Sergio Amadeu, Andrea Iannuzzi, John Naughton, Evgeny Morozov e Byung-Chul Han. Dossiê organizado por José Correa Leite
O conceito de Shoshana Zuboff, capitalismo de vigilância, ganhou imensa atualidade com a pandemia do covid-19, que acelerou enormemente a digitalização da sociedade. Esse dossiê é apenas uma amostra da forma como a sociedade das décadas vindouras está sendo moldada pelas políticas e debates em curso.
Com as políticas de isolamento social e as restrições aos deslocamentos, as tecnologias digitais, já decisivas, se tornaram a base técnica da sociedade e a internet sua infraestrutura decisiva. Das plataformas de comércio e serviços ao teletrabalho, das teleconferências à educação à distância, a sociedade contemporânea acelerou, em uma onda de choque, a aplicação e difusão de tecnologias organizam o trabalho em condições de confinamento ou de forma individualizada, que intensificam as conexões virtuais ao ponto da hiperconectividade. Mudanças que, em outras condições, levariam décadas para serem incorporadas ao tecido social foram adotadas em questão de semanas.
Não haverá volta à normalidade. O impacto do que está acontecendo será duradouro sobre a economia e as relações sociais de produção, distribuição e reprodução; alguns ramos - como os transportes aéreos, grandes atividades de massa de cultura ou esportes ou ainda o turismo de massa - jamais recuperarão seu lugar anterior ou terão que se reorganizarão de forma muito diferente em um horizonte de muitos anos. Será duradouro também sobre a qualificação digital e sociabilidade cotidiana das pessoas. E isso ocorrerá mesmo que não surjam novas pandemias, que muitos cientistas consideram inevitáveis pela crescente intrusão da humanidade sobre ecossistemas antes distantes - que criam de dois a quatro novos vírus todos os anos. A covid19 ficará entre nós por muito tempo.
Ao mesmo tempo, inúmeros governos estão discutindo e muitos já estão aplicando dispositivos digitais de rastreamento para monitoramento e gestão de políticas de isolamento social, para planejamento e controle de reaberturas, para a gestão da pandemia e das populações. O Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi) do governo do estado de São Paulo já utiliza a movimentação de pessoas captadas pelas antenas dos celulares para determinar - quando elas se afastam 200 metros de suas residências - se rompem o isolamento. Algo totalmente insuficiente: um churrasco de vizinhos não é registrado como uma quebra do isolamento, mas uma ida a um supermercado mais distante sim.
Mas a resposta a essas limitações, que está sendo discutida por toda parte, é refinar a vigilância do estado, associada às empresas de tecnologia, adotando padrões análogos aos já adotados por chineses ou coreanos.
Os artigos abaixo, que reproduzimos como copyleft, nos introduzem aos debates sobre o que está acontecendo e o que isso significa.
O artigo de Andrea Iannuzzi, Rastreamento de contato, app e privacidade: o elefante na sala não são os dados, mas a vigilância, foi publicado no jornal italiano La Repubblica, 22 de abril de 2020 e é aqui reproduzido na tradução publicada em 24 de abril pelo site IHU Unisinos. Ele descreve as opções que estão sendo debatidas na Itália.
O artigo de opinião de John Naughton, Os aplicativos de contato não encerra o isolamento. Mas eles podem acabar com a democracia, publicado no The Guardian inglês, pontua bastante bem os problemas de direitos e democracia envolvidos e remete para dois excelentes relatórios em inglês.
O artigo de Evgeny Morozov, As “soluções” técnicas para o coronavírus levam o estado de vigilância para o próximo nível. Aí o autor aponta como os “revolucionários digitais” estão rompendo com tudo, menos com o mercado. O artigo, publicado no The Guardian de 15 de abril, foi traduzido para o português pelo site Outras palavras e aí publicado em 23 de abril.
J.C.L.
Rastreamento de contato, app e privacidade: o elefante na sala não são os dados, mas a vigilância
Quando falamos de sistemas de rastreamento gerenciados pelo estado, é importante garantir que eles não sejam transformados em instrumentos de controle do poder. O problema não será compartilhar dados pessoais por meio de app, mas como fazê-lo. Um modelo poderia ser aquele estudado no MIT de Boston, um pacto entre indivíduos para a troca de informações anônimas via Bluetooth.
Andrea Iannuzzi, La Repubblica, 22 de abril de 2020. Publicado em 24 de abril pelo site IHU Unisinos. Tradução de Luisa Rabolini.
No debate em torno do aplicativo "Immuni" - escolhido pelo governo para gerenciar o chamado rastreamento de contatos durante a fase dois da emergência da Covid 19 - um dos argumentos mais utilizados por quem é a favor para convencer os que duvidam é o seguinte: “Mas de que privacidade estamos falando! Com todos os dados pessoais que divulgamos na rede através do Google, Facebook ou Instagram, que problema existe para compartilhar nossas informações de saúde sobre o coronavírus?".
Colocado dessa maneira, no entanto, trata-se do clássico straw man argument, a falácia do espantalho, que representa uma falácia lógica no raciocínio. O compartilhamento voluntário de dados pessoais não está em questão, seja qual for o destinatário ou o gerente desses dados: uma empresa privada com sede na Califórnia ou um banco de dados do Ministério da Saúde são iguais, desde que cumpram as prescrições e regras previstas pela autoridade de garantia da privacidade. Se os dados são protegidos e gerenciados dentro do perímetro permitido por lei, sua cessão temporária não representa nenhum risco e, pelo contrário, pode ajudar a melhorar os serviços para a coletividade (basta pensar na elaboração dos big data sobre a mobilidade, mas também no campo da prevenção à saúde, apenas para permanecer no tema).
