Jorge Bermudez e Achal Prabhala, Mariana Mazzucato e Els Torreele, Jamil Chade, Ana Isabel Pinto e Marisa Matias
Não é possível retomarmos os padrões de sociabilidade, mobilidade e de atividade econômica anteriores sem uma vacina acessível para tod@s. Mas não sabemos se essa vacina será possível.
Apresentação
"Finalmente, um vírus me pegou", disse Peter Piot, diretor da London School of Hygiene & Tropical Medicine, um cientista que foi um dos descobridores do Ebola e coordenou o Programa das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS. Piot agora encarou a morte pelo Covid-19.
Em seu testemunho, ele afirma que "muitas pessoas pensam que a COVID-19 mata 1% dos pacientes e o resto se sai com alguns sintomas parecidos com os da gripe. Mas a história é muito mais complicada. Muitas pessoas ficam com problemas crônicos dos rins e do coração. Mesmo seu sistema neurológico é afetado. Haverá centenas de milhares de pessoas pelo mundo, possivelmente mais, que necessitarão de tratamentos com a diálise renal pelo resto de sua vida. Quanto mais aprendemos sobre o coronavírus, mais questões surgem. Estamos aprendendo enquanto estamos navegando. É por isso que fico tão aborrecido com muitos comentaristas mal-informados, sem muita compreensão do assunto, que criticam os cientistas e os formuladores de politicas públicas que tentam controlar a epidemia. Isso é muito injusto"
Em seu relato à Science, Piot conclui: "Deixe-me ser claro: sem uma vacina contra o coronavírus, nós nunca seremos capazes de ter viver normalmente outra vez. A única estratégia real de saída dessa crise é uma vacina que possa funcionar em todo o mundo. Isso significa produzir bilhões de doses dela, o que, por si só, é um imenso desafio em termos de logística de produção. E, apesar de todos os esforços, não sabemos ao certo sequer se o desenvolvimento de uma vacina contra a COVID-19 é possível".
A seguir, Jorge Bermudez e Achal Prabhala debatem as questões colocadas para o governo brasileiro garantir o acesso da nossa população a uma eventual vacina contra o COVID-19 e medicamentos mais eficientes no tratamento da doença caso sejam obtidas por grandes corporações transnacionais da área de medicamentos, a chamada Big Pharma. Elas exigem aprovar uma legislação complementar à lei de propriedade intelectual permitindo suspender sua aplicação no caso de medicamentos para a COVID-19.
A economista italiana Mariana Mazzucatto e a belga Els Torreele, diretora executiiva do programa de acesso a medicamentos da organização Médicos sem Fronteiras discutem os desafios envolvidos no desenvolvimento e na produção global de uma vacina acessível para toda a população.
O jornalista brasileiro Jamil Chade mostra como já se abriu, nos bastidores da Organização Mundial de Comércio, uma verdadeira guerra diplomática sobre uma eventual vacina ser um bem comum da humanidade ou propriedade de uma corporação da Big Pharma.
Ana Isabel Pinto, uma bioquímica portuguesa nos explica as dimensões científicas das agora cem iniciativas de pesquisa da uma vacina contra a COVID-19.
Finalmente, a deputada no Parlamento Europeu explica o programa lançado pela UE de 7,5 bilhões de euros para desenvolvimento da vacina.
Para um acompanhamento mais sistemático desse tema central para o futuro do Brasil, veja-se o site do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual e seu blog De olho nas patentes. Suas consequencias já se fazem sentir no possível uso do Remdesivir, monopolizado pela Gilead.
Coronavírus: o Congresso precisa agir imediatamente para o Brasil ter acesso aos tratamentos da covid-19
Jorge Bermudez e Achal Prabhala, The Intercept Brasil, 7 de Maio de 2020
No meio de uma crise global de saúde, um punhado de empresas nos EUA e na Europa decidirá se devemos viver ou morrer.
NESTE MOMENTO em que o Brasil enfrenta a pandemia da covid-19, é difícil imaginar como as coisas poderiam piorar. Mais de 8,5 mil pessoas já morreram, e o número de novas infecções continua a subir. Enquanto isso, o presidente Bolsonaro se recusa a levar a crise a sério e está lutando contra seu próprio governo. Ele se opôs aos planos de parar a economia, demitiu o ministro da Saúde e colocou cidadãos em perigo, incentivando aglomerações públicas. A renúncia explosiva do seu ministro da Justiça, Sergio Moro, levou a pedidos de impeachment. Neste momento, o Supremo Tribunal Federal aprovou uma investigação contra Bolsonaro por várias violações, inclusive obstrução de justiça.
