Para Helena Norberg-Hodge, a resposta ao poder global das corporações, ao declínio da democracia e às desigualdades, é produzir segundo necessidades locais, distribuir as riquezas e desfrutar o tempo. Como fazê-lo?
C J Polychroniou entrevista Helena Norberg-Hodge, Truthout / Outras palavras, 4 de fevereiro de 2022
Existe uma alternativa viável para os problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais decorrentes da globalização? Que tal a “relocalização”? Essa é a solução para a globalização proposta por Helena Norberg-Hodge, fundadora e diretora da Local Futures, organização focada na construção de um movimento dedicado à sustentabilidade ambiental e ao bem-estar social por meio da renovação das economias locais. Norberg-Hodge é pioneira do movimento da nova economia, que atualmente se expande por todos os continentes, e organiza o Dia Mundial da Relocalização, apoiado por nomes como Noam Chomsky. Norberg-Hodge é autora de vários livros e produtora do premiado documentário The Economics of Happiness.
Nesta entrevista, Norberg-Hodge discute em detalhes por que a relocalização representa uma alternativa estratégica à globalização e uma saída para o enigma climático. Ela aborda também as maneiras pelas quais a relocalização desafia a disseminação do autoritarismo e debate como pode ser um mundo pós-pandemia.
Helena: “É inteiramente razoável imaginar um mundo sem desemprego. Mantê-lo é uma decisão política que, no momento, está sendo tomada de acordo com o mantra da ‘eficiência’ no lucro centralizado.
O projeto neoliberal global, em marcha desde o início dos anos 1980, após a chamada “revolução do livre mercado” lançada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, nos EUA e no Reino Unido, provou ser um desastre absoluto em todas as frentes. Por que uma mudança em direção à relocalização econômica, um movimento que você iniciou em várias partes do mundo, representa uma alternativa estratégica superior à ordem socioeconômica existente? E como vamos fazer essa transição?
O processo de globalização, com todos os seus efeitos desastrosos, é uma consequência do uso sistemático de impostos, subsídios e regulamentações pelos governos para apoiar monopólios globais em detrimento de empresas e bancos locais e regionais. Esse processo vem acontecendo em nome do apoio ao crescimento por meio do livre comércio, mas na verdade empobreceu a maioria, que teve que trabalhar cada vez mais para não retroceder. Até mesmo os Estados-Nações ficaram mais pobres, em relação aos trilhões de dólares que circulam nas mãos de instituições financeiras globais e outras corporações transnacionais. Isso corrompeu sistematicamente praticamente todas as vias de conhecimento, das escolas às universidades, da ciência à mídia.
Como consequência, em vez de questionar o papel do sistema econômico na causa de nossas múltiplas crises, as pessoas se culpam por não administrar bem suas vidas, por não serem eficientes, por não passarem tempo suficiente com familiares e amigos, etc. Além de nos sentirmos culpados, muitas vezes acabamos nos sentindo isolados porque a natureza cada vez mais fugaz e superficial de nossos encontros sociais com os outros alimenta uma cultura de ostentação em que o amor e a afirmação são buscados por meios superficiais como cirurgias plásticas, roupas de grife e curtidas no Facebook. Esses são substitutos ruins para uma conexão genuína e apenas aumentam os sentimentos de depressão, solidão e ansiedade.
Vejo a mudança em direção à relocalização econômica como uma poderosa alternativa estratégica à globalização neoliberal por várias razões. Para começar, as cadeias de suprimentos cada vez mais planetárias e a terceirização endêmica da globalização corporativa estão sistematicamente tornando as regiões menos seguras do ponto de vista material (algo que se tornou evidente durante a crise da covid) e permitindo que os custos de exploração ecológica e trabalhista mudem, enquanto as possibilidades de maior transparência e responsabilidade são eliminadas. Um estudo recente mostrou que um quinto das emissões globais de carbono vem das cadeias logísticas de corporações multinacionais. ReLocalizar significa sair das bolhas altamente instáveis e exploradoras de especulação e dívida e voltar para a economia real, que é nossa relação com as outras pessoas e o mundo natural. Os mercados locais exigem uma diversidade de produtos e, portanto, criam incentivos para uma produção mais diversificada e ecológica. No campo da alimentação, isso significa uma produção mais variada com muito menos maquinário e produtos químicos, mais trabalhadores na terra e, portanto, empregos mais significativos. Significa emissões de CO2 drasticamente reduzidas, sem necessidade de embalagens plásticas, mais espaço para a biodiversidade, mais circulação de riqueza nas comunidades locais, mais conversas entre produtores e consumidores e mais culturas florescentes e fundadas na interdependência.
