O programa e os valores do ecossocialismo são um instrumento político para a luta social concreta contra o capitalismo eco-destrutivo.
O Ecossocialismo parte de uma dupla negação: (i) não há ecologia sem transformação das estruturas sociais e das relações laborais, ou seja, sem substituição do capitalismo; (ii) não há socialismo sem uma economia fundada nos valores não-monetários de justiça social e de equilíbrio ecológico. Para compreender a primeira temos de analisar a natureza eco-destrutiva do capitalismo e perceber a incapacidade do capitalismo verde em resolver a crise climática. Para a segunda, precisamos de analisar as insuficiências do voluntarismo ecológico e os fracassos do socialismo do século XX. Só assim podemos construir uma visão diferente de socialismo que nos seja útil ao combate à crise climática.
A natureza eco-destrutiva do capitalismo
A crítica ao capitalismo do ponto de vista ecológico está presente em vários autores ecossocialistas, mas porventura a mais fundamental de todas é a de Joel Kovel, co-autor do manifesto ecossocialista, sobre a natureza eco-destrutiva do capitalismo. No livro de “The Enemy of Nature”, Kovel explica-nos que os ecossistemas não são mais do que sistemas em que a vida se organiza através do equilíbrio ecológico em oposição ao caos. Este caos, também chamado de entropia, é a tendência natural do universo para a desintegração e para a desordem. Assim, qualquer forma de vida se constrói através da organização em sistemas que pretendem atrasar a desintegração natural do universo, num processo dinâmico e de tensão constante. Os ecossistemas são esta forma complexa de organização de vida, onde a existência dos animais, das plantas, dos ciclos da água, do carbono, etc. se tornam interdependentes, num equilíbrio frágil que vai resistindo ao caos e atrasando a desintegração.
A natureza do capitalismo é, na sua essência, incompatível com esta forma de equilíbrio dinâmico dos ecossistemas. O capitalismo centra a atividade do ser humano e a sua relação com a natureza num sistema económico baseado na acumulação de capital, na propriedade e na mercantilização de bens e serviços. O valor de troca como forma única de mediação de relações afasta o ser humano da natureza. A prosperidade só se torna possível através do crescimento exponencial e da competição, bem patente na velha máxima capitalista de “uma empresa ou cresce ou desaparece”. O capitalismo vive da expansão, de ruturas constantes, da disrupção, de mudanças abruptas, de crises cíclicas. Quando esta forma de organização económica chega ao mundo físico ela impõe um desequilíbrio na relação do ser humano com a natureza que destrói ecossistemas e acelera a desintegração.
O Green New Deal e a falácia do capitalismo verde
Esta natureza eco-destrutiva do capitalismo está na origem da catástrofe climática que vivemos. O produtivismo, o extrativismo e a sede dos combustíveis fósseis foram a base do capitalismo moderno do pós-revolução industrial. Isto hoje é praticamente unânime. Mesmo para a maioria dos defensores do capitalismo é evidente que a festa está a chegar ao fim.
O capitalismo tem de se tornar verde para sobreviver. O capital tem de produzir energias renováveis, carros elétricos, apostar na digitalização e nas tecnologias limpas, inventar novos mercados de carbono, novos mercados de energia, novos instrumentos financeiros que sejam verdes. A crise climática é uma oportunidade e é preciso um plano para reinventar o capitalismo. Melhor ainda, é preciso que esse plano seja pago pelo povo e não pelos capitalistas. Esse plano já chegou aos países do norte global, chama-se Green New Deal… É aqui que o capitalismo verde começa a revelar a sua natureza eco-destrutiva, isto é, na forma como distorce os objetivos a que se propõe. Mesmo quando se apresenta como uma solução para a crise climática, o capitalismo não tem como objetivo o equilíbrio, a redução de emissões, a regulação das relações entre o ser humano e a natureza ou a estabilização de ecossistemas. Quer apenas reinventar-se, criar novas ruturas para sobreviver à crise que gerou, utilizando o mesmo mecanismo de sempre: o poder do estado.
