Eleutério Prado, Economia e complexidade, 21 de dezembro de 2020
Como essas duas formas políticas, o fascismo e o stalinismo, podem ser compreendidas a partir da relação de capital – a relação social que subsumi o trabalho e, assim, o modo de trabalhar, por meio do assalariamento? Como essa relação estruturante da sociedade moderna é sustentada no fascismo e no stalinismo? Como o Estado garante a acumulação de capital em cada uma delas? Uma dessas formas, como se sabe, configura-se ainda no evolver do capitalismo e a outra aparece no “socialismo” burocrático – ambas, no entanto, mesmo se pareceram sólidas, revelaram-se ao fim reversíveis e transitórias. Para responder essa pergunta, que se tornou novamente central neste começo do século XXI, parte-se aqui da categoria de fetichismo apresentada em O capital.
Como já aconteceu outras vezes, o capitalismo enfrenta agora uma crise estrutural que coloca em dúvida a sua permanência na história. Diante dela, imensa como nunca fora antes, parece haver dois caminhos. A razão comunicativa recomenda aprofundar a democracia para resolver os impasses do desenvolvimento na sociedade contemporânea e, sobretudo, para contrariar o rumo do colapso societário. A sua negação extremista, entretanto, é que se tem apresentado e prosperado na cena política.
Diante dos esgarçamentos sociais produzidos pela atual crise estrutural, o fantasma de formas políticas totalitárias tem ressurgido no horizonte. E elas laboram para impedir a superação das ameaças à própria civilização humana. Não existe mais, portanto, a via de retorno à socialdemocracia. Logo, para as forças do desenvolvimento e da transformação só resta o caminho mais difícil do socialismo democrático. Por isso é que se afigura importante compreender melhor essas duas formas de totalitarismo, distinguindo o que tem de comum e o que tem de diferente.
Para alcançar o objetivo de compreender essas duas respostas às grandes crises do capitalismo no século XX, vale-se aqui também de textos de Slavoj Zizek, autor que também fez uso da categoria de fetiche para pensar o fascismo e o estalinismo. Aqui se considera os escritos Cinismo e objeto totalitário[1] e Como Marx inventou o sintoma?[2] Para chegar ao bom termo, é preciso começar pelo que Marx disse dessa enigmática caraterística da sociabilidade engendrada pela relação de capital.
Como se sabe, Marx distingue na última seção do primeiro capítulo de O capital dois tipos de relações sociais conforme os homens se apresentem como dependentes ou como independentes entre si no processo da produção e da reprodução das condições materiais da existência. O primeiro, em que essas relações são diretas, caracteriza os modos de produção pré-capitalistas; o segundo, em que as relações de produção são indiretas, aparece historicamente com o advento do capitalismo. No primeiro caso, a produção orienta-se pela produção de valores de uso enquanto tais; no segundo caso, a produção é produção de mercadorias, voltada precipuamente para gerar e realizar o valor como valor de troca nos mercados em geral. É neste último que surge o fetichismo: “todo o misticismo do mundo das mercadorias (…)” – diz ele – “desaparece, por isso, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção”.
Ora, é premissa dessa nota que, sem compreender as mistificações aderentes às formas sociais peculiares que os caracterizam, não se vai longe na compreensão tanto do fascismo quanto do stalinismo. Para tanto, é preciso tomar o fetichismo da mercadoria que Marx associou à forma mercadoria dos produtos do trabalho como um modelo cuja validade é mais geral.
Fetichismo
Mas, o que é o fetichismo das mercadorias? Ele não decorre, segundo Marx, nem do valor de uso da coisa nem do trabalho como produtor de valor; eis que provém propriamente da forma mercadoria: pois, na produção mercantil, “a relação social entre os próprios homens (…) assume a forma fantasmagórica de uma relação de coisas”, ou seja, da relação de mercadorias no interior do sistema complexo centrado na relação de capital. Logo, o fetichismo advém de uma confusão espontânea, inerente à prática social, entre a forma da relação social e o suporte dessa forma, ou seja, o valor de uso. Consiste, pois, em identificar uma ao outro, atribuindo, assim, a objetividade de valor ao próprio bem ou valor de uso enquanto tal.