Mesmo com todo esse caos, é razoável esperar que a crise sanitária arrefeça quando os tratamentos surgirem. Mas a crise, infelizmente, pode só piorar para o Brasil quando finalmente tivermos medicamentos e vacinas para a covid-19 – a menos que o Congresso Nacional aja imediatamente.
A maior parte dos tratamentos potenciais para o novo coronavírus e todas as vacinas em desenvolvimento serão lançadas no mercado por grandes empresas farmacêuticas que detêm o poder de monopólio sobre elas, por meio de patentes – que são monopólios temporários concedidos pela legislação nacional. E esse poder resultará em uma situação ultrajante: no meio de uma crise global de saúde, um punhado de empresas nos EUA e na Europa decidirá se devemos viver ou morrer.
Certamente, o problema não é apenas do Brasil. Nas últimas três décadas, milhões de pessoas de países pobres morreram porque não tinham como pagar medicamentos necessários para viver. Mas, como um país de “renda média” em uma longa recessão, o Brasil enfrenta uma ameaça inédita e imediata: a incapacidade do Sistema Único de Saúde, o SUS, de realizar seu trabalho e manter as pessoas vivas.
Em 2016, a Emenda Constitucional 95, conhecida como o teto de gastos, congelou os orçamentos federais por 20 anos, inclusive para a saúde pública. Nesse ambiente de austeridade, sem espaço para se movimentar, à medida que o SUS se esforça para acomodar as crescentes demandas de saúde, o custo absurdo dos medicamentos protegidos por monopólio tem o potencial de quebrar o sistema. Embora essa ameaça esteja mais explícita na atual pandemia da covid-19, na verdade, os medicamentos em situação de monopólio ameaçam a viabilidade do SUS já há três décadas. Dois casos se destacam.
Em 1996, o Brasil fez história ao prover tratamento universal para HIV e aids, tornando-se o primeiro país em desenvolvimento a tomar essa iniciativa. Menos notório é o fato que essa vitória quase foi minada pelos preços dos medicamentos em situação de monopólio.
Do coquetel de medicamentos necessários para tratar o HIV e a aids, alguns estavam sendo fabricados em laboratórios no Brasil, como Farmanguinhos, o produtor estatal de medicamentos localizado na Fiocruz, em Jacarepaguá e Manguinhos, no Rio de Janeiro. Mas outros medicamentos estavam disponíveis apenas sob monopólio de grandes empresas farmacêuticas, e os preços inviabilizavam o programa de tratamento do HIV e aids.
O Brasil, então, ameaçou emitir licenças compulsórias, o que teria suspendido as patentes e permitido uma produção local mais barata. As corporações cederam e baixaram seus preços. Em 2007, o programa de tratamento para HIV e aids foi novamente ameaçado pelo preço de monopólio da Merck para o efavirenz, um medicamento essencial para o programa. Quando a Merck se recusou a baixar os preços, o então presidente Lula emitiu uma licença compulsória por recomendação de seu ministro da Saúde, José Gomes Temporão. O resultado, nos cinco anos seguintes, foi que o SUS economizou quase R$ 500 milhões em gastos ao adquirir versões genéricas do efavirenz para uso no país.
Por outro lado, a experiência do Brasil com o sofosbuvir, o primeiro tratamento eficaz para a hepatite C, é trágica. Quando o medicamento chegou ao mercado em 2013, prometia ser a tábua de salvação para milhões de brasileiros que sofrem dessa doença debilitante, fatal e sem cura. Havia apenas um problema: o ciclo completo de sofosbuvir custava US$ 84 mil nos EUA, e a gigante farmacêutica Gilead detinha o monopólio do medicamento. A Gilead ofereceu um desconto ao SUS, mas a US$ 6 mil por ciclo – o preço ainda era 60 vezes mais do que a versão genérica mais barata do medicamento. Após uma longa discussão sobre a validade das patentes da Gilead – elas foram contestadas várias vezes –, a empresa acabou vencendo e imediatamente aumentou o preço do medicamento em 1.421% – é isso mesmo, 1.421%. Como resultado, nos últimos seis anos, o SUS só teve condições de tratar ínfimos 14% dos 700 mil de brasileiros com a doença, com a consequente morte de vários milhares deles.
