As lições não aprendidas nos anos da pandemia
A desigualdade de vacinação que maculou 2021 não será remediada em 2022 se um pequeno grupo de governos continuar a se demonstrar sensível às razões das multinacionais dos medicamentos e indiferente ao direito à saúde. Se não mudarmos o curso, não haverá tratado pandêmico que resista.
Nicoletta Dentico, Il Manifesto, 2 de janeiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há três anos, nesta época, não tínhamos ainda conhecimento do grande e assustador evento que teria abruptamente interrompido as cinéticas da globalização e marcado a história com um arrasto inacreditável não só de natureza sanitária, mas com efeitos explosivos também na esfera psicológico-existencial, social e econômica. Uma Chernobyl no campo da saúde, assim foi definida.
Tantas coisas aconteceram nestes dois anos totalmente inesperadas. Algumas positivos, além de toda expectativa, como o rápido desenvolvimento das vacinas e - mais recentemente - de novas terapias contra a Covid.
Nunca antes houve um esforço científico dessa magnitude: 23 vacinas diferentes aprovadas em um ano em todo o mundo e centenas em desenvolvimento. Estima-se que essa incrível virada tenha salvado a vida de 750.000 pessoas apenas na Europa e nos Estados Unidos. Porém, muito mais coisas deram errado.
Muito errado. A Covid definiu 2021, um ano que ficará para a história pelas inúmeras comissões, painéis, cúpulas que, pelo menos em palavras, pretenderam aproveitar as lições desta pandemia, para não nos encontrarmos na mesma situação da próxima vez - porque com certeza haverá próximas vezes.
Novas comissões despontam no horizonte: a comunidade internacional decidiu de fato - em uma recente assembleia ad hoc da Organização Mundial da Saúde (OMS) - embarcar na negociação de um novo tratado pandêmico. Quase como se aquele pandêmico fosse um aceitável novo status do mundo, a figura desajeitada de uma nova ordem das coisas, e não o resultado de um fracasso histórico de visão e governança em escala mundial. Mas na véspera do terceiro ano de Covid-19, há lições importantes a compartilhar.
A primeira é que agir imediatamente é fundamental, mesmo à custa do exagero. Entre janeiro e fevereiro de 2020, por motivos inexplicáveis, o mundo não entendeu que o vírus desconhecido que estourou em Wuhan não ficaria confinado à China. Bastaram poucas semanas para que o novo patógeno amplamente anunciado em outros países transbordasse. É verdade que anteriormente outros coronavírus, como o SARS em 2003 e o MERS em 2012, não haviam causado pandemias. Também é verdade que as autoridades sanitárias pagam caro pelo anúncio de alarmes por emergências que depois não se cumprem; a OMS foi criticada pelo Parlamento Europeu em 2009 por declarar a pandemia de gripe H1N1, um evento com efeitos não particularmente graves. O mundo inteiro sabe que o princípio norteador de qualquer resposta a emergências de saúde é preparar-se para o pior, com investimentos adequados e treinamento de pessoal. Mas raramente acontece. A escolha, tentada várias vezes ao longo de dois anos, de aguardar que a evolução do vírus se manifestasse plenamente antes de tomar as medidas necessárias para alterar sua trajetória, pressupõe a decisão de tornar o vírus muito mais perigoso e abrir caminho para a pandemia.
A segunda é que a política continua a ter domínio sobre a saúde pública. Em dois anos de pandemia, vimos de tudo. Quantos líderes políticos colocaram em risco a vida de seus cidadãos, explorando a crise, menosprezando-a ou espalhando mentiras, só porque a verdade sobre a COVID-19 poderia prejudicar seus destinos políticos? Na Europa, chefes de governo consideraram a pandemia como uma oportunidade para uma bonificação social nacional lucrativa para os cofres do Estado. Em muitas partes do mundo, as medidas de emergência serviram aos autocratas da vez para "fazer uma limpeza", livrando-se de adversários políticos, ativistas e jornalistas, ou para impor regimes de desajeitada (in) segurança. No Brasil, o negacionista presidente Bolsonaro, emulando o descriterioso Trump, permitiu que o vírus circulasse sem ser perturbado em um país desigual e com estruturas sanitárias insuficientes para as necessidades da população.
Como se não bastasse, detonou três ministros da saúde e deixou à própria sorte inteiras comunidades indígenas da região amazônica. Haverá um juiz em Brasília ou em Haia capaz de impugnar os crimes do presidente que, alheio aos 600 mil mortos, pretende ser reeleito em outubro próximo? O que sabemos com certeza científica é que se o vírus tivesse estourado nos Estados Unidos em vez de Wuhan, as consequências teriam sido muito piores, independentemente do arroubo antichinês de Federico Rampini. Apesar de 824 mil mortes, os programas de vacinação nos EUA continuam envoltos em um inescrupuloso desvio ideológico e até mesmo usar a máscara identifica politicamente, em uma polarização que tira o respiro mais do que o vírus.
