A população cigana é uma das que mais duramente sofre com a guerra na Ucrânia, submetida a uma discriminação secular. Publicamos a seguir três matérias sobre este ponto cego dos direitos humanos, civis e políticos, do "velho continente". Na primeira, a Roma Antidiscrimination Network denuncia a discriminação de que é alvo o povo cigano que tenta fugir da guerra. Na segunda, a ativista roma Sandra Heredia Fernandez analisa a especificidade do anti-ciganismo de outras formas de racismo, o seu elevado nível de aceitação. Existe uma indulgência geral em relação às atitudes e práticas anti-ciganas, desde o uso da linguagem até à representação estereotipada das mulheres ciganas nos meios de comunicação social. Finalmente, Barbara Warnock e Toby Simpson escrevem sobre o genocídio de meio milhão de ciganos nos campos de extermínio nazistas, na IIGM.
Rede internacional pede proteção aos refugiados ciganos da Ucrânia
Num apelo subscrito por várias organizações, a Roma Antidiscrimination Network denuncia a discriminação de que é alvo o povo cigano que tenta fugir da guerra.
Esquerda.net, 1 de abril de 2022
Estimam-se que vivam cerca de 400 mil pessoas de origem cigana na Ucrânia e que 20% desta população não tenha documentos. Se lhes juntarmos os que perderam os documentos durante a fuga às bombas russas, percebe-se melhor a dificuldade de muitas dezenas de milhares de pessoas quando tentam cruzar a fronteira para sair da Ucrânia.
Num apelo publicado esta quarta-feira, a Roma Antidiscrimination Network fala de relatos de discriminação em massa e insultos dirigidos às mulheres e crianças ciganas que estão a fugir da guerra e deixaram para trás os maridos e filhos em idade militar. Nos locais de chegada junto às fronteiras são separados dos ucranianos brancos, as companhias de autocarros recusam-se a transportá-los, os guardas de fronteira ucranianos não os deixam entrar em países da União Europeia, obrigando-os a viajar para a fronteira com a Moldávia, onde são novamente separados dos refugiados brancos e colocados em centros com piores condições. O Centro Europeu dos Direitos Roma foi ao local e descobriu que as autoridades moldavas enchem autocarros com refugiados ciganos para os levar à fronteira com a Roménia, onde muitos são impedidos de entrar por lhes faltar documentação.
Segundo o deputado moldavo Dorian Istratii, que coordena o trabalho no centro de refugiados de Manej, o Governo está a tentar convencer o executivo romeno a deixar entrar os refugiados ciganos sem documentos, de forma a que possam ali pedir asilo. Mas segundo a lei europeia, isso obrigá-los-ia a permanecer na Roménia, ao contrário do que acontece com os restantes refugiados que podem escolher o país europeu de destino.
“Sabemos desde as guerras da Jugoslávia que muitos dos ciganos que então fugiram ainda são apenas tolerados na Alemanha (e outros países) 30 anos passados e estão agora a ser deportados. É importante evitar que o mesmo se repita agora”, refere esta rede internacional, lembrando que tal como no Kosovo, onde foram vítimas de limpeza étnica depois da intervenção da NATO, também na Ucrânia, com o armamento generalizado da população, os grupos paramilitares e os neonazis, não se prevê que nos anos mais próximos haja condições para o seu regresso em segurança.
A Roma Antidiscrimination Network defende que haja um programa de acolhimento, transporte e abrigo à população cigana indocumentada nos países europeus e que esta população possa escolher o seu país de destino, tal como os restantes refugiados. Mas também o fim da deportação para os países vizinhos da Ucrânia e a disponibilização de locais capazes de acolher grandes grupos para não quebrar os laços familiares e de solidariedade destas comunidades.
Esta quarta-feira, o contador online do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados ultrapassou a marca dos quatro milhões de pessoas que fugiram da Ucrânia desde o início da invasão russa a 24 de fevereiro.
Anti-ciganismo, género e meios de comunicação
O que diferencia o anti-ciganismo de outras formas de racismo é o elevado nível de aceitação. Existe uma indulgência geral em relação às atitudes e práticas anti-ciganas, desde o uso da linguagem até à representação estereotipada das mulheres ciganas nos meios de comunicação social.