O perigo, quando se fala de um aplicativo que o Estado pede para instalar nos telefones de todos os cidadãos, diz respeito a um âmbito diferente do compartilhamento de dados: a vigilância. O que distingue um governo, embora democraticamente eleito, de uma empresa privada, é o poder de controle, vigilância e - teoricamente - limitação das liberdades pessoais. Isso é ensinado não pela distopia ficcional de Orwell, mas pela realidade revelada pelo Datagate e pelas revelações de Snowden. Sejamos claros, ninguém insinua que o aplicativo Immuni tenha sido projetado para espionar os italianos, mas esse é o tema do qual se pode e deve se ser discutir quando se fala de tutela da privacidade.
Quando o estado está no meio, devemos garantir a qualquer pessoa que não exista o perigo hipotético de uma intrusão por parte de quem detém o poder. Deve-se evitar, a priori, que as ferramentas tecnológicas disseminadas com as melhores intenções possam ser posteriormente transformadas em "backdoors", portas de serviço através das quais o Estado possa se intrometer na esfera inviolável de cada indivíduo, com finalidade de censura, discriminação, investigação não autorizada.
Para dar um exemplo: hoje, antes de colocar um telefone sob controle, os investigadores precisam da autorização de um magistrado. Deve-se evitar que amanhã essa ação possa ser realizada diretamente pelo Ministério do Interior com a simples inserção de software espião que transforma o aplicativo "bom" em "mau".
A objeção a esse argumento é a seguinte: o software espião já pode estar instalado agora. E o Facebook, apenas para citar um nome, mostrou toda a sua fraqueza na capacidade de proteger dados pessoais com o caso Cambridge Analytica. Verdade.
Mas em ambos os casos, esses são comportamentos de empresas privadas que podem e devem ser sancionadas pelo Estado, como ilegais ou incorretas. E, acima de tudo, são os riscos que cada um de nós aceita correr ao optar por compartilhar os próprios dados com aquelas plataformas. Mas se o estado primeiro obriga o cidadão a baixar um aplicativo em troca da liberdade de movimento e depois - eventualmente - abusa do aplicativo de maneira ilegal, quem vai proteger o cidadão?
É por isso que levantar dúvidas sobre o aplicativo Immuni não significa recusar-se a colaborar na solução de emergência Covid negando o compartilhamento dos dados, mas significa defender o princípio democrático e constitucional da inviolabilidade do indivíduo, para o presente e para o futuro.
Dito isto, o problema do rastreamento de contatos é real. Portanto, é preciso encontrar uma maneira de combinar as exigências de saúde pública com as de privacidade. Uma proposta que vai nessa direção foi desenvolvida nos últimos dias no MIT de Boston, em colaboração com uma série de parceiros internacionais: chama-se Pact, sigla para Private Automated Contact Tracing, que em inglês significa "pacto". Nesse caso, o pacto deve ser firmado entre cidadãos particulares, desviando a gestão dos dados por parte do Estado. O aplicativo seria baseado em especificações técnicas semelhantes às previstas pelo Immuni, ou seja, o uso da tecnologia Bluetooth presente nos telefones.
Parte-se do pressuposto de que o rastreamento de contatos é um procedimento previsto pela Organização Mundial da Saúde, que serve para reconstruir a posteriori os contatos feitos por uma pessoa infectada, para poder avisá-los e impedir que se tornem vetores inconscientes da disseminação da epidemia. Esse procedimento é realizado principalmente de maneira analógica: quando uma pessoa é positiva para o teste, é solicitada a fornecer uma lista de pessoas com quem teve contatos próximos nos dias anteriores à infecção, para que possam ser notificadas e, no caso, convidadas a se colocar em autoisolamento.
O projeto Pact prevê o uso de tecnologia para dar suporte o rastreamento de contatos. Cada sinal Bluetooth produz um código alfanumérico, unívoco e anônimo, que contém diferentes metadados, entre os quais também podem ser extrapolados a distância e o tempo de contato com outro Bluetooth. Quando uma pessoa resulta positiva, as autoridades sanitárias o convidam a compartilhar as informações de seu Bluetooth (letras e números) dentro de um banco de dados público, que é alimentado à medida que o número de infectados aumenta. Esse banco de dados pode ser consultado, diariamente e automaticamente, por todos os que baixaram o aplicativo, que receberão diariamente uma resposta: se o sistema identifica um contato próximo e prolongado entre o Bluetooth solicitante e um dos Bluetooth presentes no banco de dados, produz uma notificação no telefone do solicitante, que pode ser modulada no tempo e distância de exposição ao contato. Nesse ponto, o aplicativo o aconselhará a monitorar os sintomas, entrar em contato com o médico ou se colocar em autoisolamento.
A vantagem dessa solução é que se trata de um compromisso entre indivíduos particulares, que usa tecnologia, mas não desconsidera o envolvimento proativo do indivíduo. E evita muitos problemas de gestão não ortodoxa dos dados.
O "Pact" é um exemplo de como a tecnologia pode ajudar o homem, sem ser substitutiva. Iludir-se de que o aplicativo de rastreamento de contatos possa ser o visto de passagem para a nossa liberdade pós-covid, corre o risco de criar falsas expectativas e frustrações. Discutir como usá-lo, por outro lado, pode ser um passo importante para o retorno para a normalidade.
Os aplicativos de contato não encerra o isolamento. Mas eles podem acabar com a democracia
Uma solução tecnológica para a crise do tipo que está sendo buscada pelo governo britânico será ineficaz e um pesadelo para os direitos civis.
