A pandemia transformações gigantescas na economia capitalista globalizada e nas relações de classe com o rápido avanço das empresas de plataforma no mercado mundial. Desemprego massivo, aceleração da precarização, uberização e flexibilização do trabalho, adoção do trabalho remoto, devastação de ramos econômicos estabelecidos com base na hipermobilidade, intervenção estatal nas economias e adoção de políticas protecionistas, entre outras transformações.
No dossiê a seguir, reproduzimos matérias sobre duas das mudanças postas pela pandemia: as iniciativas de renda cidadã, universal, básica ou emergencial focadas no Brasil, de um lado, e a redução da jornada de trabalho e a adoção da semana de quatro dias, adotada em países como Nova Zelândia, Alemanha e Finlândia, de outro.
A renda universal é uma imposição das profundas transformações no mundo do trabalho
Patricia Fachin, IHU-Unisinos, 2 de setembro de 2020
Se de um lado a epidemia de covid-19 “revelou em cores ultranítidas todas as carências e iniquidades” da sociedade brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais, de outro, a implementação do auxílio emergencial para pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica demonstrou, em apenas cinco meses, como os programas de transferência de renda “são fundamentais para construir uma rede de proteção social aos mais vulneráveis”, diz Waldir Quadros à IHU On-Line. “Sem dúvida, diante do impacto social da paralisia econômica, o auxílio emergencial foi decisivo para evitar que um enorme contingente de famílias pobres ficasse sem condições de atender suas necessidades básicas”, avalia.
Os efeitos sociais do auxílio emergencial na vida das famílias que receberam o benefício trouxeram à tona novamente a discussão sobre a instituição de uma renda universal sem condicionantes. Para o economista, a implementação de uma política deste tipo é, sem dúvida, “uma imposição das profundas transformações no mundo do trabalho, em que a robotização e outras inovações eliminam rápida e profundamente os empregos, em todos os níveis de qualificação”.
IHU On-Line - O que a pandemia de covid-19 demonstrou sobre a situação social do Brasil?
Waldir Quadros - A pandemia revelou em cores ultranítidas todas as carências e iniquidades que perpassam a sociedade brasileira. Além de agravar a condição social dos trabalhadores e aumentar brutalmente o sofrimento dos pobres.
IHU On-Line - Que análise qualitativa o senhor faz da atual situação social do Brasil, desde o início da pandemia? A desigualdade social aumentou ou não?
Waldir Quadros - Ficou evidente que nossa situação social é brutalmente desumana e insustentável em condições minimamente civilizadas. Fica difícil falar em aumento ou redução da desigualdade. Na verdade, os impactos da epidemia se dão em uma estrutura de enormes desigualdades já consolidadas.
IHU On-Line - A edição mais recente da Pnad Contínua indica um aumento da taxa de desemprego. No total, são mais de 12 milhões de brasileiros desempregados. Qual é o impacto disso neste momento?
Waldir Quadros - O desemprego e o desalento foram bastante agravados pela inédita paralisia econômica. Esta situação impacta diretamente os trabalhadores populares afetados e suas famílias, agravando as condições de vida e repercutindo na economia pela redução da demanda, principalmente de bens essenciais. Porém, uma parte desse desemprego afeta a classe média, com redução da demanda por serviços.
IHU On-Line - No início da crise pandêmica no Brasil, em março, o senhor mencionou a necessidade de “fazer o possível para dar o mínimo de suporte às pessoas mais vulneráveis” e advertiu para a necessidade de implementar medidas não usuais, porque a situação não é usual. Cinco meses depois, com a instituição do auxílio emergencial, o possível foi feito? Qual sua avaliação do modo como o governo tem enfrentado essa questão?
Waldir Quadros - O governo vem enfrentando muito mal a situação em função da orientação desumana da política econômica neoliberal, que privilegia os interesses financeiros. O teto nos gastos públicos impede uma ação mais vigorosa que busque minimamente estimular o crescimento econômico. Devemos ter claro que o auxílio emergencial foi instituído pelo Congresso Nacional e implantado com muita má vontade pelo governo, bastando mencionar as constantes objeções da área econômica.