Sandra Heredia, Esquerda.net, 19 de maio de 2021
Foto: Sandra Heredia Fernandez
Com a intenção de realizar esta breve revisão da questão do racismo, devemos salientar que os primeiros estudos referentes a esta questão, com a criação da categoria de raça, datam do final do século XVIII e do início do século XIX, com base em critérios de pseudociência definidos até esse momento. Mas tendo em conta a história do povo cigano, com a chegada à Península Ibérica no início do século XV (Aguirre, 2006) inicia-se toda uma história cheia de legislação anti-cigana com o objetivo de exterminar o povo cigano, atingindo o seu auge com o Grande Aprisionamento1 de 1749; por isso, podemos falar de um racismo anterior ao século XIX. Quase quatro séculos de perseguição até essa data contra o povo cigano fazem-nos compreender que houve racismo antes, sem que lhe tenha sido atribuída tal categoria.
Para tornar esta distinção mais clara e compreender que o racismo é um termo criado na perspetiva da Europa Ocidental do século XVIII, é necessário estabelecer uma distinção entre racismo e racialismo, o que nos permitirá compreender estes aspetos numa lógica muito mais ampla. De acordo com o Guia de Recursos contra o Ciganismo de Fernández Garcés, Jiménez González e Motos Pérez (2015), resultado de trabalho de cientistas sociais, o racialismo é definido como a sistematização doutrinal da internalização do outro desenvolvido na Europa Ocidental a partir do século XVIII. O racismo é entendido como a ideologia através da qual a alteridade é inferiorizada com base na sua diferença física e cultural. Assim, esta distinção esclarece as discussões que possam ter tido lugar sobre a existência de racismo antes do século XVIII.
Por esta razão, entendemos que o racismo histórico se foi desenvolvendo por diferentes fases como uma ideologia de negação diferencial, diretamente relacionada com os discursos da limpeza/pureza do sangue, ou seja, a construção cultural da branquitude. A criação de uma identidade baseada nas diferenças étnicas foi o terreno fértil para a distinção étnica face ao outro, uma nova ordem do sistema mundo que daria origem a abordagens de superioridade segundo a origem étnica, bem como à veracidade de algumas formas de conhecimento contra outras. Analisando estes prismas a partir da posição adotada neste artigo, verificamos que esta distinção étnica é ainda mais desequilibrada se juntarmos a categoria de raça e género, onde as mulheres estariam na mais profunda alteridade desta categorização (Stolcke, 2000). Com o colonialismo e a escravatura nascem hierarquias de poder alimentadas por aspetos como a cor da pele, a morfologia ou os costumes. Estas categorias foram utilizadas pelas diferentes comunidades científicas europeias para justificar o desprezo e a discriminação racista com base em pressupostos ontológicos, científicos e filosóficos.
O racismo baseia-se na premissa da existência de diferenças raciais através do uso do conceito de raça, o que não tem qualquer fundamento, como é afirmado pela biologia molecular e pela genética populacional (Serradell e Munté, 2010). Esta conceção errada aglutina um conjunto de teorias e comportamentos baseados num duplo dogma: por um lado, que as manifestações culturais e acontecimentos históricos da humanidade dependem da raça e, por outro lado, a existência de uma raça superior e que nomeia as outras raças existentes, ou seja, a humanidade. O racismo conduz diretamente à discriminação e segregação de indivíduos e grupos devido à sua pertença a uma determinada categoria social, étnica, linguística ou religiosa. Este tipo de comportamento manifesta-se indistintamente a nível mundial de acordo com fatores sociais, culturais ou históricos que constroem uma discriminação estrutural manifestada através de práticas segregadoras e violentas contra a vítima ou o seu grupo.
O povo cigano vive no continente europeu há mais de 800 anos. Existem atualmente cerca de 10 a 12 milhões de cidadãs e cidadãos ciganos a viver na Europa (1). Apesar destes factos, diferentes estudos, diagnósticos e relatórios, tais como o apresentado pela FRA (Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia) em Novembro de 2016, “EU-MIDIS II: O inquérito da União Europeia sobre Minorias e Discriminação”, bem como o Relatório Anual de 2016 sobre racismo pela SOS Racismo, mostram que a sociedade europeia ainda mantém uma imagem estereotipada desta comunidade, baseada num discurso etnocêntrico, ou racista, no pior dos casos, em relação a pessoas pertencentes a este grupo étnico e especialmente em relação às suas mulheres (San Román, 1986). Estes estereótipos são construídos sobre a falta generalizada de conhecimento sobre este grupo, dado que não existem espaços ou fontes formais de informação para conhecer melhor a história, a cultura ou a idiossincrasia deste grupo populacional.
