Nossas economias estão delineadas para crescer, não para ser regenerativas e distributivas. Entrevista com Andrew Fanning.
Monica di Donato entrevista Andrew Fanning, Ctxt, 29-09-2020.
Considerando o contexto de crise ecossocial e civilizatória, que é o pano de fundo de nossa época, o que devemos entender por boa vida ou qualidade de vida?
Inúmeros estudos demonstram que, realmente, existem poucas coisas que são importantes para a maioria das pessoas. Valorizamos nossa saúde, passar o tempo com a família, amigos e a natureza, cuidar de nossos entes queridos, ter um trabalho útil e alguma renda estável e suficiente. Para mim, uma boa vida é aquela em que as pessoas possam satisfazer suas próprias aspirações, respeitando tanto os direitos e as aspirações dos outros como a biosfera.
No entanto, se o objetivo da humanidade é alcançar esta visão de uma boa vida, atualmente, estamos muito longe disso. Em nível mundial, bilhões de pessoas ainda não podem satisfazer suas necessidades mais essenciais e, ao mesmo tempo, coletivamente estamos ultrapassando ao menos quatro limites planetários. Não há dúvida de que o impacto crescente da crise do século XXI – a crise climática, a pandemia e a crise econômica – está estressando de modo severo e recorrente todas as sociedades do mundo.
Dado que todos nós buscamos ser capazes de gerir e sair destas crises interconectadas, existe uma oportunidade única de se colocar à frente das transformações necessárias para criar um mundo que seja muito mais justo socialmente e ecologicamente seguro. Temos a oportunidade de construir resiliência e melhorar a capacidade de nossas sociedades para proporcionar uma boa vida que possa persistir por gerações, não só localmente, mas também em um contexto muito mais global. No entanto, para ter êxito, acredito que temos uma necessidade crucial de compreender e, em última instância, enfrentar os poderosos interesses enraizados em um status quo insustentável, altamente desigual e extrativo.
Na literatura especializada, é possível rastrear muitas tentativas de conceitualizar, definir, e delimitar de modo qualitativo ou quantitativo o conceito de qualidade de vida, vida boa, prosperidade, etc. Considera possível estabelecer uma “linguagem ou marco comum” entre todos ou alguns destes conceitos? E, neste sentido, quais são, no seu ponto de vista, os indicadores que poderiam constituir uma aproximação multidimensional solvente e robusta?
Existem diferenças fundamentais nas filosofias subjacentes que dão forma às diferentes medidas de bem-estar, algumas das quais remontam a milênios. Uma determinada sociedade está indo bem proporcionando o maior bem ao maior número de pessoas? Ou nos sentimos realmente melhor apenas quando melhora a situação dos mais pobres? Ou talvez o bem-estar esteja impulsionado pela autonomia para escolher entre diferentes opções, em vez da escolha em si?
Todas estas são boas perguntas, e eu diria que cada vez mais é aceita a ideia de que a pluralidade de enfoques sobre o bem-estar é o melhor caminho a seguir. Neste momento, acredito que o conceito de “economias de bem-estar” está surgindo como uma linguagem comum estimulante ao redor da qual os pesquisadores, as empresas, a sociedade civil e os governos estão se mobilizando: a “Wellbeing Economy Alliance” é um bom exemplo deste enfoque inclusivo e plural.
Em relação aos indicadores, existe um consenso muito amplo sobre as diferentes dimensões que são importantes para o bem-estar, tais como a alimentação, o saneamento, a saúde, a igualdade de gênero e a participação política, entre outras. Para mim, é preciso levar em conta que as listas de dimensões sociais propostas pelos diferentes pesquisadores e organizações não costumam ser muito longas.
Por exemplo, minha colega Kate Raworth identifica 12 dimensões que formam o solo social de seu Donut de Limites Sociais e Planetários (que por sua vez derivam dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU). Dentro de cada uma destas grandes dimensões, o número de indicadores pode ser maior ou menor, dependendo se o propósito é gerar uma fotografia ilustrativa do funcionamento social ou uma avaliação integral.
Precisamente, seus últimos trabalhos publicados em ‘Nature Sustainability’ e no ‘Journal of Cleaner Production’, com Daniel O’Neill e colegas, vão na direção descrita na pergunta anterior. Poderia comentar quais são os elementos ou as evidências que estes estudos demonstram? Em outros termos, como podemos ter uma boa vida dentro dos limites de nosso planeta, considerando uma população em rápido crescimento?
