Com índices recordes de desmatamento, Apuí (AM) elegeu para prefeito o vice da gestão anterior, que carrega multas ambientais, assim como 25 outros prefeitos recém-eleitos na Amazônia Legal.
Sam Cowie, Repórter Brasil, 7 de janeiro de 2021
Ao tomar posse como novo prefeito de Apuí, no sul do Amazonas, Marcos Lise (PSC) anunciou em seu Instagram “um novo tempo, uma nova história sendo escrita”. Mas a eleição do pecuarista representa o que se repete em cidades pequenas amazônicas que enfrentam aumento do desmatamento: a manutenção no poder de grupos tradicionalmente ligados a crimes ambientais.
Eleito com 59% dos votos válidos (4.374 votos ao todo) e com o apoio do governador do Estado, Lise saiu às ruas para agradecer seus eleitores minutos após ter sido confirmado como o novo prefeito, em 15 de novembro. Naquela noite, celebrou tomando uma Heineken, enquanto as ruas foram tomadas por pessoas dançando tecno-brega, forró e funk, auxiliadas por engradados de cerveja Skol de graça – sem máscaras em meio à pandemia.
Lise, que era o vice-prefeito na legislatura anterior, já foi multado por desmatamento quatro vezes, somando R$ 156 mil. Dono de 630 cabeças de gado e de um sítio de R$ 1,6 milhão, segundo autodeclaração feita ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ele é um dos pelo menos 26 prefeitos eleitos em cidades da Amazônia Legal que já foram multados pelo Ibama por crimes ambientais, segundo levantamento da Repórter Brasil com base em reportagem da Agência Pública. Procurado por meio de seu advogado, Lise não se manifestou.
Durante a visita a Apuí, a Repórter Brasil conversou com quem acredita que essa continuidade é a melhor política para a cidade: “Pelo menos ele vai seguir com o trabalho… a qualidade das estradas está melhorando”, disse um comerciante. Mas também ouvimos moradores que, assim como muitos analistas em políticas ambientais na região, temem essa manutenção de poder, já que envolve um grupo político dominante há muitos anos num município com índices altíssimos de desmatamento, queimadas e grilagem.
Essa relação entre grilagem, desmatamento e políticos com crimes ambientais na região vem se acentuando nos últimos anos. O técnico agropecuário Adalberto Vicente, que concorreu a vereador pelo PT mas não foi eleito, conta como os grileiros se apropriam de terras na região: primeiro, eles compram o direito à posse de alguém e constroem uma casa ou qualquer outra estrutura simples. Depois, desmatam e vendem a propriedade. O agravante, segundo ele, vem do fato de que esse mercado de terras ilícitas tem a participação de políticos locais – incluindo alguns que concorreram às eleições.
Roubo de terras
Viajando ao longo das estradas secundárias acidentadas de Apuí, a escala da devastação citada por Vicente é clara. Árvores derrubadas, espalhadas por uma vasta extensão de terra, queimada em preto e cinza do fogo recente: marcas de desmatamento ilegal para expansão de pastagens de gado.
“Com a queda nas fiscalizações, muita gente que grilou terra antes agora está desmatando”, disse um morador que preferiu não se identificar. “A alta da carne incentivou também. Mas tem gente que simplesmente rouba terras aqui para vendê-las depois.”
“Você vai longe e, se tiver sorte, encontrará um terreno que ainda está devoluto [ou seja, uma terra pública sem destinação definida pelo governo]”, disse uma fonte, também sob anonimato, que mencionou grupos usando GPS para demarcar terras e abrir picadas em viagens de “pesquisa” que duram dias no mato. “Você encontra um território e abre uma estrada ao longo dele”. Diversas fontes confirmaram à reportagem que ônibus cheios de peões, às vezes de outros estados, costumam ser trazidos para limpar o terreno que, uma vez desmatado, costuma ser queimado duas ou três vezes, uma vez por ano, antes de virar pasto.
As cenas de apropriação ilegal de terras, seguidas de desmatamento para transformar a floresta em pasto, são comuns em Apuí, uma campeã do desmatamento e das queimadas no sul do estado do Amazonas. Esse tipo de ação ilegal ocorre especialmente nas estreitas estradas vicinais que serpenteiam por este enorme e isolado município localizado ao longo da rodovia Transamazônica. Apuí é o quinto município que mais desmatou em 2019, segundo relatório do MapBiomas, e foi o que mais teve focos de incêndio em 2019, segundo dados do Inpe (coletados até agosto).