A história da população cigana varia desde a perseguição mais direta até à discriminação mais subtil. Alguns artigos referem-se a esta história como O Calvário milenar dos Ciganos (2). Os métodos repressivos foram vários, desde a escravatura ao massacre, passando pela assimilação forçada, a expulsão e o internamento/prisão. Os ciganos eram considerados pouco fiáveis, perigosos, criminosos e indesejáveis. Eram estrangeiros que podiam facilmente ser feitos bodes expiatórios quando as coisas corriam mal e a população local não queria assumir a responsabilidade por isso.
Estamos perante um dos problemas mais preocupantes do novo milénio, devido ao ressurgimento de formas sem precedentes de racismo, xenofobia, discriminação e exclusão, sendo por isso necessárias novas abordagens para analisar estes "velhos novos problemas" (Cisneros, 2001). A visão etnocêntrica da sociedade em geral, somada à ignorância da diversidade cultural da população mundial, é uma fonte da qual emana todo este tipo de atitudes atuais.
O fenómeno do ressurgimento do racismo, da xenofobia e da intolerância na Europa mostra as importantes contradições políticas, económicas e sociais que estão a ter lugar no velho continente. A crise económica internacional, a pressão e movimentos demográficos, as mudanças radicais nos países de Leste, o complicado e lento processo de unidade europeia, o medo e insegurança pelo futuro face ao desemprego e à pobreza são, entre outros, alguns elementos que, sem dúvida, são fatores que favorecem o renascimento deste flagelo social em todos os países europeus.
Do mesmo modo, a configuração de um ambiente cultural e psicossocial em grandes sectores da população que vai desde o fanatismo intransigente das ideias à banalização da violência na cultura do lazer, passando pelas manifestações de homofobia ou nacionalismo exacerbado, permite o desenvolvimento de surtos de intolerância que alimentam um amplo conjunto de atitudes e manifestações que desprezam, negam ou convidam a violar a aplicação dos direitos humanos, tornando definitivamente difícil a possibilidade de uma coexistência positiva.
Anti-ciganismo
Tendo feito uma breve panorâmica da história do racismo face à população cigana em toda a Europa, é necessário especificar e explicar o termo que reflete esta situação: a definição do termo anti-ciganismo. Assim, entendemos este termo como o processo pelo qual um sector historicamente marginalizado da população é objeto desta discriminação e exclusão de determinados âmbitos. Por outro lado, o conceito de anti-ciganismo está ligado a novas estratégias e medidas dos organismos públicos para tornar este fenómeno visível e para atuar a partir das instâncias governamentais (a nível supranacional, nacional e local) na chamada luta contra o anti-ciganismo.
Outro aspeto muito importante a ter em conta é que o anti-ciganismo não é o resultado da situação de vulnerabilidade social em que vive uma elevada percentagem da população cigana, sendo muito mais elevado se prestarmos especial atenção às mulheres, nem o resultado da diferença da população cigana, entendida como a subalternidade a que o povo cigano foi relegado. Por outras palavras, entender a integração como um instrumento para combater o anti-ciganismo é um erro retumbante (3), uma vez que esta é a origem do mesmo, esquecendo/apagando completamente as vozes ciganas. Assim, a fim de combater o tratamento discriminatório dado à população cigana em termos de habitação precária, educação deficiente, dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, entre outros, é necessário combater o racismo para com a população cigana, e mais especificamente o que chamaremos de anti-ciganismo de género, como parte integrante das políticas temáticas dirigidas a este sector da população. O que diferencia o anti-ciganismo de outras formas de racismo é o elevado nível de aceitação que existe na maioria da sociedade. Assim, existe uma indulgência geral em relação às atitudes e práticas anti-ciganas, desde o uso da linguagem até à representação estereotipada das mulheres ciganas nos meios de comunicação social, tão comuns que são impercetíveis aos cidadãos, legitimando mesmo os fortes estereótipos que residem na população cigana. O estigma moral em relação a outras formas de racismo está largamente ausente para o anti-ciganismo, que é a norma e não a exceção no discurso público. O anti-ciganismo não está apenas generalizado, mas também profundamente enraizado em atitudes e práticas institucionais.