Isso é o que chamo de efeito “multiplicador de soluções” da relocalização, e o padrão se estende além de nossos sistemas alimentares. No sistema desconectado e superespecializado da monocultura global, tenho visto conjuntos habitacionais construídos com aço, plástico e concreto importados, enquanto as árvores locais são cortadas e transformados em toras de madeira. Em contraste, o encurtamento das distâncias significa estruturalmente mais gente por hectare e uso mais inovador dos recursos disponíveis.
É inteiramente razoável imaginar um mundo sem desemprego. Assim como acontece com cada preço na prateleira de um supermercado, o desemprego é uma decisão política que, no momento, está sendo tomada de acordo com o mantra da “eficiência” no lucro centralizado. Como tanto a esquerda quanto a direita política aderiram ao dogma de “quanto maior, melhor”, os cidadãos ficaram sem alternativa real.
Quando fortalecemos a economia em escala humana, a própria tomada de decisões se transforma. Não apenas criamos sistemas pequenos o suficiente para serem influenciados, mas também nos inserimos em uma teia de relacionamentos que informa nossas ações e perspectivas em um nível profundo. A maior visibilidade de nossos impactos na comunidade e nos ecossistemas locais nos leva à consciência experiencial, permitindo que nos tornemos mais capacitados para fazer mudanças e mais humildes pela complexidade da vida ao nosso redor.
Qual é a diferença entre relocalização econômica e “desvinculação” (uma abordagem de desenvolvimento alternativa associada ao trabalho do sociólogo marxista Samir Amin)? Além disso, a relocalização faz parte do programa estratégico de decrescimento que surgiu na era do aquecimento global?
A desvinculação foi concebida dentro da estrutura do industrialismo e não envolve uma compreensão dos limites ecológicos. A relocalização, como a formulei ao longo dos anos, exige uma desvinculação mais radical não apenas das relações onerosas e opressivas de dependência econômica e política, mas também das visões de mundo da modernidade baseadas na industrialização e no chamado progresso e desenvolvimento.
Quanto à relação entre relocalização e decrescimento, há muita sobreposição. De modo geral, ambos rejeitam o crescimento intrínseco ao capitalismo. No entanto, do meu ponto de vista, muitos defensores do decrescimento não se concentram o suficiente no papel das corporações globais e nos tratados de livre comércio, nem enfatizam o suficiente a necessidade de uma mudança sistêmica na direção da relocalização ou descentralização. Acredito novamente que, assim como os que pensam a desvinculação, isso vem da ignorância de muitos dos efeitos ecológicos e espirituais do progresso industrial.
A relocalização às vezes é percebida como de direita, nacionalista ou mesmo xenófoba. Quero enfatizar que estamos falando de relocalização ou descentralização econômica, não de algum tipo de recuo da arena nacional. Pelo contrário, incentivamos o intercâmbio cultural e a colaboração internacional para lidar com nossas crises sociais e ambientais globais.
Há um movimento crescente, diversificado e criativo emergindo em todo o mundo de pessoas que se reúnem em comunidade para construir suas próprias economias a partir do contexto que possuem. De certa forma, não apenas outro mundo é possível, ele já está aqui neste movimento de relocalização global. Além do decrescimento, outros movimentos intimamente ligados e sobrepostos incluem: novas economias, economias solidárias e economias cooperativas; soberania alimentar; simplicidade e economia de suficiência; e assim por diante.
Esse florescimento de movimentos e iniciativas de todo o mundo, além de ser fonte de grande inspiração, refuta por sua própria existência os preceitos da economia neoclássica e do capitalismo, e aponta o nosso caminho de volta, para longe do abismo.