John Naughton, The Guardian, 25 de abril de 2020
Repita depois de mim: não há bala mágica para nos fazer superar esta pandemia. E o sensor de proximidade baseado no smartphone definitivamente não é essa bala, embora possa ser útil se duas condições forem cumpridas. Uma é que seja percebido pelos cidadãos como confiável e proteja sua privacidade; a outra é que ele seja implantado em conjunto com um aumento maciço da capacidade do estado para testes e tratamento. Nenhuma das duas condições será fácil de satisfazer.
Há indicações claras de que o governo britânico está agora considerando ativamente o uso da tecnologia como uma forma de facilitar o isolamento. Se isso sinaliza um surto de "solucionismo" tecnológico em Whitehall - a crença de que para cada problema há uma resposta tecnológica - então devemos nos preocupar. As soluções tecnológicas muitas vezes fazem tanto mal quanto bem, por exemplo, ao aumentar a exclusão social, falhando na prestação de contas e falhando em fazer incursões reais no problema que supostamente estão abordando.
A tecnologia envolvida, embora complexa, em essência fornece uma forma de automatizar o que tem sido uma forma de lidar com as pragas desde pelo menos os anos 1600: encontrar os infectados, prendê-los ou tratá-los e, em seguida, rastrear todos com quem eles estiveram em contato e colocá-los em quarentena também. Esta é uma tarefa muito trabalhosa, que não é viável em uma sociedade como a britânica. Mas muitos smartphones têm sensores Bluetooth de baixo consumo que registram automaticamente a proximidade de outros telefones equipados de forma semelhante, enquanto a maioria dos smartphones também registra sua localização usando sinais GPS. Portanto, em princípio, poderíamos usar smartphones para fazer rastreamento de contatos em larga escala.
Esse é o princípio. Na prática, há várias maneiras de usar essas capacidades no contexto do Covid-19. Modelos centralizados envolvem telefones equipados com um aplicativo para retransmitir seus dados, supostamente anonimizados, para um servidor central executado por uma autoridade de saúde governamental. Isto pode tornar as coisas simples para o governo, mas é um pesadelo em termos de vigilância estatal, especialmente se as autoridades tentarem tornar a instalação do aplicativo obrigatória.
Modelos descentralizados envolvem manter a maioria dos dados em seu telefone e só transmitir para todos os telefones para os quais você esteve próximo através de um servidor de retransmissão seguro se você tiver sido diagnosticado. Todos os telefones dos seus contatos irão então informar aos seus proprietários que estiveram em contato com um caso diagnosticado de Covid-19. E, é claro, todas as comunicações implícitas por isso são criptografadas por padrão. Como os indivíduos envolvidos são notificados imediatamente assim que alguém na sua proximidade é diagnosticado, este método encurta o risco de exposição e permite que os serviços de saúde suprimam o vírus rapidamente. Ele restaura a iniciativa para o indivíduo, diminui os riscos da vigilância do estado e protege melhor a privacidade dos usuários.
O rastreamento de contatos por smartphone marcaria uma mudança radical nos recursos de vigilância do estado
Você não precisa ser um cientista foguete, muito menos um especialista em TI, para perceber que existem legiões de demônios nos detalhes. [O Centro Edmond Safra de Ética de Harvard tem um guia muito bom para alguns deles: você pode baixá-lo clicando aqui.] Quem diz ao seu telefone que você foi diagnosticado, por exemplo? Dada a possibilidade de que - em um cenário pós-isolamento - indivíduos com Covid-19 possam estar sujeitos a estigma, assédio ou demissão, eles podem estar compreensivelmente relutantes em transmitir o fato.
Depois há o problema de nem todos terem um smartphone, apesar de ser comumente suposto nos círculos tecnológicos que isso acontece. A pandemia revelou que uma minoria significativa da população (em sua maioria pessoas mais velhas) ainda depende de telefones com poucos recursos. Além disso, acontece que nem todos os smartphones são criados iguais: uma estimativa é que 50% de todos os smartphones não podem usar os sistemas de sensor de proximidade que estão sendo desenvolvidos pela Apple e pelo Google. Dado que qualquer sistema de sensor de proximidade provavelmente teria que cobrir pelo menos 60% da população para ser verdadeiramente eficaz, isso significa que Matt Hancock (ministro da saúde da Inglaterra) estará dando aparelhos Huawei como o Smarties para os pobres usuários da Nokia?
Eu poderia continuar, mas você entendeu o ponto. O problema das balas mágicas é que às vezes elas erram seu alvo. O maior problema de todos com o rastreamento de contatos de smartphones, no entanto, é que isso marcaria uma mudança radical nas capacidades de vigilância do estado. Uma decisão tão importante não pode ser deixada para Matt Hancock e seus colegas em seu bunker em Downing Street. Este é um ponto central em uma revisão histórica da questão conduzida pelo grupo de pesquisa do Reino Unido, o Instituto Ada Lovelace [clique aqui para ver o sumário executivo e baixar o relatório em inglês]. A decisão de implantar uma tecnologia de sensoriamento de proximidade obrigatória, diz o instituto, é muito importante para ser deixada para os tecnocratas. Tem que haver um escrutínio parlamentar adequado e legislação primária com cláusulas reais de caducidade. Nada de se enganar com ordens em conselho de ministros assustados. Eu concordo. Se errarmos, não só não conseguiremos facilitar a abertura, como também podemos estar nos despedindo da democracia enrugada que ainda possuímos. Não há saída para o bloqueio através da App Store.
Solucionismo, nova aposta das elites globais
Tabu que proibia Estados de gastar caiu. Para evitar, a todo custo, que se examinem as causas da tragédia, os ultrarricos e corporações buscam saídas “tecnológicas”. Vale tudo – exceto contestar a supremacia dos mercados sobre as sociedades…
Evgeny Morozov, Outras palavras, 23 de abril de 2020. Tradução de Simone Paz.