Esta breve revisão da abordagem à epistemologia do anti-ciganismo, em termos muito gerais, não foi efetuada numa perspetiva de género, pelo que queremos no presente artigo focar-nos nas mulheres ciganas, um espaço ainda muito pouco explorado e onde infelizmente existem muito poucos testemunhos na primeira pessoa a perdurar até à atualidade (Navarro, 2014). Tal como acontece na sociedade em relação às vozes das mulheres, que têm sido historicamente silenciadas, entre os povos oprimidos, como no caso das mulheres ciganas, os perfis conhecidos são quase inexistentes para além daqueles que estão carregados de preconceitos e estereótipos, como discutiremos nas linhas seguintes.
A história da repressão vivida pelas mulheres está carregada de uma série de componentes que as têm relegado ao longo da história até hoje para a posição de subalternidade em que muitas delas se encontram, com os conhecidos estereótipos de género sofridos pelas mulheres a atingirem o seu expoente máximo quando as variáveis de raça, classe e género são combinadas.
Pelos direitos das mulheres ciganas
A luta pelos direitos das mulheres ciganas tem sido historicamente enquadrada de uma forma geral no movimento associativo cigano sem ter em conta a perspetiva de género. Só nos anos 1990 é que as mulheres ciganas começaram a ganhar visibilidade no tecido associativo com a criação das principais organizações de mulheres que lutam para obter visibilidade e romper com os estereótipos predominantes (Ortega, 2009). Apesar dos enormes esforços realizados por estas mulheres, a teoria feminista clássica não conseguiu abranger as dificuldades enfrentadas pelas mulheres ciganas, que atualmente apenas são abordadas como mulheres em exclusão social, como um sector social homogéneo e sem ter em conta a diversidade dentro deste grupo étnico em si.
A fim de compreender as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, é necessário olhar para as múltiplas discriminações que enfrentam. Inicialmente, a teoria feminista centrou-se apenas na discriminação de género e, portanto, deixou de fora as outras variáveis que afetam as mulheres, o que significa que a dignidade e defesa dos seus direitos não foi tratada de uma forma completa. As múltiplas discriminações que as mulheres podem sofrer são devidas a vários aspetos, como resultado dos estereótipos negativos que lhes são atribuídos, o que amplifica exponencialmente a sua discriminação e rejeição (Martínez-Lirola, 2010). Isto não ocorreu apenas no âmbito da teoria feminista clássica mas também no direito internacional, que aborda a discriminação tendo em conta apenas uma variável (raça, género, diversidade funcional, orientação sexual...), ignorando a possível combinação de várias.
O papel dos meios de comunicação social na transmissão de estereótipos
Os meios de comunicação social deveriam ser um instrumento fundamental para combater as desigualdades de género e ainda mais para combater os estereótipos que afetam os grupos populacionais mais vulneráveis. No entanto, longe de apoiarem objetivos pedagógicos que permitam ultrapassar estas barreiras da ignorância, os meios de comunicação continuam a perpetuar papéis tradicionais de género que afetam em maior grau a imagem negativa dos grupos minoritários, como é o caso das mulheres ciganas. Os meios de comunicação social centram-se na representação dos corpos das mulheres associando-lhes um valor que as define como indivíduos, e destacam a alteridade em que as mulheres ciganas foram educadas, o que faz com que contribuam para construir as identidades das mulheres ciganas com base no gostar ou não gostar dos corpos delas. Assim, concordamos com Martínez-Lirola (2010: 163) quando afirma que "os meios de comunicação social divulgam representações, configurando-se como um ponto básico na construção de identidades".
Tendo em conta o que foi anteriormente dito, fica totalmente clara a necessidade de mostrar através dos media um maior número de perfis de mulheres que rompam com a dicotomia prevalecente dos estereótipos femininos, bem como a sua presença em espaços de tomada de decisão. Por conseguinte, estamos conscientes de que os meios de comunicação social são geradores de construções sociais impregnadas de subjetividade e orquestradas pelos estereótipos que os profissionais da comunicação social têm, os papéis socialmente aceites que legitimam a produção audiovisual que esses profissionais fazem. Devido aos estereótipos que os condicionam durante o desempenho das suas funções os profissionais da informação, bem como os argumentistas e produtores, podem ajudar a favorecer ou prejudicar a imagem dos protagonistas da informação ou da produção audiovisual, caindo na manipulação da informação e inclusivamente na definição de perfis que não correspondem à diversidade real dentro dos diferentes grupos sociais.
