Patricia Fachin entrevista Eleutério Prado, IHU-Unisinos, 25 de junho de 2020
Grande parte da esquerda acha que não sabe mais como superar o capitalismo; para ela, não há mais um projeto de socialismo claro e viável. Desse modo de pensar decorre ou um conformismo ou um ultraesquerdismo, ambos inefetivos para produzir mudanças reais.
No emaranhado de incertezas que toma conta do país por causa dos efeitos gerados pela crise do novo coronavírus, um diagnóstico é unânime: “o curso da economia capitalista no Brasil neste ano, como também provavelmente no ano que vem, estará marcado pelas consequências da pandemia do novo coronavírus”, e a recuperação econômica será “lenta, difícil e fraca”, diz o economista Eleutério da Silva Prado à IHU On-Line. A crise política, especialmente no aspecto que envolve a família presidenciável, acrescenta uma “dose adicional de incerteza e instabilidade. E isto pode solapar ainda mais o andamento da atividade econômica no Brasil”, avalia. Eleutério publicou recentemente um artigo, no site Outras Palavras, em que sustenta que o Brasil ruma à estagnação completa.
A longo prazo, o economista defende uma mudança estrutural que consiste na substituição do atual modelo de produção capitalista. “O atual modo de produção precisa ser desafiado por um socialismo democrático que seja também um ecossocialismo”, que “vise preservar a civilização tendo por base o princípio do comum”.
Eleutério da Silva Prado é graduado e pós-graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP. Fez estágio pós-doutoral na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Atualmente é professor aposentado da USP.
IHU On-Line – Entre as questões conjunturais deste ano, quais estão causando e causarão ainda mais impacto na economia brasileira?
Eleutério da Silva Prado – Nunca se sabe direito o que pode acontecer no futuro mais distante. No curto prazo, as possibilidades de fazer previsão aumentam. Atualmente, sabe-se já que o curso da economia capitalista no Brasil neste ano, como também provavelmente no ano que vem, estará marcado pelas consequências da pandemia do novo coronavírus. Diante dos últimos fatos jurídicos e políticos recém levantados na imprensa e estritamente ligados ao presidente da República e sua família, pode-se prever também uma dose adicional de incerteza e instabilidade. E isto pode solapar ainda mais o andamento da atividade econômica no Brasil.
É de se prever também, ainda que com mais incerteza, uma recuperação lenta, difícil e fraca nos anos vindouros. Mesmo o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, não se poupa ao afirmar que o país pode entrar numa depressão.
IHU On-Line – O governo dá sinais de que vai retomar a política de ajuste fiscal no próximo ano. Quais as consequências desse caminho para enfrentar a crise?
Eleutério da Silva Prado – Não há dúvida que o atual governo pretende retomar as políticas de austeridade que têm por objetivo, em primeiro lugar, garantir o serviço da dívida pública em favor dos credores do Estado. Mas, numa perspectiva de médio e longo prazo, dado que o governo confia apenas no impulso de acumulação do setor privado, elas visam também criar condições para que sobrevenham novos investimentos espontâneos na esfera da produção de mercadorias e na esfera da infraestrutura. Pelo menos, é essa a perspectiva do governo.
Ora, trata-se de uma perspectiva que julgo errônea. A continuidade da política dos últimos anos será certamente desastrosa, pois ela vai acabar produzindo uma estagnação completa da economia capitalista no Brasil. Quando se olha para o desempenho dessa economia nas últimas quatro décadas, vê-se – ficando assim na perspectiva produtivista que lhe é própria – um retumbante fracasso do neoliberalismo e de suas políticas. E esse fracasso fica muito claro quando se apresenta o gráfico do crescimento do PIB per capita gerado pela economia capitalista no Brasil após a II Guerra Mundial.
Três períodos aparecem nesse gráfico: um de crescimento rápido entre 1945 e 1980, um de quase estagnação entre 1981 e 2014 e um de 2015 em diante que já se afigura como de estagnação completa.