IHU On-Line - Segundo um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o auxílio emergencial possibilitou que a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza atingisse a sua menor marca em, pelo menos, 40 anos. Como o senhor interpreta essa informação e o que ela nos indica, especialmente sobre os programas de transferência de renda para enfrentar a pobreza?
Waldir Quadros - Sem dúvida, diante do impacto social da paralisia econômica, o auxílio emergencial foi decisivo para evitar que um enorme contingente de famílias pobres ficasse sem condições de atender suas necessidades básicas. Como já sabemos, os programas de transferência de renda são fundamentais para construir uma rede de proteção social aos mais vulneráveis.
IHU On-Line - Como a vida das pessoas mais vulneráveis mudou após receberem o auxílio emergencial?
Waldir Quadros - Sem o auxílio emergencial, estas famílias seriam levadas a uma situação de brutais carências e desespero.
IHU On-Line - Ontem [31-08-2020], o governo Bolsonaro prorrogou o auxílio emergencial no valor de 300 reais até o final do ano. Como o senhor avalia essa iniciativa?
Waldir Quadros - A prorrogação é fundamental, porém a redução do valor pela metade terá forte impacto negativo. Seria desejável uma resistência do Congresso Nacional, já que até o momento nossa sociedade está profundamente letárgica.
IHU On-Line - Qual sua avaliação acerca da proposta do governo de reformular o Programa Bolsa Família, aumentando o benefício e o número de beneficiários, mas, talvez, tendo que encerrar outros programas sociais, como a Farmácia Popular?
Waldir Quadros - Esta proposta está inserida na concepção geral da área econômica de preservar o teto de gastos, transferindo recursos de uma ação social para outra, preservando os interesses dominantes. Uma alternativa bastante discutida pelos setores progressistas seria enfrentar esses gastos, e outros, com taxação da riqueza e dos altos rendimentos.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores dizem que o teto para os programas de transferência de renda é de 3% do PIB, enquanto outros argumentam que este é o momento de tentar instituir uma renda universal para todos os brasileiros, especialmente por conta da crise econômica e das mudanças que estão em curso no mundo do trabalho. Como o senhor tem pensado sobre essa questão? A renda universal é uma alternativa para o Brasil? Sim, não, por quê?
Waldir Quadros - Sem dúvida, a renda universal é uma imposição das profundas transformações no mundo do trabalho, em que a robotização e outras inovações eliminam rápida e profundamente os empregos, em todos os níveis de qualificação. Esta avaliação é, inclusive e crescentemente, acatada pelos setores internacionais conservadores e liberais mais civilizados. E mesmo por titulares de grandes fortunas, que advogam o aumento da tributação para sustentar esses gastos.
IHU On-Line - Alguns avaliam que propostas de renda básica, quando são feitas por liberais, têm o objetivo de encerrar outros serviços públicos. Qual sua avaliação?
Waldir Quadros - Como disse acima, esta concepção é dominante na atual e míope gestão econômica, regida exclusivamente pelos interesses da riqueza.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios do Brasil neste momento, pós-pandemia?
Waldir Quadros - Enfrentar decididamente o agravamento da situação social e avançar na recuperação de níveis mínimos de crescimento econômico, fundamentalmente com projetos de infraestrutura e construção civil, particularmente a residencial, com o que também seria atacado o gravíssimo déficit habitacional.
Waldir Quadros é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.
Metade da população brasileira foi beneficiada pelo auxílio emergencial
Pessoas mais pobres foram mais alcançadas com a ajuda criada para a pandemia, recebendo 75,2% das transferências, segundo o IBGE. Desemprego sobe, mas dinheiro circulando cresce.
Heloísa Mendonça, El País, 23 de junho de 2020
O número de domicílios beneficiados pelo auxílio emergencial cresceu no mês de junho. A ajuda, que garante proteção social no período de enfrentamento da crise da pandemia da covid-19, chegou, no mês passado, a 29,4 milhões de lares brasileiros (43%), onde vive praticamente a metade (49,5%) da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados nesta quinta-feira. Na comparação com o mês de maio, houve um aumento de 3,1 milhões de lares beneficiados, em que pelo menos uma pessoa da família teve acesso ao principal programa assistencial durante a crise sanitária. A população mais pobre foi mais beneficiada com o auxílio, recebendo 75,2% das transferências.