Em questão de semanas, o coronavírus deu um apagão na economia mundial e mandou o capitalismo para a unidade de cuidados intensivos. Muitos pensadores têm manifestado sua esperança de que isso nos leve a um sistema econômico mais humano; outros alertam que a pandemia anuncia um futuro sombrio de vigilância estatal tecno-totalitária.
Os clichês datados, tirados das páginas do romance 1984, deixaram de ser guias confiáveis do que está por vir. O capitalismo de hoje é mais forte — e mais estranho — do que seus detratores imaginam. Seus inúmeros problemas não só apresentam novos caminhos para o lucro, como também aumentam sua legitimidade — já que, nas condições atuais, a única solução dependerá de pessoas como Bill Gates e Elon Musk. Quanto piores as crises, mais fortes são seus anticorpos: não é desse jeito que o capitalismo não acaba.
Entretanto, os críticos do sistema estão corretos em ver o covid-19 como uma confirmação de suas advertências. O vírus revelou a falência dos dogmas neoliberais de privatização e desregulamentação — mostrando o que acontece quando os hospitais são administrados com fins lucrativos e a austeridade reduz os serviços públicos. Mas o capitalismo não sobrevive apenas pelo neoliberalismo: este último só desempenha o papel do policial malvado, insistindo, com as palavras do mantra de Margaret Thatcher, em que “não há alternativa”.
Nesta novela, o policial bonzinho é a ideologia do “solucionismo”, que transcendeu suas origens no Vale do Silício e agora faz a cabeça das elites dominantes. Em sua versão mais simples, sustenta que como não há alternativas (ou tempo, ou dinheiro), o melhor que podemos fazer é colocar curativos digitais sobre os danos. Os solucionistas implantam tecnologia para evitar a política; defendem medidas “pós-ideológicas” que mantêm girando as engrenagens do capitalismo global.
Após décadas de políticas neoliberais, o solucionismo virou a resposta padrão para muitos problemas políticos. Por exemplo, por que um governo investiria na reconstrução dos arruinados sistemas de transporte público, tendo a opção de simplesmente usar Big Data para criar incentivos personalizados para cada passageiro, a fim de desencorajá-los a fazer viagens em horários de pico? Como o arquiteto de um desses programas em Chicago disse, há alguns anos: “soluções desde o ponto de vista da oferta, como a construção de mais linhas de transporte público… são muito caras”. Em vez disso, “o que estamos fazendo é procurar formas da tecnologia de dados administrar a demanda… ajudando os cidadãos a compreender qual o melhor horário para se deslocar”.
As duas ideologias têm uma relação bastante íntima. O neoliberalismo aspira a reformular o mundo de acordo com os manuais elaborados durante a Guerra Fria: mais concorrência e menos solidariedade, mais destruição criativa e menos planejamento estatal, mais dependência dos mercados e menos bem-estar social. O fim do comunismo facilitou essa tarefa — mas a ascensão da tecnologia digital acabou virando um novo obstáculo.
Mas como? Embora a tecnologia de dados e a inteligência artificial não favoreçam atividades para além do mercado, elas tornam mais fácil imaginar um mundo pós-neoliberal — onde a produção seria automatizada e a tecnologia serviria de base para sistemas de Saúde e Educação universais, para todos: um mundo em que a abundância seria compartilhada, e não apropriada.
É exatamente neste ponto que o solucionismo aparece. Se o neoliberalismo é uma ideologia proativa, o solucionismo é reativo: ele desarma, desativa e descarta toda alternativa política. O neoliberalismo encolhe os orçamentos públicos; o solucionismo encolhe a imaginação coletiva. O maior objetivo do solucionismo é convencer o público de que a forma legítima de uso das tecnologias digitais é perturbar e revolucionar tudo — com exceção da instituição central da vida moderna: o mercado.
Atualmente, o mundo está fascinado pela tecnologia solucionista — desde um aplicativo polonês, que exige que os pacientes com coronavírus tirem selfies regularmente para provar que estão dentro de casa, até o app chinês de avaliação da saúde em cores e códigos, que rastreia quem pode sair de casa. Governos têm procurado companhias como a Amazon e a Palantir para obter infraestrutura e modelagem de dados, enquanto Google e Apple unem suas forças para habilitar soluções de “preservação da privacidade” no rastreamento de dados. Assim que os países entrarem na fase de recuperação, o setor de tecnologia emprestará com alegria seus conhecimentos tecnocráticos para a faxina. A Itália já colocou Vittorio Colao, ex-CEO da Vodafone, como o responsável para liderar sua força-tarefa pós-crise.
De fato, podemos observar duas vertentes diferentes do solucionismo, nas respostas dos governos à pandemia: os “solucionistas progressistas” acreditam que a exposição oportuna às informações corretas, por meio de aplicativos, fará as pessoas se comportarem em favor do interesse público. Essa é a lógica do nudging (“cotovelada”), que moldou a desastrosa resposta inicial do Reino Unido frente à crise. Os “solucionistas punitivistas”, pelo contrário, querem usar a vasta infraestrutura de vigilância do capitalismo digital para restringir nossas atividades diárias e punir quaisquer transgressões.
No momento, já estamos há um mês debatendo como essas tecnologias podem ameaçar nossa privacidade — mas esse não é o pior perigo para nossas democracias. O verdadeiro risco é que essa crise consagre o kit de ferramentas solucionista como a opção padrão de abordagem de todos os outros problemas existenciais — desde a desigualdade até as mudanças climáticas. Afinal de contas, é muito mais fácil utilizar a tecnologia solucionista para influenciar o comportamento humano individualmente do que fazer perguntas políticas complexas sobre a raíz dos problemas que geraram tais crises.