Ora, se as mercadorias, incluindo entre elas o dinheiro, são formas por excelência do movimento insaciável da relação de capital, requerem sempre que as pessoas funcionem como personagens econômicos, como personificações das relações econômicas, como suportes dotados de cognição e vontade dessas relações coisificadas. Como se sabe, para Marx, na esfera econômica da sociedade moderna, as pessoas só existem como representantes de mercadorias, sejam das mercadorias comuns sejam do dinheiro. Mas isto ainda não é tudo.
Num nível mais profundo, o fetichismo decorre das determinações reflexivas inerentes ao mundo das mercadorias: aí, uma coisa vendável “tem” valor de troca porque entra em relação com outra em particular, que “tem” valor, isto é, que aparece ela própria como valor; a primeira, como explica Marx, está posta na forma relativa e a segunda, na forma equivalente. Tais formas sociais, portanto, tendem a se tornarem fixadas e, assim, a se confundirem com as coisas que as suportam. Note-se que, em verdade, essas coisas “não têm” valor enquanto tais, pois apenas o representem, diferenciadamente, por meio de seus corpos.
Ora, tais determinações reflexivas reificadas também aparecem na esfera da política, mas não, em princípio, da sociedade moderna. Eis que é o próprio Marx, quem dá o exemplo: “um homem é rei porque outros homens comportam-se como súditos frente a ele; eles pensam, ao contrário, que são súditos porque ele é rei”. Tem-se, portanto, uma relação social política que define uma dualidade reflexiva: rei <> súditos. Tais formas políticas, de modo semelhante ao que ocorre no fetichismo da mercadoria, tendem, por isso, a se confundirem com as pessoas particulares que lhes dão suporte, engendrando assim mistificações objetivamente válidas. Não agora por efeito de uma mediação coisal, mas por efeito de cristalização das posições na relação social.
Como o fetichismo requer a coisificação de relações sociais de pessoas, aqui se denominará esse misticismo que afeta as próprias pessoas, enquanto portadoras de relações políticas, de mitificação. Em tais dualidades reflexivas – veja-se em adição – há sempre uma posição central subordinante e posições descentradas que se encontram subordinadas – em geral, hierarquicamente –, tal como ocorre na relação rei <> súditos ou ainda na relação chefe <> asseclas.
Zizek, que descobriu de fato a analogia apontada no parágrafo antecedente, chama a fantasmagoria na esfera política também de fetichismo. Aqui, prefere-se usar outro termo para distinguir o misticismo aderido às pessoas na prática social. Pois, se na sociedade pré-capitalista, como diz Marx, não havia misticismo das relações econômicas, parece certo que ele habitava, sim, nas relações políticas. Como se sabe, a vida social nas sociedades que antecederam a sociedade moderna era – no dizer de Max Weber – encantadas; tornaram-se desencantadas apenas à medida em que foram superadas com o advento do capitalismo. Entretanto, na passagem de uma para outra, o encantamento se deslocou do mundo da vida – da esfera da política em especial – para a esfera econômica.[3] Nesse movimento, a esfera da política tendeu a abandonar as deificações – tais como a de rei, bispos e mestres – para passar a tomar os governantes como seres comuns, terrenos que podem ser substituídos pelo processo político.
Ora, é essa última tendência que precisa ser problematizada para entender o fascismo e o estalinismo. Para tanto, julga-se aqui, é preciso compreender de início o Estado e o seu papel no capitalismo. Como ensina Ruy Fausto, não se pode derivar o Estado diretamente da contradição das classes ou do próprio capital.[4] Diferentemente, é preciso entendê-lo como resultado da contradição entre a aparência do modo de produção capitalista, esfera da circulação mercantil em que as classes estão ausentes, e sua essência, esfera da produção das mercadorias e, assim, da reprodução do capital, em que as classes são postas como tais. O Estado é, pois, o guardião da nação, da identidade nacional e, assim, aquele que combate e oculta a luta de classes. Em consequência, a própria configuração da ordem política nos sistemas baseados na relação de capital encerra já a possibilidade de reificações do poder de Estado, as quais visam “suprimir” o caráter disruptivo das diferenças de classe com a finalidade de pôr uma identidade forte que nega mesmo as classes enquanto tais.