Nos Estados das regiões Norte e Nordeste, o percentual de domicílios beneficiados com auxílio emergencial ultrapassou os 45%. No Amapá e no Maranhão, por exemplo, a proporção de beneficiados foi superior a 65%. Já em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, a cobertura do programa não alcançou 30% dos domicílios, segundo dados da pesquisa.
Auxílio tem maior impacto entre os mais pobres
A pesquisa mostra que, em junho, o auxílio emergencial teve impacto maior sobre a parcela dos 10% da população com os menores rendimentos, o que equivale a cerca de 21 milhões de brasileiros que residem em domicílios com renda domiciliar de até 50,34 reais. Dessa faixa, 17,7 milhões (83,5%) moram nos lares que receberam o benefício. Para esse contingente, a renda domiciliar per capita passou de 7,15 reais para 271,92 reais, um aumento de 3.705%.
Na segunda faixa de renda, o benefício contemplou 86,1%, o que corresponde a 18,2 milhões dos 21 milhões de pessoas que residiam nas casas onde pelo menos uma pessoa recebeu o auxílio. O impacto do auxílio para esse grupo foi de uma alta de 150% —a renda domiciliar per capita passou de 150,88 reais para 377,22 reais—.
Para Cimar Azeredo, diretor-adjunto do IBGE, os dados divulgados revelam que o programa teve grande impacto sobre os rendimentos das pessoas mais vulneráveis, que na ausência do benefício viveriam com 354,18 reais ou menos. “O auxílio emergencial atingiu cerca de 80% dos domicílios duas primeiras faixas de renda e cerca de três quartos dos domicílios da terceira faixa. Isso demonstra a importância do programa na renda domiciliar per capita dos domicílios dos estratos de renda mais baixos”, disse.
Nesta quinta-feira, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) propõe que 132 países de renda baixa e média garantam um pagamento básico por um tempo limitado para frear a pandemia. Com um valor mínimo garantido, três bilhões de pessoas na pobreza no mundo não seriam obrigadas a sair de casa todo dia para ganhar o pão, e assim o vírus deixaria de se espalhar.
O atual auxílio emergencial do Governo de Jair Bolsonaro é destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, com renda domiciliar per capita que não deve ultrapassar 522,50 reais ou a renda total do domicílio que não ultrapasse a três salários mínimos (3.135 reais). O benefício, inicialmente programado para abril, maio e junho, foi prorrogado por mais dois meses e irá até agosto.
O levantamento publicado pelo IBGE nesta quinta-feira foi feito por meio da Pnad Covid, versão da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua realizada com apoio do Ministério da Saúde para identificar os impactos da pandemia no mercado de trabalho e para quantificar as pessoas com sintomas associados à síndrome gripal no Brasil.
Sobe a fila do desemprego no país
A pesquisa revelou ainda que que o país encerrou junho com 11,8 milhões de desempregados, 1,7 milhão a mais que o registrado em maio. Com esse aumentou, a taxa de desocupação passou de 10,7% para 12,4%. A proporção de desempregados aumentou em todas as grandes regiões do Brasil. De acordo com Cimar Azeredo, essa alta na fila do desemprego está diretamente ligada à flexibilização das regras de distanciamento social no mês passado. “Isso implicou no aumento da população na força trabalho, já que o número de pessoas que não buscavam trabalho por causa da pandemia reduziu frente a maio. Elas voltaram a pressionar o mercado”, explica.
O diretor-adjunto do IBGE ressalta, no entanto, que apesar da queda na população ocupada em junho, houve um aumento da massa de rendimento efetiva (a soma do que todos os trabalhadores recebem), de 157 bilhões reais para 159 bilhões. “Esse é um dado positivo, porque indica que tivemos mais dinheiro proveniente de trabalho circulando em junho do que em maio. Esse dado indica reação do mercado”, afirma.