Qual é a relevância disso? Considere o medicamento antiviral remdesivir, também comercializado pela Gilead e originalmente destinado ao ebola. A Agência de Controle de Alimentos e Medicamentos dos EUA, o FDA, aprovou o remdesivir para uso contra a doença causada pela covid-19 – é o primeiro tratamento a ser aprovado. A Gilead possui várias patentes para o remdesivir em 70 países ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Esses monopólios de patentes valem até 2038.
Além de uma declaração vaga sobre o acesso, a Gilead não se comprometeu a tornar este medicamento acessível ou disponível em quantidade suficiente. Em vez disso, no início de março, a Gilead nos EUA buscou incentivos de status de “medicamento órfão” para o uso do remdesivir contra a covid-19, o que lhes daria monopólios adicionais e benefícios fiscais de US$ 40 milhões. A palavra “órfão” na designação se refere a doenças raras que afetam menos de 200 mil pessoas. Mais de 3,7 milhões de pessoas foram infectadas pela covid-19. Quando esse dado foi apontado, a Gilead voltou atrás.
Recapitulando: no atual andar da carruagem, nos próximos 18 anos, nosso único acesso ao único tratamento existente para a covid-19 dependerá inteiramente da compaixão de uma grande empresa farmacêutica multinacional que não demonstrou nenhum sinal de compaixão até agora.
Dispomos de duas maneiras para sair da armadilha do monopólio. A primeira é uma solução multilateral, que depende que a proposta da Organização Mundial da Saúde, a OMS, se concretize. Solicitada pela Costa Rica, a OMS está explorando a criação de um “pool de patentes” de tecnologia covid-19 – um mecanismo pelo qual os produtores monopolistas de equipamentos de proteção, testes, medicamentos e vacinas possam suspender voluntariamente seus monopólios para uso público global. A proposta vem ganhando força.
No entanto, o status de renda média do Brasil (uma categoria sem sentido, que confunde as necessidades da maioria pobre com a riqueza de uma minoria rica) fez com que o Brasil fosse excluído de um acordo semelhante oferecido pelo pool de patentes de medicamentos, cujos benefícios se estendem apenas a países pobres, independentemente de onde a doença que eles estão tentando eliminar seja predominante. Essa nova solução global de pool de patentes só funcionará se incluir explicitamente países de renda média como o Brasil.
A segunda maneira é uma solução nacional. Neste momento, uma afirmação de soberania é a única solução garantida. Países tão diversos como Canadá, Alemanha, Israel, Chile, Peru e Equador tomaram medidas rápidas nas últimas semanas, suspendendo patentes importantes ou promulgando legislação para suspender todos os monopólios de tecnologias relacionadas à pandemia da covid-19. O Brasil deve se juntar a eles.
No mês passado, um grupo multipartidário de 11 deputados apresentou um projeto de lei no Congresso propondo uma emenda à Lei da Propriedade Industrial. A proposta, PL 1462/2020, baseia-se nas disposições existentes na lei brasileira de patentes para combater a crise. O projeto daria ao governo o poder de agir imediatamente nesta pandemia (assim como em qualquer outra emergência de saúde) para suspender monopólios que afetem a vida de seus cidadãos, seja em equipamentos e testes, seja em medicamentos e vacinas. O Conselho Nacional de Saúde, o CNS, imediatamente publicou uma moção apoiando o projeto, seguido por um grande número de expressões de apoio internacional. No entanto, apesar de haver um pedido enviado ao Congresso para debater o projeto com urgência, as audiências ainda não começaram.
Pedro Villardi, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, o GTPI, uma das organizações da sociedade civil que defendeu o projeto, explicou seu objetivo: “O objetivo é aumentar as opções de compra do governo, com a agilidade de distribuição que uma emergência de saúde exige.” Observando o atraso, ele acrescentou: “A aprovação deste projeto é urgente. Precisamos garantir a máxima capacidade de resposta para salvar vidas. Qualquer atraso ou preço alto em tempos como esse são inconcebíveis.”
Este é um momento para solidariedade, um tempo de cooperação e cuidado. Para sobreviver à pandemia da covid-19, o Brasil deve tomar medidas decisivas para proteger o SUS. Podemos garantir nosso futuro aprendendo com o passado. Quando enfrentamos os monopólios dos medicamentos, salvamos vidas, economizamos recursos monetários, e melhoramos a saúde humana e financeira do país. Porém, quando sucumbimos às empresas farmacêuticas, perdemos vidas e danificamos o tecido que nos faz uma sociedade. A longo prazo, há muito mais que podemos fazer para salvar nosso SUS. No curto prazo, temos uma pandemia e um caminho que nos leva a sair dela. Temos que trilhá-lo.