Portanto, podemos afirmar que existe uma relação entre os meios de comunicação social e a sociedade em geral, onde uma das partes gera realidades sociais que são facilmente assimiladas pela outra. É uma realidade que hoje em dia os meios de comunicação social são constituídos por grandes empresas na busca do lucro económico; por isso, a maior difusão dos seus conteúdos aumenta os seus lucros, o que transforma a informação, e os seus protagonistas, em mera mercadoria para troca económica, chegando mesmo, em muitas ocasiões, a roçar os limites da dignidade das pessoas, levando-os ao extremo da morbidez e do sensacionalismo. Tudo isto os leva a afastarem-se da difusão de informação verdadeira e entretenimento de qualidade, criando pelo contrário uma imagem irreal, tendenciosa e em muitos casos longe dos mais elementares cânones sociais e de coexistência. Mas atualmente não é possível fazer uma análise global do papel dos meios de comunicação de massas enquanto geradores de estereótipos sem ter em conta o importante papel desempenhado pela Internet, mais especificamente pelas redes sociais (Facebook e Twitter, entre muitas outras), como um novo fenómeno de comunicação de massas, onde se acumulam opiniões racistas e preconceituosas incontroláveis e escondidas por detrás do anonimato, semeando o ódio e a mais absoluta indefensabilidade sob a proteção da liberdade de expressão. Apesar disso, os meios de comunicação social não são os responsáveis diretos, embora forneçam os espaços para os utilizadores da Internet publicarem os seus comentários sem qualquer tipo de controlo e supervisão. Há autoras e autores, como Campos (2008) e Arriaga (2013), que consideram a Internet como o grande meio de comunicação de massas do século XX, como um mundo anárquico e não estruturado, um universo plural que reflete a sociedade, onde coexistem todas as ideologias, dominantes e marginais, e todas as culturas e nacionalidades. A Internet não é em si mesma um meio de comunicação, mas é um meio através do qual a informação pode ser transmitida a muitos destinatários e estes podem mesmo decidir em que momento a recebem.
É necessário dar especial ênfase à necessidade de os meios de comunicação social adquirirem uma responsabilidade social sobre a informação e o material audiovisual que produzem, que quebre o hábito e frequência com que desenvolvem dinâmicas de invisibilização das culturas periféricas, que nada mais são do que um instrumento do ocidentalismo e etnocentrismo para preservar a hegemonia cultural e social de uma forma que desvaloriza o diferente, reforçando assim a identidade maioritária predominante. O resultado que nasce da soma dos meios de comunicação social, juntamente com certas abordagens políticas, e a falta de produção científica a esse respeito são os pilares que sustentam os estereótipos face a qualquer grupo social.
No que respeita à população cigana e especificamente às mulheres ciganas, os meios de comunicação social transmitem as ideias previamente construídas pela maioria da sociedade e generalizam sobre as características mais negativas dos grupos mais desfavorecidos. Os meios de comunicação tornaram-se uma fonte fundamental para o reforço e extensão dos estereótipos e preconceitos que têm sido transmitidos ao longo dos anos. "Atualmente, falar mal do povo cigano em termos de informação tornou-se uma rotina, algo fácil que sempre foi feito, que não causa problemas, que não necessita ser feito de forma diferente (...) a maior parte das vezes só se fala do povo cigano para confirmar uma visão estereotipada, uma vez que esta se consolidou como a mais digna de notícia e reconhecível" (Oleaque, 2007: 22). Se nos concentrarmos no tratamento da população cigana pelos meios de comunicação social, eles perpetuaram esta imagem distorcida que pode ser composta por três situações extremas:
- Dar uma relevância mediática exagerada aos factos que associam os ciganos à exclusão, marginalização e delinquência, sendo tratados como sujeitos ativos neste quadro.