Mas as respostas solucionistas para esta situação de catástrofe só farão com que diminua nossa imaginação pública — tornando ainda mais difícil imaginar um mundo sem os gigantes da tecnologia no domínio de nossa infraestrutura política e social.
No momento, somos todos solucionistas. Quando nossas vidas estão em risco, promessas abstratas de emancipação política são bem menos tranquilizadoras do que a promessa de um aplicativo que informa quando é seguro sair de casa. A verdadeira questão é se ainda seremos solucionistas no pós-pandemia.
A resiliência do solucionismo e neoliberalismo não se baseia em suas ideias subjacentes sejam supostamente boas, mas sim no fato tais ideias terem reformulado profundamente as instituições, incluindo os governos. O pior ainda está por vir: a pandemia vai fortalecer o Estado solucionista, assim como os atentados do 11 de setembro fortaleceram o estado de vigilância, criando uma desculpa para preencher o vácuo político com práticas antidemocráticas, desta vez, em nome da inovação — e não apenas da segurança.
Uma das funções do estado solucionista é desencorajar programadores, hackers e aspirantes a empreendedores a experimentar formas alternativas de organização social. Que o futuro seja das startups não é um fato natural, mas um resultado político. Nessa perspectiva, empreendimentos baseados em tecnologia mais subversivos, que poderiam impulsionar economias solidárias, não baseadas no mercado, morrem no estágio de protótipo. Há uma razão por trás do fato de não termos visto surgir nenhuma outra Wikipedia nos últimos vinte anos.
Uma política “pós-solucionista” deveria começar acabando com o binário artificial entre a ágil startup e o ineficiente governo que limita nossos horizontes políticos. A questão não deveria ser qual ideologia — social-democracia ou neoliberalismo — consegue aproveitar e domesticar melhor as forças da concorrência, mas sim: de que instituições precisamos para aproveitar as novas formas de coordenação social e inovação oferecidas pelas tecnologias digitais.
O debate atual sobre qual a resposta tecnológica correta para o covid-19 parece sufocado precisamente porque não temos nenhuma política pós-solucionista à vista. Ele gira em torno das compensações entre privacidade e saúde pública, por um lado, e em torno da necessidade de promover a inovação por startups, por outro. Por que não existem outras opções? Será que não é porque nós mesmos deixamos que as plataformas digitais e operadoras de telecomunicações tratassem todo o nosso universo digital como se fosse seu feudo.
Eles o executam com apenas um objetivo em mente: manter a micro-segmentação da publicidade e o fluxo dos micro-pagamentos. Como resultado, pouco se pensou na construção de tecnologias digitais que produzissem insights em nível macro sobre o comportamento coletivo de não-consumidores. As plataformas digitais atuais são locais de consumo individualizado, não de assistência nem de solidariedade mútuas.
Embora possam ser usadas com fins não-comerciais, as plataformas digitais de hoje são péssima base para uma ordem política aberta a outros atores que não sejam consumidores, startups ou empreendedores. Se não reivindicarmos plataformas digitais para uma vida democrática mais vibrante, seremos condenados por décadas a chegar à infeliz escolha entre solucionistas “progressistas” e “punitivistas”.
E, como resultado, é nossa democracia que vai sofrer. A festa do solucionismo desencadeada pelo covid-19 revelou a extrema dependência que as democracias reais têm no exercício do poder privado, não democrático, das plataformas tecnológicas. Nossa primeira meta deve ser a de traçar um caminho pós-solucionista, que nos dê soberania pública sobre as plataformas digitais.
Caso contrário, nos queixarmos sobre a resposta autoritária, porém eficaz, da China ao Covid-19 não será só patético, como também hipócrita: existem muitas formas de tecno-autoritarismo para o futuro — e a versão neoliberal não parece tão mais atraente do que a alternativa.
A emergência viral e o mundo de amanhã
Os países asiáticos estão gerindo esta crise melhor do que o Ocidente. Enquanto lá você trabalha com dados e máscaras, aqui você chega tarde e fecha as fronteiras.
Byung-Chul Han, El País, 21 de março de 2020
O coronavírus está testando o nosso sistema. Parece que a Ásia tem um melhor controle sobre a pandemia do que a Europa. Hong Kong, Taiwan e Singapura têm muito poucas infecções. Em Taiwan há 108 casos e em Hong Kong 193. Na Alemanha, por outro lado, após um período de tempo muito mais curto, já há 15.320 casos confirmados, e na Espanha 19.980 (dados de 20 de março). A Coreia do Sul também já passou a pior fase, assim como o Japão. Até mesmo a China, o país de origem da pandemia, tem tudo sob controle. Mas nem Taiwan nem a Coreia proibiram a saída das pessoas de suas casas ou fecharam suas lojas e restaurantes. Entrementes, começou um êxodo de asiáticos da Europa. Os chineses e coreanos querem voltar aos seus países porque se sentem mais seguros lá. Os preços dos voos se multiplicaram. Você dificilmente conseguirá mais passagens em voos para a China ou Coréia.