Como desenvolver uma vacina de Covid-19 para todos
Mariana Mazzucato e Els Torreele, SinPermiso, 03 de maio de 2020
Garantir que ninguém fique de fora não só requer um investimento coletivo sem precedentes, mas também uma abordagem diferente da inovação e propriedade intelectual.
Nas primeiras semanas de 2020, as pessoas começaram a perceber que o Covid-19 poderia ser a tão esperada 'Doença X', uma pandemia global causada por um vírus desconhecido. Três meses depois, a maioria da população mundial está confinada e fica claro que nossa saúde é tão boa quanto a de nossos vizinhos, local, nacional e internacionalmente.
Sistemas de saúde fortes, a capacidade de realizar testes e uma vacina eficaz e universalmente disponível serão essenciais para proteger as sociedades Covid-19. Mas garantir que ninguém seja relegado requer não apenas investimento coletivo sem precedentes, mas também uma abordagem muito diferente.
Pesquisadores de universidades e empresas de todo o mundo competem em uma corrida para desenvolver uma vacina. E o progresso atual é encorajador: 73 projetos de vacinas estão sendo investigados ou estão em desenvolvimento pré-clínico, enquanto cinco já foram para ensaios clínicos.
Investimento público
Esses esforços maciços são possíveis apenas graças ao investimento público substancial, incluindo o dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA e a Coalizão de Inovação em Preparação para Epidemias (CEPI). Esta última, uma organização sem fins lucrativos com financiamento público, foi criada após a epidemia de Ebola da África Ocidental em 2014-16 para impulsionar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas que poderiam ser usadas durante surtos da doença.
Até o momento, o CEPI recebeu US $ 765 milhões adicionais dos US $ 2 bilhões destinados ao financiamento para o desenvolvimento da vacina Covid-19 de vários governos. A Autoridade Biomédica de Pesquisa e Desenvolvimento Avançada, parte do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, investiu pesadamente em projetos de desenvolvimento de vacinas com Johnson & Johnson (US $ 450 milhões) e Moderna (US $ 483 milhões). E a União Europeia pretende mobilizar mais fundos públicos para enfrentar a pandemia em um congresso de compromisso virtual em 4 de maio.
Mas o investimento por si só não é suficiente. Para ter sucesso, todo o processo de inovação de vacinas, da pesquisa e desenvolvimento ao acesso, deve ser regido por regras de ação claras e transparentes, baseadas em metas e métricas de interesse público. Isso, por sua vez, exigirá um alinhamento claro entre os interesses públicos globais e nacionais.
Uma abordagem orientada por objetivos
O primeiro passo crucial é adotar uma abordagem orientada a objetivos que concentre os investimentos, públicos e privados, em alcançar um objetivo comum claramente definido: desenvolver uma vacina (s) Covid-19 que possa ser produzida em escala global rapidamente e podem estar universalmente disponíveis gratuitamente. A realização desse objetivo exigirá regras firmes em relação à propriedade intelectual (PI), preço e fabricação, projetadas e aplicadas de uma maneira e de maneira que valorize a colaboração e a solidariedade internacionais, em vez da competição entre os países.
Segundo, para maximizar o impacto na saúde pública, o ecossistema de inovação deve ser direcionado ao uso da inteligência coletiva para acelerar o progresso. A ciência médica e a inovação prosperam e progridem quando os pesquisadores compartilham e compartilham abertamente o conhecimento, permitindo que eles aproveitem os sucessos e fracassos de outras pessoas em tempo real.
Mas a ciência proprietária de hoje não segue esse modelo. Em vez disso, promove secretamente a concorrência, prioriza a aprovação regulatória nos países ricos sobre a ampla disponibilidade e os impactos globais na saúde pública e ergue barreiras à difusão tecnológica. E embora os conjuntos de propriedades intelectuais (como os propostos pela Costa Rica à Organização Mundial da Saúde) possam ser úteis, eles correm o risco de serem ineficazes desde que empresas privadas e com fins lucrativos possam manter o controle. em tecnologias e dados cruciais, mesmo quando gerados com investimentos públicos.
Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação e Valor Público na University College de Londres. É autora de El Estado emprendedor (RBA, Barcelona, 2014). Seu último livro é The Value of Everything, em que analiza a necessidade de se deiferenciar criação de valor e extração de valor. Els Torreele é diretora executiva da campanha de acesso a medicamentos esenciais dos Médicos Sem Fronteiras. Em 2019 conseguiu desenvolver um medicamento barato contra a doença do sono, el fexinidazol, por um preço quarenta vezes mais barato que o proposto pela Big Farma.