Quanto ao conteúdo, a característica principal do capitalismo verde é reduzir a catástrofe climática a uma oportunidade para novos negócios tecnológicos e de comunicação. Ora, isto é uma falácia. Em primeiro lugar, dentro do capitalismo, o desenvolvimento tecnológico obedece apenas a critérios de lucro, aos interesses instalados do capital e não a regras de eficácia ou ao potencial tecnológico para resolver o problema. Um bom exemplo é o desenvolvimento tecnológico da energia solar, que foi atrasado mais de um século por simplesmente não interessar aos senhores do petróleo. A descoberta científica do efeito fotovoltaico ocorreu no século XIX, mas o primeiro painel solar só apareceu nos anos 50 do século XX, quando foi preciso numa missão espacial americana. Ou seja, apesar da produção de eletricidade a partir do sol ser uma opção racional, com potencial económico e cientificamente possível, ela foi ignorada durante um século, porque o capitalismo estava concentrado no lucro imediato do petróleo. Entregar ao mercado as escolhas sobre desenvolvimento tecnológico resultou em 100 anos de atraso na transição energética.
Em segundo lugar, mesmo que desta vez acerte na tecnologia, o capitalismo, ainda que verde, mantém a sua natureza eco-destrutiva. Um modelo de mercantilização, de aceleração, de expansão de uma economia verde - que mantenha padrões de produção e consumo - resultará necessariamente em fenómenos de disrupção, de roturas e em desequilíbrio dos ecossistemas. Ainda estamos no início da transição verde do capitalismo e os seus efeitos nefastos já se começam a notar. Por exemplo, a perspetiva de massificação do automóvel elétrico já criou roturas de stock de baterias e uma corrida desenfreada a materiais como o lítio, o níquel e o cobalto. Ao invés de repensar o papel do transporte público, o capitalismo verde recusa abdicar dos lucros que o mercado automóvel produz e o resultado é a mineração intensiva, a guerra pela matéria-prima e uma transição energética cada vez mais cara. No capitalismo, a expansão, a rotura, a crise, o desequilíbrio não é defeito, é feitio. É da sua natureza eco-destrutiva, tenha o capitalismo a cor que tiver.
Eco-individualismo e decrescimento: duas propostas insuficientes
Para além deste capitalismo verde, há outras propostas de sociedade que colocam o foco da luta ecológica, ora no indivíduo sem organização coletiva ora na organização económica sem uma agenda emancipatória. As primeiras reduzem o problema ecológico a comportamentos individuais e a modos de vida mais amigos do ambiente. Uma linha deste eco-individualismo vive nas margens do capitalismo verde e tem a sua expressão no consumo de bens e serviços ecológicos, como os alimentos bio, a promoção de comportamentos de reciclagem e compostagem, o eco-turismo, etc. Uma segunda linha eco-individualista é a rejeição do capitalismo através do isolamento e da auto-subsistência alimentar e energética em micro-comunidades paralelas que replicam artificialmente formas pré-capitalistas de existência. Aqui o isolamento é uma forma não dialogante de eco-resistência e o único projeto ecológico pós-capitalista é o indivíduo e a suas relações diretas. Tanto numa linha como noutra, o eco-individualismo pode desafiar o consumismo, ajudar a formar novos valores ecológicos, até resultar em experiências interessantes, mas não forma um projeto de sociedade. Não serve do ponto de vista político por ser ineficaz perante a emergência climática, por recusar confrontar o capitalismo e a sua natureza eco-destrutiva e por não ser viável perante a crise ecológica. Não serve do ponto de vista ecológico porque é antinatural, já que rejeita uma parte importante da natureza humana, isto é, a sua dimensão social, o seu impulso dialogante, comunitário e político.
Uma linha diferente de proposta ecológica fora do plano individual são as teorias do decrescimento. Como o próprio nome indica, estas teorias visam responder à crise ecológica através da limitação do crescimento económico ou do controlo do produto interno bruto (PIB) dos países. O decrescimento tem a vantagem de reconhecer uma parte da natureza eco-destrutiva do capitalismo, na sua componente produtivista e expansionista, identificando-a como causa da catástrofe climática. Podemos até concluir que, ao pretender limitar o desenvolvimento expansionista, as teorias do decrescimento são, no limite, anticapitalistas. Porém, para além do objetivo de decrescer, elas não nos dão informação sobre como organizar a sociedade para responder à crise climática. Há, de facto, setores em que é preciso decrescer (automóvel) e há até setores que devem ser praticamente abolidos (petróleo). Mas há outros que precisamos de manter e até fazer crescer, como o transporte público ou a proteção ambiental e, numa visão emancipatória da sociedade, a educação, os setores artísticos, os serviços de saúde, etc. Há ainda o caso dos países em desenvolvimento, em particular em África e na América do Sul, que são vítimas do capitalismo extrativista e do agronegócio e hoje dependem deles para subsistir. Para poderem suprir as necessidades da população num mundo pós-extrativista, estes países precisam de políticas que implicam crescimento. Assim, apesar da matriz anticapitalista implícita nas teorias do decrescimento, o seu foco meramente em métricas económicas torna-as insuficientes.