Continuou caindo, em junho, o número de pessoas (7,1 milhões) que ficou sem a remuneração do trabalho devido ao distanciamento social. Esse contingente é menor que o registrado no mês passado (9,7 milhões), mas ainda corresponde a quase metade (48,4%) do total de pessoas afastadas do trabalho.
“É importante acompanhar esse grupo, junto com os desocupados, desalentados e a força de trabalho potencial porque é um conjunto de pessoas sem rendimentos de trabalho. Essas variáveis podem orientar as decisões de manutenção de programas de transferência de renda”, afirmou o diretor adjunto do IBGE.
Depois da pandemia, a semana de quatro dias
"Uma semana universal de quatro dias em si não é uma panaceia para os relacionamentos, ou para a frustração com os locais de trabalho — ou mesmo para resgatar a economia. Mas Ardern sugere que ela seja considerada, em meio a uma série de mudanças no mundo do trabalho que os empregadores precisam aceitar".
Van Badham, Outras Palavras, 4 de junho de 2020
Cresce o debate sobre saídas anticapitalistas para a crise. Depois de derrotar a covid-19, primeira-ministra da Nova Zelândia vai adiante. Propõe, para reestimular a economia sem ampliar a desigualdade, menos trabalho, com os mesmos salários.
Agora, a popularidade de Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, pelo Partido Trabalhista, é estratosférica. Com a confiança que a popularidade lhe trouxe, seu governo passou a se posicionar mais nitidamente, promovendo ideias políticas que pareciam inimagináveis apenas alguns meses atrás. Uma delas, discutida no mês passado, encoraja o país a adotar uma semana de trabalho de quatro dias úteis.
A liderança de Ardern na Nova Zelândia, na crise do coronavírus, fortaleceu o apoio consolidado graças ao manejo empático e impecável de seu governo, durante o terrível massacre da Mesquita de Christchurch, [realizado por um supremacista branco], no ano passado. Quando o coronavírus atacou, o lockdown foi implementado rapidamente, de forma draconiana e eficaz. Até o momento, houve apenas 22 mortes pela doença no país. Hoje, enquanto o resto do mundo depara-se um número crescente de casos diários, nenhum novo caso foi registrado na Nova Zelândia há cerca de um mês [veja estatísticas completas].
Um impressionante número de 92% dos neozelandeses elogia a política de contenção da doença adotadas pelo governo. Segundo as últimas enquetes, Ardern é a líder de governo mais popular, em mais de 100 anos
Com a iminente oportunidade de reestruturar a economia da Nova Zelândia na reabertura pós-coronavírus, Ardern está explorando um conjunto de políticas de ambição inusitada. O turismo, que foi o maior atingido com a crise, é o principal mercado de exportação da Nova Zelândia, empregando 15% dos neozelandeses e contribuindo para quase 6% do PIB; e foi no contexto de salvar esse setor que Ardern sugeriu, em 13/5 — de maneira informal, numa live no Facebook, desde a turística cidade de Rotorua — que caso o país adote uma semana de trabalho de quatro dias, esse tempo extra de lazer permitiria que o mercado turístico nacional se expandisse, suprindo a retração atual.
A formulação foi cuidadosa. “Eu já ouvi muitas pessoas que sugerem que deveríamos ter uma semana de trabalho de quatro dias. Mas, em última análise, isso fica entre os empregadores e seus funcionários”, disse Ardern.
Mesmo assim, a simples sugestão já “empolga os neo-zelandeses”, além de ter potencial de entusiasmar a “geração corona” [os jovens que chegam à vida adulta junto com a pandeima], ao redor do mundo. Quando Ardern explicou que “aprendemos muito sobre… [a flexibilidade] das pessoas que trabalham de casa, da produtividade que pode surgir disso”, ela estava falando de uma realidade material, vivenciada, sobre a maior transformação física dos locais de trabalho na memória ocidental.