A Europa está fracassando. O número de pessoas infectadas está aumentando exponencialmente. Parece que a Europa não consegue controlar a pandemia. Centenas de pessoas estão morrendo todos os dias na Itália. Estão tirando doentes idosos dos respiradores para ajudar os jovens. Mas também podemos observar reações exageradas inúteis. O fechamento de fronteiras é obviamente uma expressão desesperada de soberania. Sentimos que estamos de volta à era da soberania. É o soberano que decide sobre o estado de exceção. É o soberano que fecha as fronteiras. Mas isso é uma demonstração vazia de soberania que é inútil. Seria muito mais útil cooperar intensamente dentro da Zona Euro do que fechar as fronteiras de uma forma louca. Entretanto, a Europa decretou também uma proibição de entrada de estrangeiros: um ato totalmente absurdo, tendo em conta que para a Europa é precisamente para onde ninguém quer vir. Na melhor das hipóteses, seria mais sensato decretar uma proibição de saída dos europeus, a fim de proteger o mundo da Europa. Afinal de contas, a Europa é atualmente o epicentro da pandemia.
As vantagens da Ásia
Em comparação com a Europa, que vantagens oferece o sistema da Ásia que é eficiente no combate à pandemia? Estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan ou Singapura têm uma mentalidade autoritária, que vem da sua tradição cultural (o confucionismo). As pessoas são menos relutantes e mais obedientes do que na Europa. Eles também confiam mais no Estado. E não só na China, mas também na Coreia ou no Japão, a vida quotidiana é organizada de forma muito mais rigorosa do que na Europa. Acima de tudo, para enfrentar o vírus, os asiáticos estão confiando fortemente na vigilância digital. Eles suspeitam que os grandes dados podem ter um enorme potencial para se defenderem da pandemia. Poder-se-ia dizer que na Ásia as epidemias não são combatidas apenas por virologistas e epidemiologistas, mas sobretudo por cientistas informáticos e especialistas em macrodados. Esta é uma mudança de paradigma que a Europa ainda não percebeu. Os apologistas da vigilância digital proclamariam que os grandes dados salvam vidas humanas.
A consciência crítica da vigilância digital é praticamente inexistente na Ásia. Já quase não se fala mais em proteção de dados, mesmo em estados liberais como o Japão e a Coréia. Ninguém está zangado com o frenesi das autoridades para recolher dados. Entretanto, a China introduziu um sistema de crédito social inimaginável para os europeus, que permite uma avaliação completa ou uma valorização dos cidadãos. Cada cidadão deve ser avaliado consistentemente no seu comportamento social. Na China, não há momento na vida quotidiana que não esteja sujeito a observação. Cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais é monitorado. Qualquer pessoa que atravesse um sinal vermelho, que tenha relações com críticos do regime ou que faça comentários críticos nas redes sociais, tem os seus pontos tirados. Então a vida pode tornar-se muito perigosa. Por outro lado, quem compra comida saudável online ou lê jornais relacionados com o regime ganha pontos. Qualquer pessoa que tenha pontos suficientes recebe um visto de viagem ou créditos baratos. Por outro lado, qualquer um que fique abaixo de um certo número de pontos pode perder o emprego. Na China, esta vigilância social é possível porque há um intercâmbio irrestrito de dados entre os provedores de Internet e de telefonia móvel e as autoridades. A proteção de dados é praticamente inexistente. O termo "esfera privada" não aparece no vocabulário chinês.
Existem 200 milhões de câmeras de vigilância na China, muitas delas com tecnologia de reconhecimento facial muito eficiente. Eles captam até as espinhas nos rostos. Não há fuga possível da câmara de vigilância. Estas câmaras com inteligência artificial podem observar e avaliar cada cidadão em espaços públicos, lojas, ruas, estações e aeroportos.
Toda a infraestrutura de vigilância digital já provou ser extremamente eficaz para conter a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim, é automaticamente capturado por uma câmara que mede a temperatura do seu corpo. Se a temperatura for preocupante, todas as pessoas sentadas no mesmo vagão são notificadas nos seus telefones celulares. Não é à toa que o sistema sabe quem estava sentado aonde no trem. As redes sociais relatam que até os drones estão sendo usados para monitorar as quarentenas. Se alguém quebrar a quarentena clandestinamente, um zangão voa até ele e ordena que ele volte para sua casa. Ele pode até imprimir uma multa e deixá-la cair do ar, quem sabe. Uma situação que seria distópica para os europeus, mas que aparentemente não está encontrando resistência na China.
Nem na China nem em outros estados asiáticos como a Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan ou Japão existe qualquer consciência crítica sobre vigilância digital ou o big data. A digitalização intoxica-os diretamente. Há também uma razão cultural para isto. Na Ásia, prevalece o coletivismo. Não há um individualismo acentuado. O individualismo não é o mesmo que egoísmo, que, efetivamente, também está difundido na Ásia.
Parece que o big data é mais eficaz no combate ao vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que se verificam atualmente na Europa. No entanto, devido à proteção de dados, não é possível na Europa uma luta digital contra o vírus comparável à asiática. Os provedores chineses de telefonia móvel e Internet compartilham os dados sensíveis de seus clientes com os serviços de segurança e com os ministérios da saúde. O Estado, portanto, sabe onde estou, quem encontro, o que faço, o que procuro, o que penso, o que como, o que compro, para onde vou. É possível que no futuro o Estado também controle a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue etc. Uma biopolítica digital que acompanha a psicopolítica digital que controla ativamente as pessoas.
Milhares de equipes de pesquisa digital foram formadas em Wuhan para procurar potenciais infectados com base apenas em dados técnicos. Com base apenas na análise de macrodados, eles descobrem quem está potencialmente infectado, quem tem de ser observado mais profundamente e eventualmente isolado em quarentena. No que diz respeito à pandemia, o futuro também está na digitalização. Em vista da epidemia, talvez até devêssemos redefinir a soberania. É soberano quem tem os dados. Quando a Europa proclama um estado de emergência ou fecha fronteiras, ainda está agarrada a velhos modelos de soberania.