O socialismo sem ecologia não chega para o século XXI
Em muitas correntes socialistas, a ecologia, e em particular a crise climática, são tratadas como questões laterais, independentes da emancipação do trabalho. Dada a dimensão da catástrofe climática, uma visão de socialismo que não torne central o equilíbrio ecológico, não serve para o século XXI. Já não restam dúvidas que os efeitos do aquecimento global têm uma dimensão de classe, o que torna os trabalhadores e os mais pobres nos principais interessados em evitar a catástrofe climática. Sabemos que hoje, na melhor das hipóteses, dois mil milhões de trabalhadores dependem de ecossistemas frágeis, ameaçados pelas alterações climáticas. Sabemos que esta crise já criou milhões de refugiados climáticos, já tirou o acesso a água a populações inteiras em África e na Ásia e já destruiu milhões de hectares de terreno agrícola. As vítimas imediatas desta catástrofe são sobretudo os pobres sem acesso a cuidados de saúde e com fracas condições de habitação, são mulheres que caminham dezenas de quilómetros por semana para trazer água para as suas famílias, são pequenos agricultores sem capacidade de investimento em infraestruturas (por exemplo estufas) para manter as suas produções agrícolas. O aquecimento é global, mas o impacto é nos mesmos do costume.
Por outro lado, a história ensina-nos que o desastre ecológico do século XXI é também consequência do fracasso das duas formas de socialismo que vingaram no século XX. O estalinismo aplicou na União Soviética o produtivismo como forma de esconder as suas próprias contradições burocráticas e a sua incapacidade de derrotar o capitalismo à escala global, tornando-se ele próprio num socialismo eco-destrutivo. Por outro lado, a social democracia utilizou a expansão e o crescimento infinito como forma de conciliar o lucro capitalista com os direitos do trabalho e os serviços públicos. O desastre ecológico foi proporcional à incapacidade da social democracia perante os ímpetos do capital, acabando por integrar-se como corrente na ordem neoliberal. Os resultados para o planeta e para a emancipação do trabalho estão à vista. Repetir a experiência, agora na sua versão eco e sobre o lema de Green New Deal, soa a suicídio.
Ecossocialismo: um instrumento para a luta
O ecossocialismo parte da análise sobre a natureza eco-destrutiva do capitalismo e da sua incapacidade para resolver a crise climática, juntando-lhe uma crítica ecológica ao socialismo do século XX. Funda-se na certeza de que a catástrofe climática só se pode resolver com a racionalidade do planeamento democrático dos recursos do planeta e com uma economia fundada nos valores não-monetários de justiça social e equilíbrio ecológico. Apesar de o ecossocialismo ser um projeto político em construção, estes valores têm um respaldo concreto numa linha programática para a emancipação do trabalho, que passa pelo controlo democrático dos meios de produção com critérios ecológicos, pela redução da jornada de trabalho e pelo direito ao descanso, por uma política de ócio e de lazer assente em valores não consumistas, pelo reforço dos serviços públicos que garantam a racionalidade da utilização dos recursos do planeta no acesso ao bem-estar humano, por uma economia de cuidados e por uma proteção ativa dos ecossistemas.
O programa e os valores do ecossocialismo não pretendem ser uma base moral para orientar comportamentos individuais, mas sim um instrumento político para a luta social concreta contra o capitalismo eco-destrutivo. Apesar da emergência climática, esta luta só será ganha se o movimento ecossocialista for capaz de criar maiorias sociais que invertam uma relação de forças altamente desfavorável, derrotando o capitalismo ecocida e, ao mesmo tempo, impedindo a sua reconversão em capitalismo verde. É a partir desta luta que se constrói o ecossocialismo
Miguel Heleno é um pesquisador português trabalhando com sistemas de energia no Laboratório Nacional de Berkeley, Califórnia.