No mundo todo, o distanciamento social não só resultou em números recordes de pessoas trabalhando desde casa. Ele escalonou e rearranjou turnos, reorganizando a distribuição da força de trabalho em torno de sistemas de produção, distribuição e troca novos, e continuamente improvisados, como ocorre devido à demanda em uma crise econômica e de saúde. Economistas a consideram a maior transformação da força de trabalho desde a Segunda Guerra Mundial e, apesar do horror constante que significa administrar um vírus invisível e letal, que ressalta todos esses rearranjos, para alguns trabalhadores houve benefícios surpreendentes.
Na intimidade das conversas de grupo, nas mídias sociais, transparecem mais as confissões explícitas de muitos neozelandeses — com um pouco de culpa — sobre o quanto, no fundo, estão gostando de seus novos cronogramas e desse tempo obrigatório em casa. Quem é pai deve estar achando um grande desafio os malabarismos que exigem conjugar a educação em casa com seus compromissos laborais, mas muitos também apreciam esse maior tempo com seus filhos.
Uma cultura laboral que ainda gira, em tantos casos, em torno do modelo do “chefe de família” distancia os homens de responsabilidades domésticas. Agora, muitos deles, ao conquistar proximidade, adquirem o sentido de um maior envolvimento diário com seus filhos.
As mulheres neozelandesas veem oportunidades reais de que empregos pós-Covid-19 se realizem gerando flexibilidade real para cumprir os compromissos de assistência e cuidados. Os que parecem estar se dando melhor psicologicamente, nestes tempos difíceis e extremos, são aqueles cujos dias agora incluem fazer coisas pela comunidade, ou realizar mais atos de cuidado. Em minha experiência pessoal, meu parceiro e eu estamos mais felizes conosco e em nosso relacionamento, ao não ter mais o stress dos deslocamentos e ao poder passar mais tempo juntos em casa.
Uma semana universal de quatro dias em si não é uma panaceia para os relacionamentos, ou para a frustração com os locais de trabalho — ou mesmo para resgatar a economia. Mas Ardern sugere que ela seja considerada, em meio a uma série de mudanças no mundo do trabalho que os empregadores precisam aceitar. Se houver flexibilidade, alguns trabalhadores poderão optar, na lógica da proposta, por mais jornadas semanais, porém com menos horas diárias. Outros, ainda, estariam melhor trabalhando em tempo integral em casa; e alguns seriam mais produtivos com uma combinação de distintas condições.
Mas o que garantirá a revitalização das economias, um aumento na produtividade e um equilíbrio efetivo na vida profissional dos trabalhadores são os cenários gêmeos que a semana de quatro dias inerentemente propõe.
O primeiro é ajustar as escalas salariais para fornecer o equivalente a um salário digno com base em quatro dias de trabalho em tempo integral. Isso permitiria amenizar os efeitos de uma economia desacelerada e injetar mais dinheiro em mercados de consumo abalados. O segundo, é um novo paradigma sobre o local de trabalho sugerido pelo cardápio de ideias de Ardern. Este menu acaba com quatro décadas de pregação neoliberal em favor de um tipo de “flexibilidade” que favoreceu apenas os empresários. O modelo é substituído por outro, que implica flexibilidade democrática, em favor dos trabalhadores, famílias e comunidades verdadeiramente social-democrática que sirva, por meio dos trabalhadores, às famílias e comunidades.
Em meio a uma claque de líderes ocidentais que anseiam por “voltar à normalidade” das coisas antes do vírus — muitos em em busca de estratégias de “recuperação” que eliminem ainda mais direitos — a Nova Zelândia mostra, bravamente, coragem de avançar. Não é de se admirar que sua governante tenha se tornado tão popular.
Van Badham é escritora, comentarista social australiana, dramaturga e romancista, escrevendo dramas e comédias, e colunista do The Guardian Australia. Artigo publicado por Outras Palavras. A tradução é de Simone Paz.
Alemanha: para enfrentar a pandemia, semana de trabalho de quatro dias
“A história do trabalho também é uma história da redução do trabalho”. Esta frase foi confrontada, há poucos dias, pelos leitores do jornal conservador e pouco amigo do progressismo alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. O artigo que continha essa afirmação levava no título uma eloquente pergunta: “Trabalhar apenas quatro dias?”.
