Em artigo para a revista Time, Sidarta Ribeiro explica por que não podemos ignorar nossos sonhos. Sidarta Ribeiro é fundador do Instituto do Cérebro da UFRN e autor de “O oráculo da noite”.
José de Paiva Rebouças, Agecom/UFRN, 26 de novembro de 2021
“É hora de abandonar o hábito ancestral de competir em vez de colaborar, de acumular em vez de compartilhar”. Com essa frase, o biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro abre o último parágrafo de um artigo de opinião amplamente difundido pela conceituada revista norte-americana Time. O pesquisador e vice-diretor do Instituto do Cérebro (ICe), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ganhou notoriedade internacional nas ciências estudando os efeitos do sono, dos sonhos e das memórias. No artigo Why we can't ignore our dreams, ele discute a importância de voltar ao passado para compreender o presente e mudar a maneira de olhar a vida e seus efeitos na natureza.
Sidarta começa lembrando dos sonhos premonitórios de Júlio César e sua esposa, Calpúrnia. O imperador romano sonhou voando alto a ponto de se encontrar com o deus Júpiter. Já sua esposa viu no sonho que ele seria esfaqueado e pediu para que não saísse de casa no dia seguinte. “Ambos os sonhos eram precognitivos: enquanto a subida ao céu para estar com o rei dos deuses era uma metáfora da morte de César e subsequente divinização, as imagens concretas do sonho de sua esposa previam o futuro em detalhes”, conta Ribeiro no artigo.
Ao trazer essa referência, o neurocientista desafia a ordem vigente da ciência ao defender que os sonhos podem ser compreendidos além de uma experiência de imaginação do inconsciente, assim como pensam a psicanálise e a maioria dos líderes espirituais. Em seu texto, Sidarta lembra que a noção de que os sonhos podiam prever o futuro era amplamente aceita na Antiguidade, como visto em alguns dos primeiros registros escritos da Mesopotâmia, no Império Assírio e até no sonho de São José, que previu o risco que corria o menino Jesus de ser morto pelo rei Herodes. “Hoje em dia, entre os povos Yanomami, na Amazônia, o xamã Davi Kopenawa usa os sonhos para liderar seu povo contra os ataques, incêndios e envenenamento de rios promovidos por garimpeiros invasores”, diz Sidarta.
O pesquisador reforça que a maioria, senão todas as religiões, considera o sonho um portal para a revelação divina e é preciso compreender a jornada psicológica feita por ancestrais para justificar essas crenças fantásticas e descobrir se é possível conciliar os sonhos com a visão de mundo materialista e ainda saber por que isso importaria. Mas, para chegar a uma resposta adequada, Sidarta lembra que é preciso compreender as funções biológicas do sono, reconstituir a evolução do sonho e examinar o significado do sonho desde a Pré-História, embora, ao final, a investigação sugira que os sonhos são mais importantes agora do que nunca.
“O sono desempenha muitos papéis diferentes em nossos corpos, como a estimulação da síntese de proteínas, liberação hormonal, desintoxicação e processamento da memória. Durante o sono, as memórias são reproduzidas por meio da reverberação de padrões de atividade neuronal. O sono tem diferentes estágios. O sono de ondas lentas processa memórias de pessoas, animais, objetos, lugares e eventos. O sono REM processa memórias emocionais, como lidar com um incidente frustrante, e memórias de procedimento, como andar de bicicleta”, explica Sidarta, reforçando que a intensidade e a complexidade da experiência do sonho atingem o pico durante o sono REM (do inglês: Rapid Eye Movement: Movimento Rápido dos Olhos).
Ele lembra que insights criativos, como a máquina de costura, de Elias Howe, a tabela periódica, de Dmitri Mendeleev, e a canção Yesterday, de Paul McCartney, surgiram de sonhos. Uma explicação trazida para isso é que, segundo Sidarta, o sono REM e os sonhos aumentam a reestruturação da memória, a resolução de tarefas e a criatividade. “Durante o sonho lúcido, a pessoa se torna consciente dos sonhos e é capaz de moldá-los. Substâncias que induzem estados de sonho, como cannabis e psicodélicos, aumentam a cognição e a criatividade e tratam a depressão e o trauma”, contextualiza.
De acordo com o cientista, a neurociência veio corroborar muito o que Sigmund Freud e Carl Jung propuseram há mais de um século, como, por exemplo, a observação de que a noção de resíduo diurno concorda com a evidência elétrica e molecular da reativação da memória durante o sono. “Da mesma forma, a ideia de que os sonhos refletem desejos tem uma base neurológica sólida, uma vez que sonhar requer a ativação de neurônios que usam a dopamina para sinalizar recompensa e punição. O sono REM ativa a Rede de Modo Padrão (DMN: do inglês Default Mode Network), um grupo de regiões do cérebro envolvidas na representação de narrativas autobiográficas, viagens mentais pelo passado e futuro e as mentes de outros seres”, ensina.