O pêndulo político mudou drasticamente nas últimas duas décadas em favor de algumas forças muito reacionárias. O que explica o retorno da face perigosa do autoritarismo político no século XXI, e como o avanço da relocalização pode ajudar a desafiar o autoritarismo?
Como resultado da globalização, a concorrência aumentou drasticamente, a segurança no emprego tornou-se uma coisa do passado e a maioria das pessoas tem cada vez mais dificuldade em auferir um salário digno. Ao mesmo tempo, nossa identidade está ameaçada à medida que a diversidade cultural é substituída por uma monocultura de consumo em todo o mundo. Sob essas condições, não é de surpreender que as pessoas se tornem cada vez mais inseguras. Como os anunciantes sabem há quase um século de experiência, a insegurança deixa as pessoas mais fáceis de explorar. Mas as pessoas hoje são alvo de mais do que apenas campanhas de marketing para desodorantes e esmaltes: a insegurança as deixa altamente vulneráveis à propaganda que as encoraja a culpar o “outro” cultural por sua situação. A ascensão do autoritarismo é apenas um dos muitos impactos inter-relacionados da globalização econômica. Porque a economia global de hoje aumenta a insegurança econômica, fratura comunidades e mina a identidade individual e cultural, e isso está criando condições propícias para a ascensão de líderes autoritários.
Cada vez mais distantes das instituições que tomam decisões que afetam suas vidas e inseguras sobre seus meios de subsistência, muitas pessoas ficaram frustradas, irritadas e desiludidas com o atual sistema político. Embora a maioria dos sistemas democráticos em todo o mundo tenha sido destituída de poder pelo governo de facto de bancos e corporações desregulamentadas, a maioria das pessoas culpa os líderes políticos nas eleições. Por não verem o quadro geral, um número crescente de pessoas apoia a economia do laissez faire, querendo que o governo saia do caminho, para permitir que novos líderes autoritários cresçam a economia para eles, para tornar seu país “grande novamente”.
A relocalização oferece um giro de 180 graus na política econômica, de modo que os negócios e as finanças se tornem baseados no local e sejam responsáveis pelos processos democráticos. Isso significa regulamentação de corporações e bancos globais, bem como uma mudança nos impostos e subsídios, para que não favoreçam mais o grande e o global, mas sim os setores menores. A reconstrução de economias mais fortes, diversificadas e autossuficientes em nível nacional, regional e local é essencial para restaurar a democracia e uma economia real baseada no uso sustentável dos recursos naturais: uma economia que atenda às necessidades humanas essenciais, que diminui a desigualdade e promove a harmonia social.
A maneira de realizar essa mudança não é simplesmente votar em um novo candidato dentro da mesma estrutura política comprometida. Em vez disso, precisamos construir movimentos populares diversos e unidos para criar uma força política que possa trazer uma relocalização sistêmica. Significa aumentar a conscientização sobre a forma como a globalização zombou da democracia e deixar claro que os negócios precisam ser baseados no local para serem responsáveis e sujeitos ao processo democrático.
Devemos reconhecer que a questão é complexa: apesar de seu papel acima mencionado na promoção da globalização, o Estado-Nação também continua sendo a entidade política mais adequada para colocar limites aos negócios globais. Mas ao mesmo tempo são necessárias estruturas econômicas mais descentralizadas, principalmente quando se trata de atender às necessidades básicas. Essas economias baseadas no local exigem um guarda-chuva de proteção ambiental e social fortalecido pela regulamentação nacional e, principalmente, internacional, mas determinado por meio do engajamento político local.
A relocalização é um multiplicador de soluções. Pode restaurar a democracia reduzindo a influência dos negócios e finanças globais na política e responsabilizando os representantes perante os eleitores e as pessoas em geral – não as corporações. Ela pode reverter a concentração de riqueza, fomentando a criação de pequenos negócios e mantendo o dinheiro circulando localmente, regionalmente e até nacionalmente. Ele pode minimizar a poluição e o desperdício, atendendo às necessidades humanas reais, em vez de desejos fabricados por uma cultura de consumo liderada pelas empresas, e encurtando as distâncias entre produtores e consumidores.