Vacina contra covid-19 abre guerra diplomática internacional
O acesso à eventual vacina contra a covid-19 e tratamentos se transforma em uma disputa diplomática e financeira internacional, escancarando a distância entre potências em um momento de crise sem precedentes.
Considerado pelo presidente Jair Bolsonaro como seu principal aliado no mundo, o governo dos EUA tentou dificultar uma declaração na OMS que garanta que patentes não sejam um obstáculo a um amplo acesso mundial aos produtos. Mas uma aliança improvável entre Japão, Reino Unido, Alemanha e alguns países emergentes tenta isolar Washington. Ainda assim, especialistas consideram que o texto do acordo ficou mais fraco que muitos desejavam diante da crise mundial.
Nos bastidores, a negociação revelou nas últimas três semanas a dimensão da disputa diplomática em relação ao futuro da vacina e de tratamentos. Na segunda-feira, a OMS realiza sua cúpula, reunindo virtualmente ministros de todo o mundo. O evento, porém, promete se transformar numa ocasião de troca de farpas entre governos e acusações contra a agência mundial.
No centro da agenda estará uma resolução que determinará as regras para que governos possam ter acesso à vacina e tratamentos. Para o governo brasileiro, era fundamental que tal documento reforçasse os mecanismos legais para permitir que países tenham acesso aos remédios.
Ainda que a pandemia seja uma novidade, o debate não é inédito. No fundo, o que países discutem é a questão da propriedade intelectual sobre os futuros remédios, algo que permeou todo o histórico da luta contra o HIV. Agora, a disputa pela vacina já aumenta a tensão entre europeus, grandes empresas, países emergentes, chineses e americanos. O governo dos EUA acusou hackers de Pequim de estarem tentando roubar segredos industriais para a produção americana da vacina.
Na Europa, a empresa Sanofi causou a indignação do governo francês ao reconhecer que existe a possibilidade de que um primeiro carregamento seja entregue para os americanos. Enquanto isso, as multinacionais do setor farmacêutico buscam aliados em países em desenvolvimento para que os representem. Nas últimas semanas, a Gilead Sciences, produtora do antiviral Remdesivi preparou uma lista de países que teriam acesso preferencial ao produto, abrindo um racha entre emergentes. Para fazer parte de tais listas, porém, governos são obrigados a aceitar que a quebra de patentes não pode fazer parte da estratégia.
A guerra se transferiu para a OMS
A coluna apurou que um primeiro rascunho da resolução foi apresentado em meados de abril, num processo liderado pela UE. Naquele momento, países em desenvolvimento e europeus chegaram a sugerir a ideia de que o texto deixasse claro que uma eventual vacina fosse considerada como um "bem público mundial".
O texto reconhecia a imunização como um "bem público mundial para a saúde". O governo americano, porém, rejeitou a ideia. Países como a Argélia e outros alertaram que, se tal trecho fosse excluído do texto, a resolução inteira poderia não ter razão de existir.
Num texto alternativo, o bem público foi trocado pelo "reconhecimento dos benefícios para a população da vacinação". Ou seja, as regras que irão prevalecer continuarão a ser a do mercado. Mas a pressão de africanos e outros governos reverteu a situação e, no rascunho final que será submetido ao voto, o termo voltou a ser colocado. Nos últimos dias, líderes e nomes populares de 140 países publicaram uma carta aberta pressionando para que a vacina seja de acesso universal.
Quebra de patentes
Outro ponto de debate foi a defesa do Brasil, países emergentes e mesmo a UE de insistir que o acordo reconhecesse a necessidade de que, diante da pandemia, leis de patente deveriam ser "flexibilizadas" para garantir o acesso a todos.
O temor de governos é de que, se eventualmente uma vacina é produzida por uma empresa privada num país rico, haverá um monopólio sobre o produto. O resultado: um encarecimento para que governos possam adquirir a vacina para suas populações.
A referência à flexibilização das patentes acabou entrando no texto final. Mas, para entidades de saúde, os termos usados mostram o caráter voluntarista da declaração, sem qualquer compromisso legal. O acordo, por exemplo, cita apenas o "esforço de unidade e solidariedade para controlar a Covid-19". Em outro trecho, o documento refere a mecanismos "voluntários", o que nem sempre funcionou.