Destacarei dois resultados destes estudos empíricos que considero, de fato, chamativos. Primeiro, no estudo em Nature Sustainability, com Daniel O’Neill, William Lamb e Julia Steinberger, intitulado “A Good Life For All Within Planetary Boundaries”, constatamos que atualmente nenhum país satisfaz as necessidades básicas de seus cidadãos com um nível de uso de recursos globalmente sustentável.
Embora nações ricas como o Reino Unido e Espanha satisfaçam a maioria das necessidades básicas de seus cidadãos, fazem isto com um nível de uso de recursos que está longe de ser sustentável. Ao contrário, os países que utilizam recursos em um nível sustentável, como Uganda e Sri Lanka, não satisfazem as necessidades básicas de seus povos. De maneira preocupante, vemos que quanto mais objetivos sociais um país alcança, mais limites biofísicos tende a ultrapassar.
Em segundo lugar, quando em um dado momento países são comparados, o funcionamento social e o uso de recursos parecem estar vinculados a baixos níveis, mas só até certo “ponto de inflexão”, a partir do qual um maior consumo não contribui quase nada para o bem-estar. No estudo publicado em Nature Sustainability, sugerimos que os países ricos que ultrapassaram este ponto de inflexão poderiam reduzir o uso de recursos consideravelmente com pouco efeito sobre o bem-estar, liberando assim espaço ecológico para que os países mais pobres aumentem seu consumo para satisfazer as necessidades básicas.
Pesquisamos estas hipóteses examinando essas relações através de séries temporais no estudo “Wellbeing-Consumption Paradox” (publicado em Journal of Cleaner Production). Se a expectativa de vida é utilizada para medir o bem-estar, nossos resultados respaldam estas hipóteses porque as pessoas vivem mais tempo independentemente de se o consumo diminui ou aumenta. No entanto, se a felicidade é utilizada para medir o bem-estar, nossos resultados não respaldam estas hipóteses, já que uma diminuição no consumo é associada a uma diminuição na felicidade.
Mas é muito importante levar em conta que estes resultados quantitativos se baseiam em relações históricas. Não nos dizem como conduzir nossas sociedades para um futuro sustentável e próspero. O que, sim, acredito que podem fazer é proporcionar informação para dar suporte às discussões públicas sobre o significado de uma “boa vida” e como esta poderia ser em um mundo que respeitasse os limites planetários. Com esta finalidade, liderei o desenvolvimento de um site interativo no qual qualquer pessoa com conexão à internet pode visualizar e explorar nossos resultados para mais de 150 países.
Em geral, eu diria que as estratégias para melhorar os sistemas de abastecimento físico e social, com ênfase na suficiência e equidade, têm o potencial de conduzir os países para a sustentabilidade, mas o desafio é enorme. É claro, seria ainda mais difícil com populações em rápido crescimento, mas felizmente há décadas as taxas de crescimento da população estão diminuindo, sendo assim, há poucos lugares que atualmente precisam enfrentar esse problema (e praticamente todos eles têm níveis muito baixos de uso de recursos per capita).
Estou muito mais preocupado com os crescentes níveis de consumo per capita, especialmente nos países ricos, que tendem a ser vistos como “modelos a seguir”, apesar de não ser possível estender de maneira sustentável seus níveis de uso de recursos para todo o mundo.
Em um dos artigos citados, faz referência ao “Paradoxo de Easterlin”. Por que é importante reconsiderá-lo dentro destes tipos de análises, e quais evidências trazem os dados analisados nesse sentido?
Em 1974, Richard Easterlin observou o paradoxo de que a renda e o nível de satisfação com a vida percebido pelas pessoas estão correlacionados em um dado momento, mas a satisfação com a vida não aumenta na medida em que a renda aumenta com o tempo. Mesmo que o Produto Interno Bruto (PIB) mais que triplicou, desde os anos 1950, nas nações ricas como os Estados Unidos e o Reino Unido, uma pessoa média não é mais feliz.
A principal explicação que podemos encontrar para este paradoxo é que as pessoas comparam sua renda com a de outros ou com o seu próprio passado. A felicidade que se obtém com um aumento na renda pode se ver influenciada para baixo, caso outros obtenham maiores aumentos em sua renda, ou caso se obtenha um aumento menor que as expectativas que existiam, deixando, assim, o nível de felicidade nacional sem mudanças apesar de um aumento constante da renda.
