacinas, que ficariam muito mais baratas (já que não teriam que incluir nos custos de produção os enormes lucros empresariais).
E o leitor questionará: por que não se faz o que parece lógico? Bem, a resposta também é fácil. Devido ao enorme poder político e midiático da indústria farmacêutica em nível nacional e internacional. Dean Baker documenta muito bem a natureza dessas conexões.
Na realidade, entre um grande número de especialistas em saúde pública nos Estados Unidos, há uma posição generalizada de que o objetivo legítimo do mundo empresarial privado de colocar como meta principal a otimização de seus benefícios econômicos deveria ser limitado ou até mesmo rejeitado nas políticas públicas que têm como objetivo otimizar a saúde e minimizar a mortalidade.
Essa percepção decorre do fato de que mesmo os Estados Unidos mostram claramente que a privatização da saúde, administrada por empresas com fins lucrativos (que é a situação mais comum naquele país), provocou um enorme conflito entre os objetivos empresariais e a qualidade e segurança dos serviços.
Os Estados Unidos são o país que mais gasta com saúde (a maior parte privada) e onde há mais pessoas insatisfeitas com o atendimento recebido, com 32% da população em estado terminal preocupada em como seus parentes pagarão por seu atendimento médico. A otimização da taxa de lucro é um princípio insuficiente e enormemente perigoso para a saúde da população (a escassez de vacinas é um exemplo disso).
Estamos ou não estamos em uma situação de guerra, como dizem?
A linguagem que as autoridades que estão constantemente impondo enormes sacrifícios à população usam é uma linguagem bélica. Estamos lutando, dizem, "em uma guerra contra o vírus" (que a extrema direita classifica como "chinês", tentando recuperar a Guerra Fria, substituindo a URSS pela China). Na realidade, nos Estados Unidos, o número de mortes por covid-19 é maior do que o número de mortes causadas pela Segunda Guerra Mundial.
O que acontece é que aqueles que assim falam, não acreditam. É um recurso que utilizam para forçar o controle dos movimentos da população (o que me parece lógico e razoável), mas, por outro lado, continuam preservando meticulosamente os dogmas liberais da propriedade privada e as leis do mercado, dogmas deixados de lado no passado em situações reais de guerra.
Como é possível justificar que os governantes das instituições da União Europeia (a maioria sendo conservadores e liberais) respeitem os direitos autorais das empresas farmacêuticas que produzem a vacina contra o coronavírus? Durante a Segunda Guerra Mundial, toda a produção industrial foi orientada para a fabricação do material de guerra necessário. Por que não fazer o mesmo agora? Caso se forçasse a fabricação em massa dessas vacinas por parte das empresas farmacêuticas em todos os países ou em grupos de países, seria possível vacinar rapidamente a população, não apenas dos países ricos, mas de todo o mundo.
Como era previsível, a União Europeia, do seu Parlamento à Comissão Europeia e os seus outros órgãos dirigentes (a maioria governada por partidos conservadores e liberais), se opôs a isso, pois está presa aos seus dogmas, que já demonstraram estar falidos durante o período neoliberal e que, apesar de seu grande fracasso, continua dominando os meios político-midiáticos dos dois lados do Atlântico Norte.
Ao menos nos Estados Unidos, a nova administração federal do governo Biden, sob pressão da comunidade científica (e das forças progressistas lideradas por Bernie Sanders), está pedindo a Lei de Produção de Defesa do país (aprovada pelo presidente Harry Truman), que obriga toda a indústria a se colocar a serviço da defesa do país para produzir o material necessário para prevenir e controlar a pandemia. A justificativa para apelar a tal lei é que o bem comum deve estar acima de todos os interesses privados, exigindo que a indústria farmacêutica anteponha o bem comum a seus interesses particulares. O mesmo se aplica a diversos produtos, como seringas especiais e outros. Vamos ver se isso acontece.
Seria bom se o mesmo acontecesse na Europa. Nem preciso dizer que as direitas de sempre - de Trump às direitas da Espanha (incluindo a Catalunha) - acusam aqueles que querem forçar tal produção de "sócio-comunistas". Acontece em todo o mundo. Portanto, os cidadãos deveriam se mobilizar para questionar tantos dogmas que provocam tantos danos à população. Encorajo os leitores a organizar e enviar textos e cartas de protesto a tais instituições, pois se isso pode ser feito, que assim seja. O que acontece é que o dogmatismo e as crenças os impedem de enxergar.