Numa das propostas alternativas e que não foi aprovada, o governo do Canadá falava em "licenças universais, não exclusivas e abertas". Por oposição americana, o texto é considerado como sendo mais fraco que as decisões recentes tomadas por governos como o da Alemanha, Canadá, Israel ou Chile de facilitar licenças compulsórias para determinados tratamentos. Também chamou a atenção de ativistas de direitos humanos que o novo texto sequer repete documentos aprovados nos últimos anos, como o da hepatite, que cita explicitamente o papel da OMS em ajudar governos a usar flexibilidade nas regras de patentes. Já na Holanda, o governo ensaiou uma quebra de patentes sobre testes de diagnósticos da empresa Roche.
Quão perto estamos de uma vacina para a Covid-19?
“Claramente, não vem a tempo do primeiro pico da Covid-19. A pergunta é se virá a tempo do segundo pico”
Ana Isabel Silva, Esquerda.net, 6 de maio de 2020
O desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19 tem sido uma preocupação de todos. Tem aberto telejornais e preenchido timelines que preocupam a sociedade civil, alertada para o facto de uma vacina ser a solução para o nosso maior problema. Uma alternativa conhecida seria o desenvolvimento de imunidade de grupo. Mas isso só seria conseguido caso um número elevado da população contraísse o vírus e ficasse depois imune ao mesmo, sem capacidade de o transmitir. Uma das preocupações e dúvidas relativamente a esta solução foi a possibilidade levantada de pessoas poderem ser infetadas uma segunda vez num curto espaço de tempo, não havendo portanto garantias de imunidade. No entanto, foi já demonstrado que a segunda infeção nestas pessoas se tratou de falsos positivos (Lan et al., 2020). Na comunidade científica, há grandes expectativas de que haja uma imunidade a médio-prazo para este vírus. A imunidade de grupo seria então uma maneira “natural” de controlo da transmissão do vírus. Porém, os estudos mostram que, apesar deste vírus estar bastante disseminado a nível mundial, ainda não afetou população suficiente para estarmos sequer próximos de atingir essa imunidade de grupo. Consequentemente, a única solução viável no tempo presente é o aparecimento de uma vacina.
Mas estará essa vacina para breve? Porque está a demorar tanto tempo a ser desenvolvida?
É importante perceber que nunca uma vacina para um coronavírus foi validada para humanos. Recentemente, foi noticiado que uma vacina para este novo coronavírus só estaria pronta em 2036. Há alguma verdade nesta previsão? Para respondermos melhor a esta pergunta, é importante perceber os passos necessários para a criação de uma vacina. Começa sempre com investigação laboratorial. Esta investigação é o que nos permite conhecer melhor o vírus com o qual estamos a lidar e perceber que abordagens poderão ser usadas numa vacina. Depois de escolhida esta abordagem, começam-se os ensaios pré-clínicos. Baseiam-se em experiências em animais que permitem ter uma primeira ideia sobre a segurança e eficácia dos componentes da vacina. Os animais normalmente usados nestas experiências são os murganhos ou ratos. No entanto, no caso do coronavírus, isso demonstrou-se não ser possível. Foi necessário então encontrar uma solução, como foi o caso do furão.
Finalmente, quando há segurança suficiente para começar os testes em humanos, passamos para a fase clínica. Esta é dividida em 3 fases. Na fase 1, apenas se testam possíveis efeitos secundários. Assim, são usados voluntários saudáveis e monitorizados para reações adversas durante algum tempo. Apenas na fase 2 se testa realmente a eficácia da vacina na proteção contra a infeção. Nesta fase, apenas algumas centenas de pessoas são testadas, enquanto na fase 3 este número aumenta substancialmente. Mesmo depois de todos estes passos feitos, é ainda necessária a produção da vacina em grandes quantidades. Por isso, consoante o tipo de vacina desenvolvida, serão necessárias infraestruturas adequadas e com a devida segurança. Depois de se garantir esta produção em grande escala, é necessária a aprovação pelas autoridades competentes e consequente utilização por parte dos serviços de saúde. No final de todo o processo, é necessário garantir a sua distribuição a toda a população. Todos estes processos levam, normalmente, décadas a ser desenvolvidos. A previsão da vacina para a Covid-19, para 2036 teve todos estes fatores em conta, calculando o tempo médio esperado para cada um dos passos. No entanto, esta previsão ignora vários factos triviais na investigação atual à vacina para a Covid. Este novo vírus, SARS-CoV-2, tem várias semelhanças com outros coronavírus já conhecidos. Consequentemente, muito já se sabe sobre este