Por trás desses recordes de queimadas e desmatamento está justamente o fato de Apuí estar cada vez mais se consolidando como alvo da expansão do agronegócio e, consequentemente, de destruição da floresta. Isso porque a cidade ainda tem terras baratas, o que atrai grileiros e especuladores – especialmente diante da alta de preços nos estados do entorno, impulsionada pela expansão da soja nessas regiões.
Em meio a esse cenário, Apuí vive um boom de imigração e caça por terras, com grandes propriedades rurais negociadas durante o almoço em churrascarias, relatos de grupos profissionais de grilagem e migrantes agrícolas recém-chegados tentando a sorte.
Um deles é Willias Cassol Hens, de 39 anos anos, que chegou há quatro meses vindo de Nova Mamoré, em Rondônia. “Rapaz, vendi um pequeno terreno lá e comprei um maior aqui”, disse. O que ele recebeu por dez alqueires de terra em Rondônia – R$ 100 mil – foi suficiente para comprar 88 alqueires em Apuí – área parcialmente desmatada e também sem título legítimo. Agora, diz ele, foi procurado por dois compradores, um com R$ 350 mil e outro mato-grossense com R$ 400 mil.
A terra que o Hens e sua família ocupam é o fim da linha, a 1 hora de carro do centro de Apuí por uma estrada de terra acidentada, difícil de navegar na intensa estação de chuvas. Ao longo do caminho, um pequeno trator rapidamente derruba árvores finas. A estrada leva o nome de Jaru, em homenagem a um município de Rondônia – o que é adequado, pois segundo Hens, a maioria das famílias que moram ao longo dessa estrada são do estado vizinho. “Ouvi dizer que mais 20 famílias estão chegando”, disse.
A migração é, aliás, um fator chave da história de Apuí. O município começou como um assentamento de reforma agrária fundado em 1981, durante a ditadura militar, para famílias sem-terra. No entanto, como aconteceu com muitos desses assentamentos da época, as condições adversas, a falta de infraestrutura e apoio fizeram com que muitos colonos vendessem suas propriedades a compradores com maior poder econômico, muitas vezes a preços abaixo do mercado. É um processo comum em toda a Amazônia brasileira, que os críticos dizem que concentra a propriedade da terra e impulsiona o desmatamento e a violência fundiária.
‘Tempestade perfeita’
Esse cenário de terra sem lei que prevalece em Apuí, a 500 km de Manaus, ajuda a formar a tempestade perfeita para transformar a cidade em um dos principais polos do “novo arco do desmatamento”. De acordo com um artigo recente publicado na revista Environmental Management por Gabriel Carrero e Philip Fearnside, “baixos níveis de titulação de terras e governança fraca são os principais fatores que impulsionam o desmatamento, enquanto grande parte da ocupação é especulativa.”
“O que vemos em Apuí é uma indústria de apropriação das terras públicas”, disse Carrero, pesquisador que liderou o estudo e que passou mais de uma década estudando as causas do desmatamento em Apuí. “Isso também gerou toda uma economia paralela de intermediários especializados na prestação de serviço, como demarcação ilícita de terras e fornecimento de documentos como o registo do CAR [Cadastro Ambiental Rural] para buscar compradores”, acrescentou. O pesquisador mencionou também que desde 2017 o Amazonas foi declarado livre de febre aftosa, permitindo-o exportar carne e gado vivo para outros estados e ampliando a demanda por terras e pastagem.
Essa indústria de roubo de terras citada pelo pesquisador é movimentada inclusive por grupos organizados especializados em grilagem, que funcionam como verdadeiras máfias em Apuí, conforme confirmado à Repórter Brasil por Eduardo Taveira, secretário estadual de Meio Ambiente do Amazonas. Ele confirmou a venda ilegal de terras e disse que há um inquérito policial civil para investigar as denúncias. “A maioria desses crimes é cometida por grupos especializados em grilagem de terras”, afirmou.