- Apresentar as situações de extrema exclusão social em que grande percentagem da população cigana se encontra de uma forma caricaturada, ofensiva e prejudicial, carregada de estereótipos negativos, como um terreno fértil para encorajar o racismo anti-cigano.
- Representação de uma imagem folclórica, artística, romântica, cheia de estereótipos, criando aos olhos da maioria uma identidade artística cigana como a única alternativa positiva legitimada, contrária à pobreza e à delinquência. Esta visão tem como causa direta a limitação de interações heterogéneas, de uma coexistência plural e harmoniosa.
Sandra Heredia é uma ativista cigana que trabalha na Federación de Asociaciones de Mujeres Gitanas, Fakali e vereadora do Adelante Sevilla.
Artigo originalmente publicado no Viento Sur(link is external). Traduzido por Paulo Antunes Ferreira para o Esquerda.net.
Notas da autora
(1) Dados estimados extraídos de http://ec.europa.eu/justice/discrimination/roma/index_es.htm(link is external)
(2) Notícias extraídas de http://www.rebelion.org/noticia.php?id=111290(link is external)
Referências
Aguirre Felipe, J. (2006) História de las itinerancias gitanas. De la India a Andalucía. Zaragoza: Instituto Fernando el Católico.
Arriaga, Eduard (2013) “Racismo y discurso en la era digital”, Discurso & Sociedad, 7, 4, pp. 617-642.
Campos, Francisco (2008) “Las redes sociales trastocan los modelos de los medios de comunicación tradicionales”, Revista latina de Comunicación Social, 63, pp. 287-293.
Cisneros, Isidro H. (2002) “Génesis de la política absoluta”, Estudios Sociológicos, pp. 625-639.
Fernández Garcés, Helios; Jiménez González, Nicolás y Motos Pérez, Isaac (2015) Guía de recursos contra el antigitanismo. Alicante: FAGA.
Martínez-Lirola, María (2010) “Explorando la invisibilidad de mujeres de diferentes culturas en la sociedad y en los medios de comunicación/Exploring the Invisibility of Women from Different Cultures in Society and in the Mass Media”, Palabra-Clave, 13, 1, pp. 161-173.
Navarro, Laila M.J. (2014) “Brujas, prostitutas, esclavas o peregrinas: Estereotipos femeninos en los relatos de viajeros musulmanes del Medievo”, Miscelánea de Estudios Árabes y Hebraicos. Sección Árabe-Islam, 63, pp. 119-142.
Oleaque, J. M. (2007) “La ciudad de autor”, Lars: cultura y ciudad, 7, 7.
Ortony, Andrew; Clore, Greald L. y Collins, Allan (1990) The cognitive structure of emotions. Cambridge: Cambridge University Press.
Paz, Amanda (2012) “La mediatización intercultural del espacio social en los informativos”, Revista Comunicación, 10, 1, pp. 1017-1031.
San Román, Teresa (1986) Entre la marginación y el racismo: reflexiones sobre la vida de los gitanos. Madrid: Alianza Editorial.
Serradell, Olga, y Munté, Ariadna (2010) “Dialogicidad y poder en el discurso racista y antirracista”, Revista Signos, 43, pp. 334-362.
Martínez Sierra, María (2000) Gregorio y yo: medio siglo de colaboración. Valencia: Pre-textos.
Stolcke, Verena (2000) “¿Es el sexo para el género lo que la raza para la etnicidad..., y la naturaleza para la sociedad?”, Política y cultura, 14, pp. 25-60.
Valdés, Ernesto G. (1993) “El problema ético de las minorías étnicas”, Ética y diversidad cultural, 1, p. 31.
Nota do Tradutor:
1O Grande Aprisionamento (a “Grande Redada”, no original em espanhol), também conhecido como Prisão Geral dos Ciganos, consistiu em duas operações de prisão: uma entre a noite de 30 de Julho de 1749 e o amanhecer do dia seguinte e outra a partir da terceira semana de Agosto (Catalunha e algumas cidades onde a ordem prisional inicial não chegou, especialmente Málaga, Cádis e Almeria). Foi uma disposição autorizada pelo rei Fernando VI e organizada em segredo pelo Marquês de la Ensenada. Estima-se que tenham sido presos entre 9000 e 12000 ciganos. https://es.wikipedia.org/wiki/Gran_Redada
Os ciganos, o genocídio esquecido da Segunda Guerra Mundial
Trabalho escravo, fuzilamentos em massa e câmaras de gás. Na altura em que passaram 75 anos sobre o encerramento do campo de concentração de Auschwitz, Barbara Warnock e Toby Simpson escrevem sobre o genocídio dos ciganos a propósito da exposição que organizam na Biblioteca Wiener sobre o Holocausto.