vírus. Aliás, várias potenciais vacinas foram desenvolvidas aquando do surto do SARS-CoV-1 e algumas chegaram ao início de ensaios clínicos. No entanto, com a erradicação deste vírus, muitos governos, incluindo o português, cortaram brutalmente o financiamento a esta investigação. Pensa-se que, pela semelhança entre estes dois vírus, uma vacina desenvolvida para o primeiro, teria grandes probabilidades de ser eficaz neste momento. Apesar do financiamento à Ciência ser bastante burocrático, o que poderia atrasar a investigação em curso, a verdade é que, no caso concreto, tem existido uma desbrurocratização e maior rapidez na garantia de fundos para o efeito. Tudo isto, permite diminuir bastante o tempo necessário para a investigação laboratorial. Um passo a ser encurtado é também o desenvolvimento de infrasestruturas necessárias para a possibilidade de produzir uma vacina que se demonstre eficaz. Estas infraestruturas estão já a ser pensadas e desenvolvidas, mesmo antes de uma vacina aprovada.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a 30 de abril, estavam a ser estudadas pelo menos cento e duas vacinas para a Covid-19. Mais de 70% das mesmas estão a ser conduzidas por empresas privadas. As abordagens diferem entre as equipas. Algumas estão a usar o vírus na sua forma inativa ou enfraquecida. Esta é uma abordagem recorrente, mas obviamente são necessários muitos testes de segurança, de maneira a garantir que não causa infeção a quem for administrada. Outros grupos querem administrar proteínas ou material genético do vírus. Ambas estas estratégias têm como objetivo fazer o corpo agir como se de uma infeção real se tratasse e assim desenvolver a resposta imunitária.
Uma esmagadora maioria delas está ainda no passo de ensaios pré-clínicos. Apenas oito passaram já aos ensaios clínicos, ou seja, estão já a ser testadas em humanos. Destas, seis estão na fase 1 e algumas aguardam ainda aprovação das entidades reguladoras. As maiores expectativas recaem sobre a duas mais avançadas, que se encontram neste momento no início da fase 2. Ambas usam a mesma estratégia, usam adenovírus que expressam à sua superfície uma proteína do novo coronavírus. Isto obriga o corpo a produzir uma resposta imunitária. Na ocorrência de uma infeção pelo SARS-CoV-2, o corpo terá já memória da mesma e será capaz de atuar muito mais rápida e efetivamente. Como acima mencionado, estas vacinas encontram-se na fase 2 dos ensaios clínicos. É importante relembrar que é nesta fase que uma maior percentagem de ensaios falham.
Um dos grupos responsáveis por uma destas vacinas pertence à Universidade de Oxford. Estes investigadores esperam ter mais de mil voluntários a participar no estudo. Irão monitorizá-los durante, pelo menos, seis meses. Durante este tempo, os voluntários serão monitorizados para reações adversas ao tratamento e sujeitos a vários testes de diagnóstico para perceber se são infetados pelo novo coronavírus. Serão também quantificados os anticorpos presentes no sangue destes voluntários. O estudo está previsto estar finalizado apenas em maio de 2021. A segunda vacina em fase 2 está a ser desenvolvida através de uma colaboração entre o Instituto de Biotecnologia de Beijing e a CanSino Biological Inc., na China. Este grupo foi responsável pelo desenvolvimento da vacina para o Ébola. Os parâmetros analisados são muito semelhantes aos descritos acima para o grupo de Oxford.
Mas então, se estas duas potenciais vacinas estão já em fase tão avançadas, porque são necessários tantos ensaios clínicos e pré-clínicos? Por duas razões essenciais. Uma delas, a mais evidente, é que a esmagadora maioria destes ensaios não irão funcionar. E portanto, quantas mais opções tivermos à partida, maior a possibilidade de chegarmos ao fim com alguma delas sendo viável. A segunda razão é que podemos não necessitar de uma vacina, mas sim de várias. Como sabemos que a produção e distribuição serão grandes problemas no acesso a estas vacinas, ter várias disponíveis poderá ser uma forma de colmatar este problema.
Então, e no final como se escolhem as melhores vacinas?
A OMS já desenvolveu um plano com o intuito de testar um grande número de vacinas num único estudo clinico. Isto irá permitir comparar as vacinas entre si, usando os mesmo critérios.
Tendo em conta o que foi dito acima sobre os atuais ensaios clínicos, espera-se que demorem, no mínimo mais seis meses. Esperar uma vacina antes desse tempo é completamente irrealista. Aliás, vários cientistas têm alertado para que que não haja demasiada pressa no seu desenvolvimento (Jiang, 2020). Receiam que a pressão pública possa levar a atalhos que se tornarão danosos para a saúde pública.