Não só na China, mas também em outros países asiáticos, a vigilância digital está sendo extensivamente utilizada para conter a epidemia. Em Taiwan, o Estado envia simultaneamente a todos os cidadãos um SMS para localizar pessoas que tenham tido contato com os infectados ou para denunciar locais e edifícios onde as pessoas foram infectadas. Numa fase muito precoce, Taiwan utilizou uma ligação de vários dados para localizar pessoas potencialmente infectadas, de acordo com as viagens que tinham feito. Qualquer pessoa que se aproxime de um edifício na Coreia onde uma pessoa infectada tenha estado, recebe um sinal de alarme através do aplicativo "Corona-app”. Todos os locais onde houve infecção estão registados no pedido. A proteção e privacidade de dados não são levadas em consideração. Em todos os edifícios da Coreia, há câmaras de vigilância instaladas em todos os andares, em todos os escritórios ou em todas as lojas. É praticamente impossível deslocar-se em espaços públicos sem ser filmado por uma câmara de vídeo. Com os dados dos celulares e as imagens de vídeo, pode ser criado o perfil completo de movimento de uma pessoa infectada. Os movimentos de todos os infectados são publicados. Pode acontecer que casos secretos de amor sejam descobertos. Nos escritórios do Ministério da Saúde coreano há pessoas chamadas "rastreadores" que dia e noite não fazem nada além de assistir a filmagens em vídeo para completar o perfil de movimento dos infectados e localizar as pessoas que tiveram contato com eles.
Uma diferença notável entre a Ásia e a Europa são as máscaras de proteção. Na Coreia, não há praticamente ninguém que ande por aí sem máscaras respiratórias especiais que possam filtrar o ar dos vírus. Estas não são as máscaras cirúrgicas habituais, mas sim máscaras especiais de proteção com filtros, que também são usadas pelos médicos que tratam os infectados. Durante as últimas semanas, a questão prioritária na Coreia foi o fornecimento de máscaras para a população. Enormes filas foram formadas em frente às farmácias. Os políticos foram julgados pela rapidez com que abasteciam toda a população. Novas máquinas foram rapidamente construídas para a sua fabricação. Neste momento, parece que o fornecimento funciona bem. Há até uma aplicação que lhe diz qual a farmácia nas proximidades ainda tem máscaras em estoque. Creio que as máscaras de proteção, que foram fornecidas a toda a população desses países, contribuíram de forma decisiva para conter a epidemia.
Os coreanos estão usando máscaras antivírus mesmo no local de trabalho. Até os políticos só fazem as suas aparições públicas com máscaras de proteção. O presidente coreano também as usa para dar o exemplo, mesmo em coletivas de imprensa. Na Coreia, as pessoas sentem-se constrangidas se não usarem uma máscara. Na Europa, por outro lado, diz-se muitas vezes que elas não fazem muito bem, o que é um disparate. Por que é que os médicos usam então máscaras de proteção? Mas você tem que mudar sua máscara com frequência suficiente, porque quando elas ficam molhadas perdem sua função de filtragem. No entanto, os coreanos já desenvolveram uma "máscara de coronavírus" feita a partir de nano-filtros que pode até ser lavada. Diz-se que é capaz de proteger as pessoas do vírus durante um mês. Na verdade, é uma solução muito boa se não houver vacinas ou medicamentos. Na Europa, pelo contrário, até mesmo os médicos têm que viajar para a Rússia para obtê-las. Macron mandou confiscar essas máscaras para distribuí-las aos trabalhadores da saúde. Mas o que então receberam foram máscaras normais sem filtros com a indicação de que seriam suficientes para proteger contra o coronavírus, o que é uma mentira. A Europa está fracassando. De que serve fechar lojas e restaurantes se as pessoas continuam se aglomerando no metro ou no ônibus durante a hora de rush? Como podemos manter aí a distância necessária? Mesmo nos supermercados é quase impossível. Em tal situação, máscaras protetoras realmente salvariam vidas humanas. Está surgindo uma sociedade de duas classes. Quem tem o seu próprio carro está exposto a menos riscos. Mesmo as máscaras normais seriam úteis se fossem usadas pelos infectados, porque assim não expulsariam os vírus.
Nos países europeus quase ninguém usa uma máscara. Há quem o faça, mas eles são asiáticos. Os meus compatriotas na Europa queixam-se que olham para eles de forma estranha quando as usam. Há uma diferença cultural por detrás disto. Na Europa existe um individualismo que traz consigo o hábito de usar a cara descoberta. As únicas pessoas que usam máscaras são os criminosos. Mas agora, ao ver imagens da Coreia, habituei-me a ver pessoas mascaradas, de forma que os rostos descobertos dos meus concidadãos europeus são quase obscenos para mim. Eu também gostaria de usar uma máscara protetora, mas aqui não as encontramos.
No passado, a fabricação de máscaras, como a de tantos outros produtos, era terceirizada para a China. É por isso que agora não há máscaras disponíveis na Europa. Os estados asiáticos estão tentando fornecer máscaras de proteção a toda a população. Na China, quando também lá se tornaram escassas, até reequiparam fábricas para produzir máscaras. Na Europa, nem mesmo os profissionais de saúde estão recebendo-as. Enquanto as pessoas continuarem a se aglomerar em ônibus ou metrôs para ir ao trabalho sem máscaras de proteção, uma proibição de sair de casa logicamente não ajudará. Como você pode manter a distância necessária em ônibus ou metrôs durante as horas de pico? Uma lição que devemos tirar da pandemia deve ser a conveniência de se trazer a produção de certos produtos, tais como máscaras protetoras ou produtos medicinais e farmacêuticos, de volta para a Europa.