Eis que no advento dessas duas formas políticas, o fascismo e o estalinismo, surgidas no bojo de crises estruturais do modo de produção, a tendência acima mencionada de destronização dos ocupantes poder de Estado é de certo modo contrariada. Elas marcam renascimentos da sacralização do Estado e da deificação dos governantes. No primeiro caso, tem-se uma solidificação das classes no interior do próprio capitalismo, enquanto que, no segundo caso, têm-se uma “supressão” da sociedade de classes, mas não da própria relação de capital que engendra as classes. Assim, no primeiro caso, ocorre uma desdiferenciação das classes que tem por propósito obter uma coesão, uma anulação das contradições entre capitalistas e trabalhadores assalariados. Já no segundo caso, distintamente, ocorre uma diferenciação classista no interior de uma única classe subsistente, que, por isso mesmo, consiste em negar também, peremptoriamente, a luta de classes.
De qualquer modo, na sociedade em que os homens figuram como indivíduos independentes entre si, tais mitificações – assim como a formação de “aristocracias” governantes – não pode ocorrer sem que ocorra também diabolização de parte da sociedade. Se tais mitificações, num dos polos, vão além da mera personificação do poder do Estado para criar um “chefe mítico”, no outro não pode deixar de criar uma “classe” de renegados. Ora, se tais mitificações não podem deixar de ser operações sociais fajutas e cínicas, elas têm como contrapartidas apostasias perversas e fantasistas.
O fascismo caracteriza-se por criar institucionalmente uma sociedade que “abole” as classes, ou seja, que as transforma em funções de um todo orgânico que não pode deixar de ser falso. Enquanto movimento político reacionário, ele se põe a si mesmo como uma força, centrada num chefe mítico, que busca unificar uma nação na forma de um organismo social total. Ao mesmo tempo em que mitifica esse chefe, diaboliza e aniquila todas as forças sociais – judeus, comunistas, pacifistas etc. –, divergentes que buscam afirmar uma posição distinta na sociedade.
O stalinismo, por sua vez, deve ser compreendido como resultado de um processo revolucionário que suprimiu a classe capitalista, mas não a relação de capital enquanto tal. Configura-se, por isso, no dizer de Zizek, por meio “do paradoxo de uma sociedade sem classes com uma só classe”. Ele governa por meio de uma burocracia dominante que comanda a economia e quer unificar a sociedade, que não aparece como uma “nova classe”, mas se põe efetivamente no lugar de uma classe dominante. Nesse caso, como sabe, são diabolizados os próprios comunistas, à esquerda ou à direita, aqueles que divergem da linha principal representada e determinada pelo chefe do partido comunista.
Fascismo
Zizek compreende tanto o nazismo como o fascismo pelo visor de um esforço para suprimir a luta de classes. Nessa perspectiva, o antissemitismo aparece de início como um enigma.
No discurso nazista, o judeu aparece como objeto de um desejo perverso, de um gozo indefinível, abstrato e insaciável, pois, para ele, o judeu é um mal absoluto que precisa ser eliminado. E assim é porque “reifica” esse grupo particular de pessoas como representante vivo do antagonismo inerente à sociedade. Toma esse grupo como algo estranho que se insinua na sociedade e que perturba o seu equilíbrio e a sua harmonia. O antissemitismo não se posiciona em qualquer lado da luta de classes, que é inerente à estrutura social. Ao contrário, para ele, “o judeu é um intruso estrangeiro que causa o antagonismo social”.