Na fase extrema e talvez terminal do capitalismo financeiro dominada pela "busca obsessiva de sempre novos campos da vida social, da existência humana e da natureza para serem transformados o mais rápido possível em dinheiro", para citar Luciano Gallino, o cinismo geopolítico dá as cartas contra as razões da saúde global. A comunidade internacional se resigna às novas variantes para não ceder à polêmica questão da suspensão dos direitos de propriedade intelectual em tempos de emergência. Perdemos um ano e a história nos julgará severamente. A desigualdade de vacinação que maculou 2021 não será remediada em 2022 se um pequeno grupo de governos continuar a se demonstrar sensível às razões das multinacionais dos medicamentos e indiferente ao direito à saúde. Se não mudarmos o curso, não haverá tratado pandêmico que resista.
Para sair do Covid, as patentes devem ser suspensas
As três proprietárias das vacinas contra o Covid mais difundidas e caras: Pfizer, Biontech e Moderna vão arrecadar 90 bilhões em 2021. Com lucros em torno de 41 bilhões. Enough! Como se costuma dizer em Wall Street. Certamente, mais do que suficiente para cobrir os custos da ciência financiada nos últimos anos para desenvolvê-las, para cobrir as pesquisas que não tiveram sucesso, os experimentos... Enfim, se quem pretende parar (e consegue muito bem) a suspensão das patentes de vacinas da Covid para permitir a produção em países que poderiam fazer isso e precisam urgentemente delas (Índia, Tailândia, África do Sul e Brasil na liderança), pensa se esconder atrás da ladainha da "a pesquisa é cara", desta vez seria melhor ficar calado
Daniela Minerva, La Repubblica, 31-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desta vez, dizemos, porque nós subscrevemos a ladainha, mas quando ela faz sentido: encontrar um medicamento custa montes de dinheiro, centenas de pesquisas que dão errado, os testes são onerosos e perigosos; ou seja: é preciso reconhecer lucros para a Big Pharma se quisermos sempre novos medicamentos. Também porque os governos não têm condições de financiá-los; aqueles virtuosos (e certamente não a Itália e nem mesmo a Europa) pagam pela pesquisa básica, mas depois têm que ceder diante do desenvolvimento. Então, ok: que a Big Pharma empilhe cédulas para seus acionistas. Mas, com a Covid, é hora de mudar a música. Já teve lucros em abundância.
E se não quisermos dizer basta porque é assustador deixar milhões e milhões de pessoas em países pobres à mercê do vírus enquanto corremos alegremente para a quarta dose, vamos dizer basta porque ou todos nos salvamos ou ninguém se salva. Agora estamos sofrendo os danos da variante Delta (indiana), a pior queda da bolsa nos últimos meses e o Natal morno são culpa da Ômicron (sul-africana). Outras virão e quem sabe o que vai acontecer. Para sair deste pesadelo, o mundo deve ser vacinado. Pena que seja a solidária e civilizada Europa na primeira fila a dizer não. Até os liberais dos EUA que, afinal de contas, possuem aquelas patentes, abriram a porta. Mas para que seja aprovada a suspensão das patentes, é preciso unanimidade por parte da OMC (Organização Mundial do Comércio), que nem mesmo colocou o assunto na agenda.
Vacina: “É preciso uma ação concreta sobre a liberalização das patentes”. O apelo de Vittorio Agnoletto
A revista especializada Sanità Informazione incluiu-o na lista dos dez profissionais da ciência que marcaram em nível mundial os 365 dias de luta contra a pandemia de 2021, especificamente com a campanha europeia de suspensão das patentes sobre as vacinas. O médico Vittorio Agnoletto, que já foi presidente da Liga de Luta contra a AIDS, porta-voz dos antiglobalistas nos dramáticos dias de Gênova em 2001, depois membro do Parlamento Europeu pela Refundação Comunista, é hoje o coordenador do Right2cure No Profit on Pandemic, à qual aderiram na Itália todos os sindicatos, incluindo os de base, Arci, Emergency, Libera, grupos católicos e paroquiais, com pessoas de destaque como Silvio Garattini e Don Luigi Ciotti.
Agnoletto 'festeja' o encontro (está em excelente companhia: com ele, entre outros, Antonella Viola, Alberto Mantovani, Giovanni Rezza) com a Covid: apesar de ter recebido a terceira dose, febre alta e dores. “Desde ontem estou melhor, mas para mim não foi de forma alguma um resfriado comum...”, nos conta.
Matteo Pucciarelli entrevista Vittorio Agnoleto publicada por La Repubblica, 31-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe alguma relação entre a disseminação da Ômicron e o fato de metade do mundo, quase sempre o mais pobre, não estar vacinado?