O DMN, continua Sidarta, é fundamental para atribuir estados mentais a outras pessoas, o que permite empatia. “Durante o sono REM, o DMN dá vida às interações entre o ego e outras 'criaturas mentais', simulando adaptações a cenários futuros potenciais. Não é de surpreender que os sonhos tornados realidade sejam a essência da mudança social”, relata.
“Mas como e por que tudo isso evoluiu?”, questiona o pesquisador. De acordo com ele, pássaros, répteis e polvos exibem um estado como o sono REM, mas apenas nos mamíferos dura o suficiente para gerar as sequências complexas de imagens chamadas de sonhos. “Esse oráculo neurobiológico, não determinístico, mas sim probabilístico, alerta para perigos e oportunidades potenciais, orientando sobre as decisões a serem tomadas. Sonhar aumentou a flexibilidade comportamental e provavelmente aumentou a radiação dos mamíferos em todo o globo”, diz o pesquisador, lembrando que, embora a maioria dos mamíferos, talvez todos, seja capaz de sonhar, apenas os humanos contam os sonhos uns para os outros. “A interpretação comum dos sonhos é uma fonte tradicional de coesão de grupo, criatividade e conselho em face de um mundo hostil”, completa.
O cuidado com o sonho, segundo Ribeiro, começou a se desenvolver já no Paleolítico Superior, quando nossos ancestrais sonharam com inovações empáticas e transformadoras. De acordo com suas pesquisas, o registro histórico contém documentação abundante do contato onírico altamente considerado com parentes e deuses mortos, o que enriqueceu vigorosamente a vida interior de nossos ancestrais e levou à acumulação cultural sem precedentes que catapultou nossa linhagem para o futuro.
No entanto, diz o neurocientista, esse comportamento começou a mudar nos últimos cinco séculos, a partir do estabelecimento do capitalismo no mundo. E, mesmo voltando a ter repercussão com Freud e Jung, os sonhos nunca mais recuperaram sua importância social, perdendo inteiramente sua relevância de grupo. “Com todos os estímulos que invadiram nossas vidas, a oportunidade de dormir e sonhar está cada vez mais ameaçada. A perda de sono pode levar ao déficit de memória, alterações de humor, depressão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e riscos de doença de Alzheimer. A perda de sonhos, por sua vez, pode levar a uma profunda falta de percepção de nossos desejos, medos e desafios, bem como a uma incapacidade de avaliar as consequências de nossas ações”, alerta.
São muitos os efeitos causados pela mudança política e econômica do mundo, segundo Sidarta Ribeiro, entre eles estão os fatores que extrapolam o comportamento natural dos indivíduos, que agora se sentem culpados ao tentar relaxar porque seu “chefe interior nunca dorme”. “Se continuarmos, o meio ambiente e nossa saúde entrarão em colapso. Se desacelerarmos, a economia entrará em colapso. O que há de errado conosco?”, pergunta.
Em sua percepção, a dificuldade humana de imaginar futuros alternativos se deve ao abandono do sonho. “Não prestamos atenção aos sonhos, seja em casa, na escola ou no trabalho. Ao acordar de manhã, simplesmente não podemos ficar quietos na cama o tempo suficiente para reconstruir os sonhos que acabamos de ter. E mesmo quando conseguimos lembrar nossos sonhos, muitas vezes eles retratam apenas desejos e medos individuais, ao invés de uma visão coletiva de um futuro melhor. Com nossa introspecção amortecida e nossa empatia sufocada, obstinadamente continuamos a avançar em direção ao momento mais perigoso da aventura humana”, argumenta Sidarta.
Ele tem ciência de que atender aos nossos sonhos não será suficiente para resolver as crises enfrentadas agora, mas acredita que ajudará a sociedade a galvanizar o gigantesco capital financeiro e tecnológico possuído por menos de 3 mil bilionários e 9 milhões de cientistas. O problema, ele volta a advertir, é que nem o capitalismo nem a ciência têm a bússola moral para guiar essa redenção, por isso sugere que precisamos da orientação das criaturas mais sábias de nossas mentes e de sonhadores como o Papa Francisco, Greta Thunberg, o líder indígena Raoni e o Dalai Lama, para que os mais fortes entre nós possam reaprender a cuidar dos mais fracos. “Apenas protegidos pelo amor mais genuíno, teremos uma chance”, exalta Ribeiro.
Para o pesquisador, uma atualização cultural é urgentemente necessária, tanto por parte dos líderes políticos como dos cidadãos comuns, pois é hora de reaprender a arte de sonhar com os xamãs nativos que alertam sobre a iminente ‘queda do céu’ causada pelas ações predatórias imprudentes. “Desigualdade, intolerância, mudança climática e a pandemia tornam muito clara a necessidade de uma ação conjunta. A segurança só pode vir de um sonho compartilhado sobre um futuro mais inclusivo. Se quisermos ficar por aqui, é vital entender o que são os sonhos para o bem comum e reaprender a arte de compartilhá-los com nossa família, amigos e vizinhos planetários”, completou Sidarta Ribeiro.