Editorial de Insurgência, tendência interna do PSOL. 12 de abril de 2024.
A esquerda e as forças populares no Brasil encontram-se diante de um grande desafio. No mínimo desde a eleição de Javier Milei na Argentina em novembro passado, há uma recuperação da capacidade de iniciativa do bolsonarismo, que não apenas tem resistido à pressão institucional, mas também recuperado a ofensiva nas ruas – como visto no ato de 25 de fevereiro em São Paulo e na preparação para o próximo dia 21 no Rio de Janeiro.
Ainda que tenham sofrido derrotas parciais, não é demais ressaltar que nesta semana 236 parlamentares foram, direta ou indiretamente, a favor da soltura do miliciano mandante do assassinato de Marielle Franco. Bolsonaro e o bolsonarismo estiveram em relativa defensiva depois da derrota da tentativa de golpe em janeiro do ano passado e da decretação da sua inelegibilidade, especialmente pelas derrotas institucionais no Supremo Tribunal Federal. Mas nas ruas e na sociedade é a extrema-direita quem vem ganhando posições e retomando sua capacidade ofensiva. O recente ataque de Elon Musk contra a soberania nacional, junto aos recorrentes ataques da diplomacia israelense contra Lula e o governo, reforçam o bloco bolsonarista e expressam a centralidade que o Brasil tem para a extrema-direita a nível mundial.
De outro lado, Lula, mesmo com a melhora nos indicadores econômicos, não tem conseguido traduzir seus acertos em um fortalecimento do governo. Ao contrário, tem perdido apoio em todas as pesquisas de popularidade. Na política de comunicação, não tem conseguido nem travar uma disputa ideológica, nem ampliar sua base de apoio. A estratégia de concessões ao mercado financeiro e colaboração com setores da direita tem cobrado o preço de uma frustração mesmo entre parcelas da classe trabalhadora e dos setores populares.
A recente divulgação dos cortes do governo na ordem de R$ 4 bilhões neste ano nas áreas da saúde e da educação, a manutenção até aqui do reajuste zero para os servidores públicos, são consequências da rendição à política do ajuste fiscal, numa flagrante contradição com os compromissos e o programa que previam o fim do teto dos gastos e que levou a vitória de Lula nas eleições de 2022. Enquanto isso, aumentam os investimentos em segurança pública e segue vigente o decreto de privatização dos presídios e espaços socioeducativos, que contribuem para o encarceramento e a ampliação das mortes do povo negro no Brasil. No Senado, a bola da vez é a tentativa de criminalização do porte de substâncias ilícitas em qualquer quantidade via PEC 45, violando direitos fundamentais e piorando as desigualdades sociais e econômicas no país.
Nos encontramos em um círculo vicioso em que a governabilidade a frio enfraquece o governo; a perda de apoio popular a Lula amplia a força social e política das classes dominantes dentro e fora do governo; enfraquecido, o governo faz novas concessões e novamente mina seu próprio apoio. Nessa dinâmica, o setor que mais se fortalece é a extrema-direita, que conta com forte implantação social, iniciativa política e poder de convocatória.
Nesse cenário, continua imperioso que todas as forças de esquerda defendam o governo Lula contra o bolsonarismo, defendam a democracia e a soberania nacional de todas as provocações e articulações da extrema-direita. Não há perigo maior para o país que um retorno do bolsonarismo ao poder. Mas não se faz – e não se vence – essa luta em silêncio, ignorando as iniciativas da extrema-direita, como tem feito o governo e o próprio presidente.
É preciso romper esse círculo vicioso em que nos encontramos diante dessa governabilidade conciliadora e refém do Centrão. É preciso recuperar a capacidade da esquerda incidir sobre a conjuntura e a relação de forças. E, se o governo Lula não dá sinais de uma reorientação estratégica rumo à mobilização popular, caberá às demais forças da esquerda a construção de iniciativas de enfrentamento contra o bolsonarismo.
O ano de 2024 será decisivo para a relação de forças a nível mundial, com a hipótese hoje provável de uma reeleição de Donald Trump nos EUA em novembro. Pode-se criar uma onda potencialmente avassaladora de fortalecimento da extrema-direita nos próximos meses, que poderá incidir também sobre a principal medição de forças contra o bolsonarismo em nosso país que serão as eleições municipais em outubro. A esquerda retomar a iniciativa nas ruas é, portanto, condição para que cheguemos ao embate eleitoral do segundo semestre em condições de vencer posições chave para o próximo período.
A frente única e seus caminhos
O desafio colocado diante da esquerda brasileira é como fazer isso. A luta por uma frente única da classe trabalhadora, isto é, por mobilizações amplas e unitárias para pressionar a conjuntura em nosso favor, segue sendo necessária, e ganha centralidade quando mesmo setores que estiveram em luta no último período mudam sua disposição para ir às ruas. Será portanto necessário um amplo esforço consciente das organizações políticas e movimentos sociais nesse sentido, convergindo iniciativas onde houver espaço para a mobilização popular.