Claro, as variantes são o resultado de um erro espontâneo na replicação da propagação do vírus. Quanto mais o Covid-19 se replica, mais é possível que os erros provoquem novas variantes. Que são, portanto, o resultado da ausência generalizada de vacinas e medicamentos.
Sem a vacinação em massa mundial, a Covid está destinada a não desaparecer?
Na ausência de uma vacinação generalizada e em tempo curtos, o risco é justamente a formação de novas variantes e, portanto, o perigo de continuar assim. Até porque cada vez que surge uma nova variante não sabemos seu potencial de difusão e seu grau de periculosidade. Nem sabemos se as vacinas que estão disponíveis naquele momento serão capazes de neutralizar a nova variante, e leva meses de estudo para entendê-lo. O pedido, portanto, de ter vacinas produzidas em todo o mundo, é sim de justiça, igualdade e direitos, mas também de um egoísmo saudável se pensarmos na nossa economia.
O que podem significar os 'tempos curtos' que você mencionou anteriormente?
Já hoje, segundo a OMS, se as patentes de vacinas fossem suspensas e o conhecimento fosse socializado por três anos, o mundo ocidental, Coréia do Sul, Bangladesh, Índia, África do Sul e Brasil poderiam produzir novas vacinas. Assim, até a metade do ano de 2022, 70-75 por cento da população mundial seria vacinada. E consideramos que já foi perdido um ano de tempo, a Índia e a África do Sul apresentaram esse pedido em outubro de 2020, e com eles mais cem países do sul do mundo e cem Prêmios Nobel e ex-governantes como Mario Monti e Romano Prodi. Sem esquecer os apelos neste sentido do Papa Francisco e da OMS.
Quem se opõe à liberalização?
No ano passado, UE, Grã-Bretanha, Suíça, Cingapura, Austrália, Japão, Brasil e Estados Unidos se opuseram. Hoje, UE, Grã-Bretanha e Suíça continuam contrários.
Mario Draghi manifestou-se a favor da liberalização e na Europa ele tem um papel central e, antes dele, Joe Biden fez o mesmo: então por que não se consegue desbloquear?
Biden derrubou a posição de Donald Trump e hoje os EUA estão formalmente a favor, com o Secretário de Estado dos EUA pedindo um compromisso de todos os ministros da saúde do mundo ocidental. Draghi, por outro lado, nunca fez um ato político, mas apenas declarações. A posição da UE é apoiada pelos países europeus e sobretudo pelos governos alemão, francês e italiano. O curioso é que no Parlamento Europeu vários partidos que apoiam o nosso Executivo, como o Pd e o 5 Stelle, votaram várias vezes pela suspensão de patentes, sem impô-la, porém, aos governos de que fazem parte.
Doar vacinas não poderia ser uma solução?
Não. Como diz Dom Luigi Ciotti, caridade e esmolas nunca podem substituir os direitos. Além disso, menos de 25% dos suprimentos prometidos no passado chegaram ao destino. Em segundo lugar, porque nas doações é a nação que faz a doação que decide com base em seus interesses geopolíticos quanto e para quem doar. Em terceiro lugar, infelizmente muitas vezes as doses doadas estão perto do prazo de vencimento e não só não se consegue usá-las, mas quem as recebe deve assumir a tarefa de descartá-las. Nós, em todo caso, não pedimos a cessão das patentes, mas a suspensão. Opção prevista em casos excepcionais, e este é um deles, pelo estatuto da Organização Mundial do Comércio. Não são postos em causa os direitos à remuneração dos privados, mas trata-se de encontrar um equilíbrio entre os seus enormes ganhos e o número de mortes. Sem esquecer que essas vacinas foram em grande parte produzidas com fundos públicos.
Posto assim, quase parece que para as grandes empresas farmacêuticas não convém erradicar a Covid.
Eu apenas convido a refletir sobre o fato de que para as empresas produtoras de vacinas convém que o mundo rico seja periodicamente obrigado a comprar novas e maciças quantidades, para que a pandemia se transforme em endemia. A verdadeira questão é quais são as relações que ligam os vértices políticos que se opõem à liberalização com a Big Pharma. Desta última se pode entender a busca pelo lucro, mas não de quem deveria se preocupar com a saúde pública.
Por que é tão difícil ser um ferrenho defensor da ciência e ao mesmo tempo questionar a Big Pharma?
Porque a Big Pharma tem um poder enorme no mundo da política e da comunicação. Há mais de um ano pedimos um confronto na TV com a direção da Farmindustria, sem sucesso. Como é possível que a questão das patentes não se transforme no principal assunto de discussão pública? Por isso, gostaria de relançar um apelo ao Primeiro-Ministro para tomar a decisão formal de suspender as patentes. Seria um grande presente para nós e para o mundo para o 2022.