Segundo Zizek, numa perspectiva mais ampla, o fascismo não combate apenas o judeu, ainda que este tenha sido o alvo principal do nazismo. Ele se bate geral contra o socialismo, o liberalismo e até mesmo contra o “espírito do capitalismo”, quando este entra em processo de desagregação. Abjura, por exemplo, as finanças e o rentismo. Os movimentos políticos que se posicionam de algum modo na luta de classe são responsabilizados pelo estado de deterioração do processo da vida social. A própria luta de classe aparece, então, para ele, não como uma inerência do modo de produção, mas como uma consequência de um suposto espírito subversivo que se infiltra na sociedade para minar as suas bases de existência.
As práticas políticas divergentes, as próprias frações sociais distintas, segundo esse autor, são enxergadas pelo fascismo como igualmente maléficas. Elas “destroem e corrompem supostamente a harmonia da sociedade tomada como um todo orgânico”. Desse modo, o fascismo “tenta restabelecer a relação harmoniosa entre as classes sociais no âmbito desse todo orgânico”. O fascismo combate os socialistas em geral, mas o nazismo visou especialmente o povo judeu. Este, então, passa a figurar como uma fonte de discórdia, como uma perturbação da cooperação harmoniosa possível entre a classe dirigente e as classe trabalhadora. Desse modo, Zizek mostra que tanto o nazismo quanto o fascismo criam personificações maléficas e diabólicas, que têm de ser completamente destruídas para que seja possível reestruturar a sociedade moderna na forma de um corpo, cabeças, pés, braços e mãos que se completam.
Tal corpo surge na cabeça fascista como uma espécie de reminiscência histórica que ele quer fazer novamente existir por meio de uma transformação reacionária da nação dividida numa nação totalizada. Assim, o partido fascista se define essencialmente como nacionalista e corporativo, um partido que quer assumir o poder total na sociedade para promover a unificação da sociedade. Segundo Zizek, esses extremismos buscam sempre pensar a sociedade moderna como uma sociedade pré-moderna, como se esta pudesse estar baseada em relações sociais “orgânicas”, ou seja, em relações diretas de dominação e servidão.
Ora, esse corpo social não pode deixar de ser imaginário. Por isso, o discurso reacionário do fascista apenas pode parasitar o discurso capitalista já que não pode substituí-lo de fato, assim como não pode substituir também o próprio modo de produção. Quer recriar a figura de “rei” ou do “senhor”, sem, no entanto, alterar o caráter do capitalismo enquanto tal. De fato, o partido fascista e o seu chefe não podem senão encarnar o poder do Estado que solidariza as contradições da relação de capital, atuando então, como sujeitos que se sobrepõe à concorrência dos capitais para lhes garantir tranquilidade e lucros. Essa mitificação é a contrapartida da diabolização, do ódio visceral, irracional, que mantêm contra todos aqueles que são identificados com forças opostas à totalização da sociedade.
É assim que Zizek caracteriza essa operação político e institucional do fascismo: “Preservando a relação fundamental do capitalismo, a relação entre o capital e o trabalho, ele pretende abolir seu caráter anorgânico, anônimo, selvagem etc., isto é, tornar a fazer dela uma relação orgânica de dominação patriarcal entre a “cabeça” e as “mãos”, entre o grande líder e seu séquito, substituir a “mão invisível” anônima do mercado pela vontade do Senhor.”
Ora, à medida em que não ultrapassa de fato o capitalismo, o fascismo não pode também ir além dele, suprimindo as suas contradições inerentes. Zizek apresenta essa impossibilidade de uma forma alegórica: “há sempre um excesso da “mão invisível” que contraria os desígnios do Senhor”. Na perspectiva desse Senhor, o fascista apreende as turbulências da lógica complexa da concorrência, assim como todas as adversidades e lutas que possam afetá-la, de um modo paranoico como produto de forças ocultas e subversivas, as quais personifica em alguma categoria social. A Alemanha nazista, essa figura foi essencialmente o judeu. No fascismo italiano e espanhol foram os socialistas em geral. Dito em outras palavras, tais extremismos de direita escolhem frações da sociedade as quais transformam em sujeitos imaginários, personificações, das desgraças produzidas pela própria relação de capital.