Aldo Mas, El Diario/IHU-Unisinos, 30-08-2020. Tradução: Cepat.
O fato deste jornal, considerado um dos bastiões do ordoliberalismo teutônico, dedicar suas páginas a essa pergunta, mostra o caminho que está percorrendo no país da chanceler Angela Merkel a ideia de reduzir a jornada de trabalho para quatro dias semanais. Algumas semanas atrás, veio à mesa pela deputada e copresidente do Die Linke, Katja Kipping.
Ela defendeu a proposta como "uma utopia realista" que para muitos pode soar mais como a realidade. Acima de tudo, porque o principal e influente sindicato da indústria alemã, o IG-Metall, também apoia esta redução da jornada de trabalho. Além disso, nestes dias, ouve-se também essa defesa por parte de economistas, gestores do mundo empresarial e até do Governo alemão, que há poucos dias concordou em ampliar, até o final de 2021, o mecanismo dos kurzarbeit, o equivalente ao ERTE espanhol, para parar a destruição do trabalho devido à crise do coronavírus.
Em tempos de pandemia, o argumento mais poderoso de Kipping provavelmente é que uma jornada de trabalho mais curta é, em última análise, uma questão de saúde pública. Em seu entender, ajudaria a romper com uma cara dinâmica da qual se fala pouco no mercado de trabalho alemão. “A duração média das licenças médicas por doenças relacionadas ao estresse é três vezes maior do que para outras doenças”, segundo destacou a líder do Die Linke, que defendeu que em setores como o das novas tecnologias a redução da semana de trabalho não tem nada de utópico.
Kipping citou o exemplo da empresa estadunidense Microsoft, que registrou a experiência de colocar seus funcionários para trabalhar quatro dias semanais e ver a produtividade de seus funcionários crescer “quase 40%". Mas a redução do trabalho semanal vai além do setor de informática. Caso contrário, o IG-Metall não teria se manifestado a favor da ideia.
Jörg Hofmann, presidente desse sindicato, destacou em entrevista recente ao Süddeutsche Zeitung que trabalhar menos traz mais benefícios do que os relacionados à saúde pública e ao aumento da produtividade. “A semana de quatro dias seria a resposta para a mudança estrutural em setores como a indústria automobilística”, segundo Hofmann.
E assim, faz alusão à difícil situação em que se encontra o estratégico setor automobilístico alemão, agora atingido pela crise da Covid-19, mas, sobretudo, pelo que parece ser o inexorável futuro elétrico da mobilidade. Nesse contexto, já existem empresas, como o consórcio da montadora alemã Daimler, em que se aplica a ideia de reduzir a jornada de trabalho para salvar empregos.
Para Hofmann, reduzir o tempo de trabalho semanal tem muito a ver com a proteção do emprego. “A transformação não deve levar a demissões, mas a um bom trabalho para todos. Nesse sentido, os empregos industriais podem ser mantidos e não eliminados”, afirma o presidente do IG-Metall.
Economistas e empresários a favor
Vários economistas aproveitaram o debate para apontar que essa proposta não consiste em um "devaneio", termo usado, por exemplo, pelo semanário Der Spiegel. O economista Heinz-Josef Bontrup, professor emérito da Universidade de Gelsenkirchen, também destacou, em recente entrevista ao Frankfurter Rundschau, que “já existem estudos suficientes que comprovam que quem trabalha menos é mais produtivo”.
Também foram ouvidas vozes favoráveis à conveniência da semana de quatro dias pelo Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW, em sua sigla em alemão). Seu presidente, Marcel Fratzscher, tem se pronunciado a favor, embora também tenha assinalando que a ideia só faria sentido no caso de que se aceite receber menos e não o mesmo por menos horas de trabalho.
Nesses dias, muitos lembram que, nos anos 1990, a fabricante de carros Volkswagen, para enfrentar a crise que sofria naquele momento, conseguiu garantir empregos reduzindo as semanas de trabalho para 28,8 horas. Talvez diante de experiências como essa, já existam associações patronais que veem com bons olhos a ideia.