Barbara Warnock e Toby Simpson, Esquerda.net, 2 de fevereiro de 2020
Em comparação com o Holocausto, o assassinato em massa de meio milhão de membros das comunidades Roms e Sinti europeias permanece desconhecido e não reconhecido. Esta ausência e a perseguição de que continuam a ser alvo levantam questões às quais ainda temos dificuldades em responder.
É o “genocídio esquecido” da Segunda Guerra Mundial: à volta 500 mil ciganos da Europa foram assassinados pelos nazis e seus colaboradores durante a Segunda Guerra Mundial, no seguimento da implementação de políticas que visavam persegui-los. Porque é que o genocídio dos ciganos foi amplamente esquecido? Porque é que o reconhecimento, ainda que parcial, das suas mortes demorou tanto tempo? Que obstáculos nos impedem ainda hoje de reconhecer completamente a importância deste genocídio?
A exposição atual da Biblioteca Wiener sobre o Holocausto, em Londres, Vítimas Esquecidas: O genocídio nazi dos Sinti e Roms, é consagrada à análise da destruição da vida dos ciganos pelos nazis, ao exame das políticas que precederam o massacre e ao esclarecimento dos aspetos desta história que continuaram escondidos e amplamente desconhecidos durante décadas.
Os Roms e Sinti foram vítimas de preconceitos e de discriminações na Alemanha antes de 1933, mas a chegada ao poder dos nazis correspondeu a uma intensificação das perseguições.
Em meados dos anos 1930, os ciganos são impedidos de exercer certas profissões e muitos foram obrigados a viver em campos de internamento. No final dos 1930, a ideologia racial nazi foi ampliada para englobar a noção segundo a qual os ciganos eram de “sangue estrangeiro” e representariam uma ameaça para a força racial da “raça superior ariana”.
No quadro do desenvolvimento destas ideias, os ciganos foram submetidos a um programa massivo de investigações pseudo-científicas. Foram igualmente marcados para esterilização forçada.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os ciganos dos territórios ocupados pela Alemanha nazi foram deportados para campos e ghettos, obrigados a trabalho forçado e mortos pela fome, pelos maus tratos, pelos fuzilamentos de massa e os gaseamentos nos campos como o de Chelmno e o de Auschwitz. Regimes colaboracionistas, como os Ustashe na Croácia, perpetraram assassinatos de massa contra as suas populações judaica e cigana.
Num relato oferecido à biblioteca Wiener, o Dr Max Benjamin, um sobrevivente judeu de Auschwitz, descreveu o testemunho da “liquidação” do “campo de ciganos” em 2 e 3 de agosto de 1944: neste noite, “de um só golpe, todos os ciganos representavam a população deste campo foram enfiados nas câmaras de gás.”
Apesar dos sofrimentos e das injustiças aterradoras sofridas pela população cigana da Europa durante o período nazi, o genocídio dos ciganos foi frequentemente negligenciado ou minimizado. Uma das principais razões desta situação são as múltiplas camadas de preconceitos, de discriminação e de marginalização com as quais os sobreviventes roms e sinti continuam a ser confrontados depois da libertação. A hostilidade e os estereótipos negativos relativamente aos ciganos persistiram. Em numerosos países, a exclusão permanente dos ciganos da representação política e do poder económico impediu a sua capacidade de fazer campanha pelo seu reconhecimento.
Esta marginalização revela-se através da ausência de acusações contra os autores de crimes contra os ciganos nos primeiros processos por crimes de guerra. Na Alemanha Ocidental do pós-guerra, reinava um clima de negação da amplitude dos horrores cometidos contra as vítimas ciganas que frequentemente não recebiam as compensações atribuídas às outras vítimas das perseguições raciais nazis. Os numerosos monumentos comemorativos construídos nas décadas que se seguiram à guerra não reconheciam as vítimas ciganas.