A previsão é que, depois de se perceber que uma vacina é segura e eficaz, possa ser usada, inicialmente, como vacina de emergência. Esta seria destinada apenas a pessoas de alto risco, como profissionais de saúde. Assim, mesmo que uma vacina esteja próxima não significa que toda a gente a receberá ao mesmo tempo.
Algo que está a preocupar a comunidade e decisores políticos é a capacidade de distribuição da vacina. É possível que, no país em que a vacina for produzida, o Governo possa ordenar a sua venda apenas a nível interno. Isto garante que os seus cidadãos serão os primeiros a ser imunizados. Muito provavelmente, seria a ideia de Donald Trump quando quis adquirir a uma empresa alemã a patente de uma potencial vacina que está a desenvolver. Na verdade, não há nenhuma lei que proíba os países de o fazer. É importante, nesta matéria, que a OMS aja enquanto reguladora da distribuição, até porque já tem precedentes nesse sentido. Apenas isso garantirá uma distribuição justa a nível mundial.
Concluindo, a previsão para uma vacina para o novo coronavírus será apenas em 2036? Como vimos, essa previsão é meramente teórica e não se adequa ao atual problema. Teremos então uma vacina já nos próximos meses? Também isso não parece possível. No melhor dos cenários, apenas no próximo ano estará pronta. Claramente, não vem a tempo do primeiro pico da Covid-19. A pergunta é se virá a tempo do segundo pico. Aliás, se esta doença se tratar de uma doença sazonal, o desenvolvimento de uma vacina será crucial. Só o tempo o dirá.
Jiang, S. (2020). Don't rush to deploy COVID-19 vaccines and drugs without sufficient safety guarantees. Nature, 579(7799), 321. doi:10.1038/d41586-020-00751-9
Lan, L., Xu, D., Ye, G., Xia, C., Wang, S., Li, Y., & Xu, H. (2020). Positive RT-PCR Test Results in Patients Recovered From COVID-19. Jama. doi:10.1001/jama.2020.2783
Ana Isabel Silva é bioquímica e pesquisadora do I3S
Não podemos depender nem do financiamento nem da pesquisa privada para o desenvolvimento da vacina
Após uma angariação de fundos de 7,4 bilhões de euros promovida pela Comissão Europeia, Marisa Matias alerta que a cooperação é importante, mas "é preciso garantir a toda a gente que ninguém fará lucro à custa de qualquer que seja o tratamento”.
Marisa Matias, Esquerda.net, 6 de Maio de 2020
Esta semana decorreu uma campanha de angariação de fundos, conduzida pela Comissão Europeia para se obter 7,5 bilhões de euros para tratamento e combate à Covid-19, destinados à procura de uma vacina e reforço de meios de diagnóstico. A eurodeputada do Bloco de Esquerda de Portugal, Marisa Matias, considera que foi “uma iniciativa de sucesso” e também uma demonstração de que “necessitamos de cooperação nestes tempos de pandemia”.
“A Comissão Europeia, num recorde de três horas conseguiu angariar 7,4 mil milhões de euros”, para os quais Portugal contribuiu com 10 milhões. Através de vídeo publicado nas redes sociais, Marisa Matias explica que “do lado da Comissão Europeia, alguns dos fundos que foram obtidos não eram necessariamente dinheiro novo, é apenas uma redistribuição de fundos, como por exemplo os 600 milhões de euros que já estavam no horizonte Europa e que foram deslocados para esta iniciativa, ou os 80 milhões de euros que estavam no fundo de resgate, ou os 400 milhões de euros que aparecem no montante global, mas que na realidade são garantias para empréstimos. Portanto não estamos a falar só de dinheiro novo, como seria necessário”.
Marisa Matias alerta que é conhecida uma recente mobilização por parte das grandes farmacêuticas “para que houvesse dinheiro público investido na investigação”, mas não se sabe “qual a ligação do apelo das farmacêuticas a esta coleta promovida pela União Europeia, só o saberemos quando o dinheiro for distribuído”.
A eurodeputada salienta a importância de que “seja universal” e de “propriedade pública”. “Se recorremos ao dinheiro público e à cooperação entre países, o que está bem, é preciso garantir a toda a gente que ninguém fará lucro à custa de qualquer que seja o tratamento”. “Quando as situações são mesmo urgentes e quando tanta gente está a morrer, não podemos depender de maneira nenhuma, nem do financiamento privado nem da investigação privada”.