Um exemplo é a Associação Bávara da Indústria Elétrica e do Metal (VBM), cujo presidente, Bertram Brossardt, parece até aprovar a ideia. "Tudo o que garanta emprego está bom", disse recentemente Brossard ao jornal Handelsblatt. “Uma redução salarial que esteja alinhada à jornada de trabalho ajuda as empresas a manterem a liquidez”, segundo Brossardt.
A manutenção da liquidez nas empresas tem sido uma das prioridades do executivo da grande coalizão liderada pela conservadora chanceler Angela Merkel. Este é um dos objetivos do Fundo de Estabilização da Economia, dotado com 600 bilhões de euros e uma das iniciativas levantadas pelo Governo Alemão para enfrentar a crise da Covid-19.
Evitar um insustentável aumento do desemprego é outra das prioridades de Merkel e companhia nesta crise. Talvez por isso mesmo o Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, o social-democrata Hubertus Heil, se pronunciou a favor da ideia do Die Linke e do IG-Metall.
“A redução da jornada de trabalho com uma parcial compensação salarial pode ser uma medida razoável, caso os atores sociais entrem em acordo a esse respeito”, disse Heil ao grupo midiático Funken Mediengruppe.
No seu entender, não é que a redução da jornada de trabalho seja uma "utopia", nem que seja um "sonho". Nestes tempos de desaceleração econômica devido ao coronavírus, esta proposta parece ter um lugar entre as "medidas pragmáticas e boas que são necessárias para sairmos juntos da crise".
Nova Zelândia propõe uma semana de trabalho de quatro dias
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, sugeriu que os trabalhadores considerem uma semana de trabalho de quatro dias e outras opções de trabalho mais flexíveis para permitir a conciliação das famílias e fomentar o turismo interno no país.
El Diario/ IHU-Unisinos, 20 de maio de 2020. A tradução é do Cepat.
Em um vídeo publicado no Facebook e apresentado por The Guardian, Ardern afirma que reuniu todas as sugestões dos cidadãos, de uma semana mais curta a mais dias comemorativos com o objetivo de estimular a economia. “Ouvi muitas pessoas e em definitivo é algo que precisa ser debatido por empregados e empregadores”, aponta a primeira-ministra. “A COVID nos ensinou muitas coisas, entre elas, a flexibilidade trabalhista e o teletrabalho”.
Este sistema seria inspirado no “kurzarbeit” alemão. Um modelo que permite manter e compatibilizar o emprego com mais tempo livre ou no investimento para melhorar suas capacidades trabalhistas.
Jacinda Ardern fez um chamado pedindo aos empresários para que levem em consideração esta possibilidade, quando aplicável a sua empresa, porque “ajudaria o turismo” no país. A mensagem, gravada em Rotorua, um dos pontos mais turísticos da Nova Zelândia, supôs um alívio para o setor, que há semanas sofre com a queda nos ingressos pela falta de turistas estrangeiros e os cortes que os próprios neozelandeses estão fazendo em sua economia por causa das demissões.
Ainda que este anúncio informal da primeira-ministra chegue após a crise do coronavírus, algumas empresas locais já tinham implantado este sistema há vários anos. É o caso de Andrew Barnes, um empresário que, desde 2018, permite a jornada de trabalho de quatro dias para seus 200 trabalhadores e que, segundo Barnes, melhorou a produtividade e beneficiou a saúde mental e física de seus empregados. Disse também que teve um impacto positivo em todas as suas famílias, seu entorno e inclusive na mudança climática.
“Precisamos manter todos os benefícios do teletrabalho, incluído o ar mais limpo e menos engarrafamentos, com a perda de produtividade derivada dos deslocamentos. Além disso, ajuda as empresas a se manter em vigor”, afirma Andrew Barnes ao jornal britânico. “Temos que ser audazes com o nosso modelo. Esta é uma oportunidade para um reinício massivo”.