O paradoxo de Easterlin sugere que o crescimento econômico não precisa ser tão desejável a partir de uma perspectiva social, já que em um mundo de crise climática também devemos considerar o vínculo entre o crescimento econômico e as pressões ambientais, como as emissões de gases do efeito estufa. Não há dúvida sobre a tendência de que o uso de recursos costuma aumentar com níveis crescentes de renda, mas verifiquei que existe muito pouca contribuição de caráter empírico sobre a relação entre o bem-estar e a redução a longo prazo nas emissões de carbono, que é necessária para se ter alguma oportunidade de alcançar os objetivos climáticos dos Acordos de Paris.
Além disso, embora já se tenha dado muita atenção à relação empírica entre a felicidade e o aumento da renda, existe uma surpreendente falta de pesquisa comparativa entre países sobre o papel da diminuição da renda no bem-estar. Sendo assim, nós nos perguntamos: como mudam as relações entre o bem-estar humano e o consumo intensivo em carbono, ao longo do tempo? E como diferem essas relações entre países com consumo crescente e não crescente? Ampliamos o alcance do trabalho de Easterlin analisando dois indicadores de bem-estar (satisfação com a vida e expectativa de vida) e dois indicadores de consumo (renda e pegada de carbono) para cerca de 120 países, durante o período de 2005-2015.
Constatamos que as pessoas em países com altos níveis de consumo tendem a ser mais felizes e sadias que as pessoas em países com baixos níveis de consumo para um determinado ano, mas não há evidências de que um aumento na renda ou na pegada de carbono melhorem qualquer um dos indicadores de bem-estar no tempo. No entanto, a satisfação com a vida tende a diminuir em países com renda ou pegada de carbono não crescentes, o que implica que a felicidade deve se tornar mais resiliente a diminuições no consumo em um cenário ambicioso de ação climática em nível mundial. A boa notícia é que constatamos que a expectativa de vida aumenta constantemente em todos os países, independentemente se os ingressos ou a pegada de carbono estão crescendo ou não. Dito isto, nossa análise não leva em conta os efeitos da pandemia de coronavírus, que pode ter mudado este resultado para pior de um modo trágico.
Como anotação final e reunindo as reflexões anteriores, então, poderíamos afirmar que nossas economias não seriam “Economias Donut”, seguindo as definições de Kate Raworth? E, neste sentido, também como membro do ‘Doughnut Economics Action Lab’, quais são as ações que deveriam ser implementadas para transitar para cenários mais sustentáveis ambientalmente e mais justos socialmente? Os postulados decrescentistas podem trazer algo nesse sentido e, se sim, em que termos?
Para que mais de 7,5 bilhões de pessoas vivam bem dentro dos limites de nosso planeta, são necessárias mudanças radicais em nosso sistema econômico do século XX. No Doughnut Economics Action Lab, vemos a economia como um sistema dinâmico que está em constante evolução e, portanto, não há “leis” de oferta e demanda, ou rendimentos decrescentes ou outras que os economistas convencionais nos contam. Só há esboço.
No século XXI, este esboço teria que ser regenerativo, de modo que nosso uso de materiais e energia funcione dentro dos ciclos da biosfera e dentro dos limites planetários. Mas também deve ser distributivo, para que as dinâmicas de comportamento dos mercados não concentrem o valor e os rendimentos nas mãos do 1%, que é o que está acontecendo atualmente, mas que os distribua de maneira mais efetiva entre as pessoas.
Neste momento, nossas economias não estão delineadas para ser regenerativas e distributivas, estão delineadas para crescer, e isso precisa mudar. Sendo assim, concordo com os “decrescentistas” que os países ricos como os Estados Unidos e Espanha devem ir além da busca do crescimento econômico, que não serve mais para melhorar a vida das pessoas nesses países, mas que empurra cada vez mais a humanidade para perto de um desastre ambiental.
Andrew Fanning é economista ecológico. Lidera a área de Pesquisa e Análise de Dados do Doughnut Economics Action Lab (DEAL, na sigla em inglês) e pesquisador no Sustainability Research Institute (Instituto de Estudos sobre a Sustentabilidade) da Universidade de Leeds [Reino Unido]. Próximas da economia ecológica, suas pesquisas acentuam os vínculos entre o uso de recursos biofísicos e o comportamento social, e bebem dos recentes avanços na definição dos limites planetários, a partir de uma perspectiva nacional e subnacional. Neste sentido, analisa os sistemas de provisão que permitem um uso sustentável dos recursos que garantem uma vida boa e cumprem as condições de uma “economia de estado estacionário”. Artigo reproduzido de IHU-Unisinos. A tradução é do Cepat.