Stalinismo
O stalinismo difere do fascismo no modo como representa as personificações do poder de Estado na sociedade moderna – desse ponto parte Zizek. Para compreender o que ele diz é preciso notar que o fascismo ocorre no capitalismo, ou seja, numa sociedade que está fundada numa pluralidade de capitais particulares. O capital em geral, como se sabe, é uma relação social opositiva entre capitalistas donos de meios de produção e trabalhadores donos apenas da própria força de trabalho. Esses múltiplos capitais operam sem qualquer coordenação prévia, de modo descentralizado, por meio do processo concorrência recíproca. É preciso notar, ademais, que o fascismo vem a ser sempre uma forma política gestada como consequência de uma grave e prolongada crise capitalista.
Já o stalinismo, diz esse autor, ocorre numa sociedade de classes “sem” classes. Trata-se ainda de uma sociedade baseada num processo de acumulação de capital, o qual se tornou agora comandado de modo centralizado e planejado pelo Estado. Aí existe, sim, o trabalho assalariado, mas a classe capitalista foi suprimida pela revolução. Foi demitida do protagonismo na produção, repartição e distribuição de mercadorias com a eliminação da propriedade privada dos meios de produção. A posição que fora dela, entretanto, passa a ser preenchida pela burocracia stalinista. Esta se instala nas posições superiores engendradas pela institucionalização em geral da propriedade estatal e no aparato do Estado. De um ponto de vista formal, portanto, só existem trabalhadores nesse meio social. Aí, eles estão divididos entre os trabalhadores que pertencem ao Partido, supostamente comunistas – na verdade, burocratas do partido único que guarda para si o poder de forma total – e os trabalhadores comuns que formam a massa e que são, de fato, assalariados.
De modo distinto do anterior, o stalinismo é gestado num processo progressivo e bem-sucedido de acumulação acelerada de capital – não é, pois, o resultado de uma crise estrutural do capitalismo. Ora, isto é crucial: trata-se do resultado mediato de uma revolução que entronizou no poder do Estado uma classe antes subordinada; ele encara como a sua tarefa desenvolver ao máximo as forças produtivas e criar o “homem novo”. Como consequência, é o próprio partido stalinista e a sua burocracia que assume o privilégio de personificar o poder estatal, apresentando-se também como o suporte empreendedor da acumulação de capital. Há, pois, um processo de mitificação em que esse partido, assim como o seu chefe máximo passa a encarnar o progresso, o futuro radiante, apresentando-se como a vanguarda da classe operária.
Se a antiga classe dominante foi abolida pela revolução de 1917, como o sistema criado era ainda baseado na acumulação de capital, ficou um lugar vazio na estrutura de classes e este foi preenchido por uma casta operária aburguesada, uma burocracia dominante. O “socialismo real”, segundo Zizek, contém um paradoxo: a diferença – e a contradição – estruturante da sociedade é posta por meio de um modo estritamente político: “não se trata de uma diferença entre duas entidades ´positivas’, mas uma diferença entre uma classe ‘ausente’ e uma ‘classe presente’, entre uma classe que falta (dominante) e a classe existente (operária)”. Ora, isso só foi possível porque o lugar da classe dominante, que é inerente à estrutura do modo de produção capitalista, foi preenchido por uma fração da própria classe operária, a qual se investiu do poder soberano e ocupou o Estado.
Empregando a representação sintética de relação social qualitativa, a unidade contraditória das classes no capitalismo fica: “capitalista <> trabalhador”. Se a classe capitalista é abolida por um movimento revolucionário, mas não a classe operária assalariada, tem-se em princípio: “vazio <> trabalhador”. Logo, para que a nova sociabilidade possa funcionar, esse vazio tem de ser preenchido. É assim que uma fração da própria classe trabalhadora tem agora de personificar o capital; eis que o capital em geral encontra-se agora centralizado por meio do comando provido a partir do Estado. Mas essa fração não atua apenas como suporte do capital, mas precisa funcionar como um sujeito preposto do capital. E é por isso que essa fração, organizada então na forma do Partido, se torna uma aristocracia que, como tal, sustenta um “chefe”, um sujeito posto como mito. Empregando a mesma representação anteriormente usada, fica assim a unidade contraditória das classes no socialismo realmente inexistente: “burocratas <> trabalhadores”.