Desde que começou a pandemia, milhares de pessoas perderam seu trabalho no país e o Fundo Monetário Internacional (FMI) previu que a economia se contraia em 8% e os números de desemprego aumentem entre 15 e 30%.
A primeira-ministra finlandesa Sanna Marin relança a jornada de seis horas
Reduzir a jornada de trabalho para seis horas não apenas é possível, é uma escolha que a política deve prosseguir ativamente: quem reitera isso, depois de ter se expressado várias vezes neste sentido também nos últimos meses, foi a primeira-ministra finlandesa Sanna Marin, que voltou a insistir na introdução das seis horas de trabalho durante o seu discurso no congresso do partido social-democrata do país.
Chiara Merico, Business Insider/IHU-Unilinos, 28 de agosto de 2020. Tradução: Luisa Rabolini.
Menos horas não significa menos produtividade, muito pelo contrário, defende Marin, que agora deve persuadir os outros quatro partidos da coalizão governista a adotarem sua proposta de redução da jornada de trabalho, atualmente de oito horas por dia, apesar das preocupações com o aumento do desemprego devido à crise de covid-19.
"Precisamos criar uma visão clara e tomar medidas concretas para que a Finlândia possa chegar a ter em breve uma jornada de trabalho mais curta e os trabalhadores finlandeses uma melhor vida profissional", ressaltou Marin, que aos 34 anos é uma das mais jovens premiês do mundo - tomou posse em dezembro de 2019 - e a partir de segunda-feira, 24 de agosto, também foi nomeada presidente do Partido Social-Democrata finlandês. Embora, como explica a Reuters, o congresso tenha rejeitado uma primeira proposta da premiê de experimentar a jornada de trabalho de seis horas, optando por uma linha mais genérica sobre a redução do horário e a introdução de maior flexibilidade, Marin reiterou que um dia mais curto é possível aumentando a produtividade, e sem criar problemas para as finanças públicas ou entrar em conflito com a meta do governo de elevar a taxa de emprego da Finlândia dos atuais 73,7% para 75%. “A riqueza produzida graças ao aumento da produtividade do trabalho deve ser redistribuída, não só entre os proprietários e os investidores, mas também entre os trabalhadores”, explicou.
A questão é cara à premiê finlandesa, que já há um ano - quando era Ministra dos Transportes - havia levantado a questão durante a convenção pelo 120º aniversário do seu partido, para depois reiterar o conceito em janeiro passado, ainda que na época a proposta ainda não estivesse na agenda do governo. “Uma semana de trabalho de quatro dias, uma jornada de seis horas: por que esse não pode ser o próximo passo? As oito horas são realmente a única realidade possível?” se perguntava Marin em agosto de 2019. “Acredito que as pessoas merecem passar mais tempo com suas famílias e amigos, ou dedicar parte do dia às suas paixões ou a outros aspectos da vida, como a cultura”.
Um ano depois, na nova posição de premiê e presidente do partido, Marin lembrou: "A proposta causou alvoroço porque ao longo dos anos o debate sobre a vida profissional se concentrou sobre outras questões". No entanto, “uma das formas de redistribuir a riqueza de forma justa é melhorar as condições de trabalho e reduzir as horas de trabalho sem afetar os níveis de renda”. Já no passado, “quando a Finlândia adotou a jornada de oito horas e a semana de cinco dias, não houve redução dos salários que, aliás, aumentaram com o tempo”.
Vários estudos, salientou a premiê finlandesa, sugerem que a redução da jornada de trabalho pode levar a um aumento da produtividade, possibilitando aos empregadores pagar aos empregados um salário inalterado. "Certamente haverá desafios a enfrentar, mas isso não significa que não tenhamos que definir metas ambiciosas."
Além disso, Marin explicou, a experiência do coronavírus levou muitas pessoas a reconsiderar sua escala de prioridade, dando uma ordem diferente ao que consideram importante na vida. “A saúde, o bem-estar das pessoas importantes para nós e dar sentido à vida quotidiana são questões que temos de abordar de perto com uma visão a longo prazo. Quando nossos hábitos começam a desmoronar, é hora de começar a pensar em nossas vidas de um novo ponto de vista”.