As dificuldades de massificação não podem ser intransponíveis. A luta contra a extrema-direita está sendo travada em um terreno imediato, mas também é de médio e longo prazo. Assim, toda iniciativa que acumule forças e levante o moral da classe trabalhadora em toda sua diversidade contribuirá nessa tarefa. Devemos então nos apoiarmos nos setores em que há dinâmica de mobilização e batalhar pela unidade mais ampla possível entre as forças de esquerda para que haja vitórias.
Desse ponto de vista, construir e incentivar as lutas da educação pela recomposição orçamentária são um caminho a ser trilhado, ainda mais quando se levanta quase semanalmente a possibilidade de derrubada dos pisos constitucionais da educação e saúde. A greve das Instituições Federais de Ensino Superior, com início para a próxima segunda-feira, é um importante passo. O mesmo vale para a luta contra as privatizações em diversos estados do país. No mesmo sentido, a campanha Com milícia não tem jogo, exemplo de iniciativa unitária, deve ser fortalecida. Ainda, neste abril haverá o Acampamento Terra Livre, mobilização unitária dos povos indígenas, central para a defesa da vida e do meio-ambiente. Há lutas em curso. Nossa tarefa é fortalecê-las e acumular forças, com a firmeza e paciência que um embate de longo prazo contra a extrema-direita exige.
Construir o terreno para a batalha eleitoral
O bolsonarismo já afirmou diversas vezes que a disputa eleitoral de outubro será sua prioridade. Afirmam querer eleger 1500 prefeituras Brasil afora e não por acaso veem a batalha por São Paulo como a mais importante. Farão de tudo para derrotar a candidatura de Guilherme Boulos pelo PSOL, que tem condições de vencer na maior cidade do hemisfério sul. Será uma guerra total do ponto de vista político.
O bolsonarismo vem se preparando para as eleições combinando iniciativas institucionais com intensa mobilização de suas bases sociais – já, de partida, mais organizadas e enraizadas do que as da esquerda. Tem feito sua disputa ideológica em todos os terrenos: nas igrejas e templos, nos bairros, nas redes sociais, na imprensa, nas ruas. Conta com uma militância apaixonada por suas ideias ultra-reacionárias, decidida a conquistar vitórias para seu campo. Conta ainda com importante apoio internacional e a tendência de fortalecimento de Trump nos próximos meses. Caracterizarmos corretamente o inimigo é condição para que possamos vencer. E, hoje, estão melhor preparados que nosso campo para a medição de forças decisiva que haverá em outubro.
Desse ponto de vista, temos enquanto esquerda a tarefa de construir campanhas mobilizadoras em nosso campo. Organizar o ativismo e as bases eleitorais da esquerda para a batalha de outubro deve ser a prioridade nesse momento. Levantar o moral das forças populares deve entrar na ordem do dia, e isso só será possível com a manutenção de um perfil coerente com o programa que derrotou eleitoralmente Bolsonaro em 2022, com preparação política e ideológica, e com o fortalecimento das mobilizações em curso.
As tarefas de 2024
O primeiro passo para recuperar a iniciativa pela esquerda é romper com a passividade que tem prevalecido em nosso campo. A cobrança do governo pelas forças populares foi um pedido de Lula na campanha de 2022, e temos a responsabilidade de atender a essa demanda.
A ofensiva jurídico-institucional contra Bolsonaro não terá sucesso se a esquerda não impuser uma maioria nas ruas e na sociedade brasileira. Para voltarmos a ter maioria nas ruas e vencer a batalha eleitoral de outubro será preciso disputar e ganhar corações e mentes. E para isto é preciso falar ao coração dos interesses do povo.
A defesa da democracia e a luta contra a extrema-direita continuam na ordem do dia. Mas também é necessário colocar na mesa as reivindicações populares e pressionar o governo Lula a cumprir o programa de campanha. Lula precisa romper com a lógica neoliberal do arcabouço fiscal, pois atacar os pisos e gastos da educação e saúde é inaceitável. É preciso garantir reajustes aos servidores públicos. É preciso enfrentar o agronegócio e garantir assentamentos para a reforma agrária e os povos indígenas. É preciso um choque de investimentos sociais para contribuir com a geração de emprego e renda.
Para derrotar estrategicamente o neofascismo será preciso romper com os pilares da política neoliberal. Por isso, é um passo imperioso cobrar do governo que ele retome o programa e as propostas construídas na campanha eleitoral de 22. Para que isso seja possível, as mobilizações são o único caminho. Não se disputa a relação de forças sem enfrentamentos.