Ao priorizar a produção diversificada para as necessidades locais sobre a produção especializada para exportação, a localização redistribui o poder econômico e político dos monopólios globais para milhões de agricultores, produtores e empresas. Assim, descentraliza o poder político e o enraíza na comunidade, dando às pessoas mais agência sobre as mudanças que desejam ver em suas próprias vidas.
O crescimento exponencial nas iniciativas de relocalização – desde esforços baseados em alimentos, como hortas comunitárias, mercados de agricultores, esquemas de agricultura apoiados pela comunidade e agricultura urbana, até alianças de negócios locais, esquemas descentralizados de energia renovável, bibliotecas de empréstimo de ferramentas e projetos de educação baseados na comunidade – atesta ao fato de que cava vez mais pessoas estão chegando, de uma forma amplamente sensata, à relocalização como uma solução sistêmica para os problemas que enfrentam.
(Eu abordei essa questão em detalhes em meu artigo, “Localization: a Strategic Alternative to Global Authoritarianism.”)
A pandemia do COVID-19, obviamente resultado direto da globalização econômica, continua nos assombrando com sua presença e ninguém sabe dizer com certeza quando o mundo voltará à normalidade. Em sua opinião, voltar ao “normal” é possível? E, se não, como será um normal pós-pandemia?
Acho que a primeira questão é se voltar ao antigo normal é desejável e depois se é possível. O chamado normal pré-covid-19 era a cultura de consumo global em rápida expansão, volumes crescentes de resíduos, colapso ecológico global, incluindo extinção de espécies e desigualdade crescente, entre tantas outras crises. A pandemia, infelizmente, exacerbou essas tendências, mas é óbvio para mim que a “normalidade” pré-pandêmica já era um desastre, portanto, nada a que devemos desejar retornar. De fato, como tem sido apontado por muitos observadores, a cisão radical nas tendências da globalização, especialmente visível durante a fase inicial de lockdown em todo o mundo, ilustrou como o sistema pode mudar rapidamente, e quão espúrias foram as narrativas da inevitabilidade da globalização o tempo todo.
Também expôs – e continua a fazê-lo de muitas maneiras – a perigosa fragilidade e dependência das cadeias de suprimentos globalizadas que cada vez mais se tornaram dominantes à medida que mais e mais lugares foram integrados durante as últimas décadas de globalização obsessiva. Para onde quer que se olhe, as comunidades ainda relativamente mais localizadas – muitas vezes rurais, que o desenvolvimento convencional há muito criticava e defendia a sua integração a ele – foram as que se mostraram mais resilientes e seguras diante da crise, até o ponto de provocar a migração reversa das cidades de volta às aldeias e ao campo em muitos lugares. Da mesma forma, por mais terríveis que sejam as circunstâncias que a provocam, a resposta à pandemia por movimentos de base em todo o mundo tem sido verdadeiramente inspiradora, mostrando a verdade do antigo slogan ativista de que “outros mundos são possíveis”.
Quanto à possibilidade de voltar ao velho normal destrutivo: apesar das quedas nas emissões globais e poluição durante os primeiros meses da pandemia e o belo florescimento da ajuda mútua e outras iniciativas de solidariedade local, a dramática recuperação da poluição de todos os tipos, superando os níveis pré-pandemia, juntamente com o agravamento obsceno da desigualdade, concentração de poder por corporações transnacionais e a devastação de pequenos negócios locais mostra que, infelizmente sim, é muito possível voltar ao velho normal destrutivo. Isso mostra que não podemos esperar que alguma força externa “imponha” a relocalização e controle a globalização corporativa, como muitas vezes foi pensado em crises do petróleo ou em outros momentos de colapso de recursos. Não há atalhos em torno da necessidade de lutar politicamente contra o sistema dominante e criar alternativas locais, para criar um normal pós-pandemia que não seja uma economia política pré-pandêmica turbinada. O imperativo de relocalização econômica demonstrado pela pandemia não deve ser esquecido após a praga ter passado, como se apenas em emergências fizesse sentido fortalecer nossa resiliência local e vínculos de produção e consumo localizados. Por causa dos benefícios multiplicadores de soluções da relocalização que mencionei, acredito que esse é o normal pós-pandemia que devemos aspirar.