Eis o que Zizek diz para explicar melhor essa última relação política: “Essa classe faltante pode muito bem ser a própria classe operária [totalizada como tal], enquanto oposta aos trabalhadores ‘empíricos’ [que formam, por mera agregação, a massa operária]. Dessa maneira, a diferença de classes coincide com a diferença entre o universal (a classe operária totalizada) e o particular (a classe operária ‘empírica’). A burocracia dominante encarna então, frente à classe operária ‘empírica’, frente à massa operária, a sua própria universalidade.”
Tem-se, portanto, um paradoxo: a parte vem a ser o todo e o todo é reduzido à parte. Segundo o autor aqui compulsado é possível resolver esse paradoxo relacionando a aparência e essência da relação social de capital na Rússia pós-revolucionária. Ora, ele o apresenta assim: “a ligação privilegiada [dos membros do Partido] com as massas os separa das outras pessoas e, portanto, justamente da massa”. Para isso, é preciso levar em conta “a diferença apontada entre a classe (as massas trabalhadoras) como um ‘todo’ e a ‘massa’ como ‘não-toda’, como coleção empírica formada pela mera junção dos trabalhadores” que ficam fora do Partido. Assim, o partido stalinista, ou seja, o Partido, passa a figurar como o único representante – e representante por excelência – da classe operária, como a única encarnação da verdadeira classe trabalhadora como um todo. Foi assim que uma revolução de trabalhadores se tornou, primeiro, uma revolução traída e, depois, uma contrarrevolução.
Conclusão
Em resumo, o fascismo e o estalinismo são bem distintos, mas eles aparecem sobre um fundo de identidade totalitária. O que há de comum entre eles é a tentativa de totalizar da sociedade com base no poder absoluto ou quase absoluto do Estado. O primeiro ocorre ainda no capitalismo cuja sociabilidade se tece descentralizadamente, mas está em crise profunda; o segundo ocorre no “socialismo” que “aboliu” as classes, mas manteve a sociabilidade do capital. Este foi centralizado após a revolução com a finalidade de dinamizar a criação e expansão das forças produtivas. É desse modo que, na reconstrução da nação russa, o processo de acumulação se tornou “heroico”. De qualquer modo, os movimentos fascistas e stalinistas se apresentam igualmente como se fossem religiões de Estado.
A lição que essas duas desventuras históricas trazem – e cuja compreensão pode ser feita a partir de Marx – é que o lugar do poder não pode ser ocupado por uma força política totalizadora e que, pelo próprio exercício desse poder, se torna dominadora, criando assim absolutismos extemporâneos. A radicalização da democracia – e a instituição de comuns como princípio de sociedade – é, pois, incontornável se é que se deseja superar o capitalismo e, com ele, a sociedade dita moderna. Para terminar, o escrevente da presente nota não resiste à tentação de citar Vladimir Safatle, autor que chega à conclusão semelhante, mas por outro caminho: “a revolução, se não quiser ser um retorno ao mesmo lugar, é indissociável de uma mudança na estrutura do saber (…) e do poder”.[5] Em consequência, segundo ele, os lugares do saber e do poder devem permanecer vazios, não preenchidos por forças políticas que se julgam superior a todas as outras possíveis.
[1] Zizek, Slavoj – Eles não sabem o que fazem – O sublime objeto da ideologia. Zahar, 1992.
[2] Zizek, Slavoj (org.) – Um mapa da ideologia, Contraponto, 1994.
[3] Ver Teixeira, Francisco; Frederico, Celso – Marx, Weber e o marxismo weberiano. Cortez Editora, 2010.
[4] Fausto, Ruy – Sobre o Estado. Marx: Lógica e Política – tomo II. Brasiliense, 1987, p..200-206.
[5] Safatle, Vladimir – Maneiras de transformar mundos – Lacan, política e emancipação. Autêntica: 2020.