Foi apenas em 1982 que a Alemanha reconheceu oficialmente os crimes nazis contra os ciganos como um genocídio; as primeiras desculpas da França pela sua colaboração nos crimes nazis contra os Roms e os Sinti foram apresentadas em 2016.
Na URSS e na Europa de Leste, as experiências dos ciganos durante o genocídio foram igualmente amplamente ignoradas. Os ciganos que desejavam permanecer nómadas foram obrigados a instalar-se em casas. No período pós-comunista, a discriminação face aos ciganos aumentou, enquanto que as suas condições de vida e o acesso a serviços diminuíram fortemente.
A nossa exposição tenta abordar a amnésia coletiva que envolve o genocídio dos ciganos. A Biblioteca Wiener sobre o Holocausto possui importantes coleções sobre este tema, nomeadamente os primeiros testemunhos de sobreviventes roms [https://blog.ehri-project.eu/author/cschmidt/](link is external) recolhidos no quadro de um projeto desenvolvido pela Drª Eva Reichmann a partir dos anos 1950. A Biblioteca prevê publicar alguns destes testemunhos mais tarde ainda durante este ano.
Possuímos igualmente material recolhido aquando do primeiro projeto de investigação que tentou documentar sistematicamente o genocídio, um projeto conduzido por Donald Kenrick e Grattan Puxon no final dos anos 1960. Um certo número de elementos desta coleção incluindo resumos de testemunhos de sobreviventes são apresentados na exposição.
Um outro elemento impressionante da exposição é uma fotografia do pós-guerra de Margarete Kraus. A tatuagem do número do campo no seu antebraço esquerdo é pouco visível: Margarete Kraus era uma sobrevivente rom checa de Auschwitz, onde tinha sido vítima de experiências médicas forçadas. O retrato de Kraus foi feito pelo jornalista leste-alemão Reimar Gilsenbach nos anos 1960. Gilsenbach investigou a perseguição dos ciganos durante o período nazi.
Uma peça bastante diferente é um documento intitulados “Interdições publicadas relativamente a polacos, judeus e ciganos” submetida mais tarde no processo por crimes de guerra de Nuremberga como prova dos crimes nazis. Data de 10 de março de 1944, trata-se de uma circular enviada por Heinrich Himmler a um grupo de altos funcionários do Estado, informando-os que “terminada a evacuação e o isolamento” dos judeus e ciganos isso significava que não eram necessárias novas diretivas.
“Evacuação” e “isolamento” neste contexto significavam que a vasta maioria dos judeus, Sinti e Roma da grande Alemanha tinham já sido deportados para ghettos e campos e assassinados. A terminologia usada aqui exemplifica a “pesada matéria de facto” da linguagem burocrática dos SS, memoravelmente descrita pelo historiador Mark Roseman como uma “diabólica paródia da precisão administrativa”.
Outra história contada na exposição é a de Hans Braun, um homem Sinti alemão nascido em Hannover em 1923. Braun sobreviveu aos campos de Auschwitz e Flossenbürg. A maior parte da sua família morreu em Auschwitz. Quando em 1950 reclamou uma compensação do Estado alemão, a polícia local decidiu pelo contrário abrir uma investigação contra ele – buscando provas espúrias de que Braun tinha sido preso enquanto “criminoso” - como fundamento para rejeitar a sua petição.
O facto de que a verdadeira natureza e escala do genocídio cigano tenha sido negado, minimizado ou ignorado por tantos durante tanto tempo foi doloroso e enfurecedor para as vítimas e as suas famílias.
Apesar de ser tarde demais para retificar as injustiças que eles experienciaram, não é tarde demais para lidarmos com a marginalização e discriminação que enfrentam as comunidades ciganas hoje em dia em lugares como a Hungria, nos quais a discriminação e hostilidade contra os ciganos é comum, e a Ucrânia, onde grupos fascistas levaram a cabo muitos ataques violentos contra ciganos nos últimos anos. Talvez esta exposição marque um começo, por reconhecer aquilo a que a discriminação e o preconceito podem conduzir.
Artigo publicado no A l'encontre. Tradução de Carlos Carujo. Toby Simpson é diretor da Biblioteca Wiener sobre o Holocausto da Biblioteca de Londres. Barbara Warnock é curadora e responsável pelo setor educativo. É a responsável pela exposição: As vítimas esquecidas: exposição sobre o genocídio nazi dos Roms e Sinti.