Para Ana Carolina Haliuc Bragança, chefe da força-tarefa do MPF na Amazônia, esses grupos de criminosos [ambientais] “costumam estar ligados às elites locais e são uma forma forte de coronelismo”, disse. “O uso de laranjas está intimamente ligado aos problemas de posse da terra”, seja para acumular terras ilicitamente ou para proteger o criminoso de processos.
Apuí impulsionando o desmatamento do AM
De julho de 2019 a agosto de 2020, o desmatamento geral da Amazônia foi maior em 12 anos, segundo o Inpe, empurrando a floresta cada vez mais perto de um “ponto de inflexão”, onde começará um processo lento, mas irreversível de se transformar em uma savana degradada, segundo Carlos Nobre, um dos cientistas climáticos mais respeitados do mundo.
O aumento do desmatamento também veio com a queda nas multas e missões de órgãos de fiscalização como o Ibama. Durante este período, o Amazonas ultrapassou Rondônia em termos de desmatamento pela primeira vez, ficando em terceiro lugar atrás do Pará e Mato Grosso, impulsionado principalmente por Apuí, Lábrea e outras fronteiras agrícolas em expansão ao longo da Transamazônica.
Além disso, somente em agosto – tradicional mês de queimadas na Amazônia – houve 8.030 queimadas ativas no Amazonas, segundo o Inpe, o maior nível desde 1998. O índice de Apuí foi o pior, com 2.640 focos até setembro. A região é considerada um dos dez “focos” do crime ambiental, segundo a Força Tarefa Amazônia do Ministério Público Federal, que em 2019 acumulou 60% do desmatamento amazônico.
Os projetos de infraestrutura, principalmente a repavimentação da rodovia BR-319, bem como a construção de frigoríficos, também estão impulsionando o boom, dizem observadores, pois facilitam o transporte de carne bovina, gerando mais desmatamento.
“Passa por fases aqui”, disse o pecuarista Milton Dal Bem, comentando sobre o atual boom fundiário e pecuário de Apuí. “A atividade mais segura é a terra… agora, o gado virou moeda.”
Com 257 hectares de terra, segundo documento do Incra, Milton cuida de 170 cabeças de gado, que não pertencem a ele, mas ganha um percentual. Nascido em Santa Catarina, como muitos aqui, viveu em diversas regiões de fronteira, incluindo Mato Grosso e Pará. Ele chegou a Apuí em 2004. Segundo Milton, os recém-chegados a Apuí foram divididos principalmente entre pequenos de Rondônia, como Hens, e grandes com poder econômico, do Pará, muitos de Novo Progresso. “Os caras do Novo Progresso estão chegando aqui com know-how e dinheiro”, disse ele, acrescentando que ouviu boatos de que a soja chegaria nos próximos quatro anos.
Novo Progresso foi onde ocorreu o “Dia do fogo”, em que fazendeiros, grileiros e madeireiros organizaram queimadas criminosas em áreas de reserva ao redor da BR-163 nos dias 10 e 11 de agosto de 2019. Até hoje, ninguém foi preso ou indiciado.
Fontes ouvidas pela Repórter Brasil também indicaram que Cleber Aparecido Bergo, fundador da rede de supermercados Duvalle que foi preso em 2014 junto com Ezequiel Castanha, apontado pelas autoridades como um dos maiores e mais famosos grileiros de terra do Brasil, também tem propriedade em Apuí. A reportagem tentou entrar em contato com Bergo por meio do advogado dele, mas não houve retorno. Também existem pequenos garimpos nas proximidades, o que se acredita que contribuirá para o financiamento de alguns crimes florestais na região.
Até agora, Apuí tem conseguido evitar o violento conflito de terras, mais comum em cidades do Pará ou do Mato Grosso. No entanto, há sinais de que essa violência está começando. O recente assassinato de três homens foi atribuído a traficantes de drogas que tentavam se estabelecer na comunidade. No entanto, moradores disseram à reportagem que, na verdade, o grupo estava tentando invadir terras. Além disso, teriam sido mortos em troca de um capitão da polícia receber lotes de terra.
“Se houver um conflito, primeiro haverá uma conversa, depois, como diz o Bolsonaro, vem pólvora”, comentou um deles.