A retirada das tropas ocupantes coincide com o aniversário das duas décadas do atentado que lhe serviu de pretexto. Neste dossier, olhamos para a situação do país que assiste ao regresso dos talibãs e para o que mudou ou ficou na mesma durante 20 anos de mais uma guerra fracassada dos EUA.
Dossier organizado por Luís Branco, Esquerda.net, 5 de setembro de 2021
Assinalam-se este mês vinte anos dos atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque, um acontecimento que mudou o mundo e deu o pretexto à invasão e posterior ocupação militar do Afeganistão e a uma série de guerras promovidas pelos EUA no Médio Oriente.
Vinte anos depois, o resultado dessa ocupação, apresentada ao mundo como libertadora para os direitos humanos do povo afegão, ficou bem evidente nos dias da contagem decrescente para a retirada militar da NATO. Os talibãs que tinham sido afastados do poder em 2001 avançaram pelo país sem resistência que se visse, recolhendo pelo caminho o arsenal do exército afegão que abandonou os seus postos.
Afinal, quanto dinheiro foi gasto pelos EUA na “guerra ao terror” que declararam após o 11 de Setembro? 21 biliões de dólares, concluem os autores do recém-lançado relatório do Institute for Policy Studies. Neste dossier, Luke Savage descreve o relatório, que conclui que apenas com uma parte do dinheiro gasto na guerra ao terror, os Estados Unidos podiam ter descarbonizado completamente a sua rede elétrica, eliminado a dívida estudantil, prolongado o Crédito Fiscal Infantil da era covid por dez anos, garantido o pré-escolar gratuito, financiado as vacinas covid em todo o mundo - e ainda sobrava dinheiro para gastar.
A "guerra ao terror" teve também um custo ao nível dos direitos de quem vive nos EUA. Uma semana antes dos atentados do 11 de Setembro, Anthony Romero tomava posse como presidente da histórica associação de defesa dos direitos civis ACLU. E sublinha agora o muito que ainda há por desfazer na legislação norte-americana nos ataques aos direitos dos cidadãos impostos pelo Patriot Act, uma lei feita à pressa e aprovada quase por unanimidade sob a pressão da tragédia.
Na hora da retirada, não faltaram os “falcões” nas colunas de opinião a defenderem a bondade da vingança norte-americana contra Bin Laden e da ocupação que agora termina, agitando a defesa dos direitos humanos para recriminarem a decisão de Biden, mas sem nunca admitirem o embuste que significou estas duas décadas de ocupação, como lembra o dirigente bloquista Luís Fazenda no seu artigo.
Também Gilbert Achcar se refere aos críticos da retirada da NATO do Afeganistão, respondendo que o destino do governo-fantoche afegão não podia ser diferente dos anteriores no país conhecido por “cemitério de impérios”. Mas distancia-se dos que veem um paralelo histórico com a retirada norte-americana de Saigão, contrapondo antes o desabamento do exército iraquiano formado pelos EUA no verão de 2014 face à ofensiva do Estado Islâmico. Ainda no que toca a analogias históricas, o escritor Tariq Ali prefere a do Sudão no século XIX na vitória das tropas do Mahdi contra o império britânico. E acusa os EUA de nada terem construído que pudesse resgatar a sua missão, como aliás já tinha ficado evidente nos “Afghanistan Papers”, o relatório encomendado por Washington sobre o estado da guerra em que altas patentes militares admitem o seu total desnorte face à situação do país e à razão da sua presença ali.
Neste dossier, ouvimos as vozes das mulheres da RAWA, vozes da resistência aos talibãs muito antes do 11 de setembro e também de resistência aos ocupantes nas décadas que se seguiram. Falam de 20 anos que trouxeram “mais desilusões e mais lágrimas”, por entre “insegurança, guerra generalizada e incerteza sobre o futuro, atentados suicidas, assassinatos seletivos, corrupção desenfreada, drogas e dependência, pobreza e população deslocada”. Um relato bem diferente do que os propagandistas da NATO apregoam acerca dos benefícios que trouxeram à situação vivida pelas mulheres naquele país.
Como relata o artigo da investigadora Jenevieve Mannell, a própria agência norte-americana USAID fez um inquérito demográfico e de saúde no país em 2015 que concluiu que 90% das mulheres am algumas regiões afegãs eram vítimas de violência por parte dos maridos. Nos mais de 200 relatos que a investigadora britânica recolheu, concluiu que eles “não são como as histórias de violência em qualquer outra parte do mundo”, devido à extrema brutalidade e culpabilização. Por outro lado, são totalmente indefesas face à violência, com as instituições que as deviam proteger - da polícia e agências governamentais aos próprios médicos - a contribuírem também elas para agravar os abusos.
Desde a retirada das tropas da NATO no fim de agosto, muito se tem discutido as diferenças e semelhanças entre os talibãs de 2021 e os de 2001. Publicamos neste dossier o “bilhete de identidade” possível, escrito pela investigadora belga Dorothée Vandamme, acerca da atual organização, hierarquia e objetivos dos talibãs e da sua evolução nas últimas décadas. Nele se conclui que está enganado quem veja essa evolução como uma gradação clara do extremismo para a moderação e que apesar da mudança aparente e do discurso suavizado, a substância do movimento não se alterou.
Olhamos também para um movimento sunita rival dos talibãs e que foi o responsável pelo atentado no aeroporto de Cabul em plena retirada de tropas e civis. O retrato do Estado Islâmico Khorasan é feito por Haroun Rahimi numa entrevista com a jornalista Amy Goodman no programa Democracy Now. E mostra um grupo intolerante face aos que não pensam exatamente como eles, que recruta sobretudo entre a juventude escolarizada e que estão apostados na desestabilização do país sob controlo talibã através de atentados protagonizados por células adormecidas em várias cidades.
Do outro lado da fronteira afegã, no Paquistão, o dirigente político do Partido dos Trabalhadores Awami, Farooq Tariq diz que a vitória dos talibãs não é um sinal de paz mas uma mensagem de guerra civil permanente e o surgimento de mais um Estado religioso fanático só irá promover o sectarismo religioso e ameaçar a paz naquela região.
Recuperamos também neste dossier a entrevista com o português que dirige uma missão humanitária em em Kandahar e que estava em Portugal quando os talibãs entraram em Cabul. Bruno Neto fala da transição de poder que já se tinha verificado na região onde trabalhava e diz não ter ficado surpreendido com a reação do povo afegão ao avanço dos talibãs, uma vez que entende que “não podemos levar a um país os direitos humanos com bombas”.