Apesar de todo o risco, que não deve ser minimizado, o pânico que a pandemia de coronavírus desencadeou é desproporcional. Mesmo a "gripe espanhola", que era muito mais letal, não teve um efeito tão devastador na economia. Do que se trata realmente? Por que é que o mundo está reagindo em pânico tão desordenado a um vírus? Emmanuel Macron até fala da guerra e do inimigo invisível que temos que derrotar. Estamos perante um regresso do inimigo? A "gripe espanhola" surgiu no meio da Primeira Guerra Mundial. Naquela época, o mundo inteiro estava cercado de inimigos. Ninguém teria associado a epidemia a uma guerra ou a um inimigo. Mas hoje vivemos em uma sociedade totalmente diferente.
Na verdade, já vivemos há muito tempo sem inimigos. A Guerra Fria acabou há muito tempo. Ultimamente, até o terrorismo islâmico parece ter mudado para áreas longínquas. Exatamente dez anos atrás eu argumentei em meu ensaio A Sociedade do Cansaço que vivemos em uma época em que o paradigma imune, que se baseia na negatividade do inimigo, perdeu sua validade. Como nos tempos da Guerra Fria, a sociedade imunologicamente organizada caracterizava-se por viver rodeada de fronteiras e muros, que impediam o movimento acelerado de bens e capitais. A globalização remove todos estes limites imunológicos para dar livre espaço para o movimento do capital. Mesmo a promiscuidade e permissividade generalizadas, que hoje se estendem a todas as áreas da vida, eliminam o negativismo do desconhecido ou do inimigo. Os perigos de hoje não estão na negatividade do inimigo, mas no excesso de positividade, que se expressa como excesso de desempenho, excesso de produção e excesso de comunicação. O negativismo do inimigo não tem lugar na nossa sociedade ilimitadamente permissiva. A repressão a cargo dos outros dá lugar à depressão, a exploração por outros dá lugar à autoexploração voluntária e à auto-otimização. Na sociedade do desempenho cada um guerreia sobretudo contra si mesmo.
Limites imunológicos e fechamento de fronteiras
Pois bem, no meio desta sociedade, tão enfraquecida imunologicamente pelo capitalismo global, o vírus irrompe repentinamente. Num estado de pânico, estamos mais uma vez erguendo limites imunitários e a fechar fronteiras. O inimigo está de volta. Já não estamos lutando contra nós próprios, mas contra o inimigo invisível de fora. O pânico excessivo diante do vírus é uma reação imune social, inclusive global, ao novo inimigo. A reação imunológica é tão violenta porque vivemos por muito tempo em uma sociedade sem inimigos, em uma sociedade de positividade, e agora o vírus é percebido como um terror permanente.
Mas há outra razão para o tremendo pânico. Mais uma vez, tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade. A realidade é vivida pela resistência que oferece, que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do "eu gosto", remove a negatividade da resistência. E na era pós-verdade das fake news e deepfake, emerge uma apatia para com a realidade. Então aqui é um vírus real, e não um vírus de computador, que causa um choque. A realidade, a resistência, está novamente a ser sentida sob a forma de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reação de pânico ao vírus é explicada por este choque de realidade.
A reação de pânico dos mercados financeiros à epidemia é também a expressão desse pânico que já é inerente a eles. Os choques extremos na economia global tornam-na muito vulnerável. Apesar da constante elevação da curva dos índices acionários, a política monetária arriscada dos bancos emissores gerou nos últimos anos um pânico reprimido que estava à espera de eclodir. O vírus é provavelmente apenas a pequena gota que encheu o copo. O que se reflete no pânico do mercado financeiro não é tanto o medo do vírus, mas o medo de si mesmo. A queda também poderia ter ocorrido sem o vírus. Talvez o vírus seja apenas o prelúdio de um crash muito maior.
Zizek afirma que o vírus deu um golpe mortal ao capitalismo, e evoca um comunismo sombrio. Ele até acredita que o vírus pode derrubar o regime chinês. Zizek está errado. Nada disso vai acontecer. A China poderá agora vender seu estado policial digital como modelo de sucesso contra a pandemia. A China mostrará a superioridade do seu sistema ainda mais orgulhosamente. E depois da pandemia, o capitalismo vai continuar ainda mais forte. E os turistas vão continuar a pisar o planeta. O vírus não pode substituir a razão. Além disso, é até mesmo possível que o estado policial digital de estilo chinês chegue ao Ocidente. Como Naomi Klein já disse, o choque é um momento propício para o estabelecimento de um novo sistema de governo. O estabelecimento do neoliberalismo também foi muitas vezes precedido por crises que provocaram convulsões. Isto foi o que aconteceu na Coreia ou na Grécia. Esperemos que após o choque causado por este vírus, um regime policial digital como o chinês não chegue à Europa. Se isso acontecesse, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção se tornaria a norma. Então o vírus teria alcançado o que nem mesmo o terrorismo islâmico alcançou plenamente.
O vírus não vai derrotar o capitalismo. A revolução viral nunca vai acontecer. Nenhum vírus é capaz de fazer revolução. O vírus isola-nos e individualiza-nos. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma forma, cada um só está preocupado com a sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em manter a distância uns dos outros não é uma solidariedade que nos permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Esperemos que por detrás do vírus venha uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que temos que repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e também a nossa mobilidade ilimitada e destrutiva, para nos salvarmos, para salvarmos o clima e o nosso belo planeta.
Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta sul-coreano que ensina na Universidade das Artes em Berlim. Ele é autor, entre outras obras, de 'A Sociedade da Cansaço', publicada pela Vozes e 'Louvor à Terra'.