No período pós-2014, o gráfico apresenta uma previsão que, como toda previsão, não será provavelmente realizada, pelo menos tal como está aí apresentada. Mas, pelo andar dos últimos seis anos, ela parece possível e até bem razoável grosso modo. Por certo, não se observará um desempenho brilhante da economia capitalista no Brasil nos próximos dez anos, tal como os neoliberais em geral gostariam de ver acontecer. E eles não podem mais, entretanto, pôr a culpa no estatismo e no desenvolvimentismo por esse resultado. Eles têm de colocar esse fracasso nos próprios ombros e carregá-lo doravante, sem muxoxo.
A continuidade da política dos últimos anos será desastrosa, pois ela vai acabar produzindo uma estagnação completa da economia capitalista no Brasil - Eleutério da Silva Prado
IHU On-Line – Que políticas alternativas existem a esta política no momento para enfrentar a crise econômica?
Eleutério da Silva Prado – Sempre há alternativas. Na perspectiva de que o modo de produção capitalista não pode ser desafiado nas próximas décadas, há toda uma política econômica voltada para o crescimento com alguma justiça social, a qual vem sendo defendida pelo novo-desenvolvimentismo, em particular pelo professor [Luiz Carlos] Bresser-Pereira. Ela tem sido pensada – creio – na perspectiva de um nacionalismo num país em que faltam cada vez mais nacionalistas.
E é assim mesmo se as forças políticas de direita se dizem patriotas e se vestem com a camisa da seleção de futebol para promover as suas teses, não sem a intenção de sabotar a democracia conquistada por meio da Constituição de 1988. O grande obstáculo que o novo-desenvolvimentismo enfrenta é uma profunda aversão de grande parte das classes dominantes no país em defender os interesses gerais do povo brasileiro.
O atual modo de produção precisa ser desafiado por um socialismo democrático que
seja também um ecossocialismo - Eleutério da Silva Prado
Penso, entretanto, para além do novo-desenvolvimentismo. O atual modo de produção precisa ser desafiado por um socialismo democrático que seja também um ecossocialismo. Claro, as resistências nesse caso podem ser ainda maiores. É que eu não vejo alternativa senão uma proposta mais radical de desenvolvimento humano e social. Acho mesmo que já assistimos à intervenção do “não há alternativa” neoliberal no “é preciso sair do capitalismo” como a nova urgência do tempo histórico.
IHU On-Line – Alguns economistas sugerem como alternativa a possibilidade de aumentar o endividamento público, seja para enfrentar a crise econômica, seja para garantir o Estado de bem-estar social. Há espaço para aumentar o endividamento público? Este é um caminho a ser seguido?
Eleutério da Silva Prado – No curto prazo não há possibilidade de evitar um certo crescimento do endividamento do Estado. Prevê-se já que ele vai chegar a 90% do PIB em 2021. Mas há, sim, uma alternativa imediata que consiste em redirecionar a dívida do governo: ao invés de o governo financiar os seus gastos com as urgências da pandemia do novo coronavírus por meio da venda de títulos no mercado, ele pode emitir dinheiro fiduciário vendendo títulos para o Banco Central. A dívida do governo aumenta, mas a dívida pública não – eis que o Banco Central é uma entidade pública, pelo menos formalmente.
a) reduz-se a demanda por empréstimos junto ao setor financeiro;
b) deixa os bancos muito líquidos quando eles não estão precisando dessa liquidez; e
c) como a demanda de dinheiro é endógena, ela eleva a base monetária em detrimento do dinheiro de crédito gerado pelos bancos.
No longo prazo, os gastos correntes para melhorar o bem-estar das famílias não devem ser financiados por aumento do endividamento do Estado, mas por meio de uma reforma drástica na repartição da renda e da riqueza, as quais são muito concentradas no Brasil. Mas essa demanda – é preciso ter claro – põe em questão a continuidade do próprio capitalismo. Ela contraria o individualismo burguês.
Os gastos correntes para melhorar o bem-estar das famílias não devem ser financiados por aumento do endividamento do Estado, mas por meio de uma reforma drástica na repartição da renda e da riqueza
Eleutério da Silva Prado – Não se pode ficar contra essa proposta dado o nível de miserabilidade de milhões de cidadãos brasileiros que deveriam ser mais bem respeitados pelo poder público. Mas é preciso ver que ela foi proposta inicialmente por economistas ultraliberais ou mesmo conservadores como Milton Friedman e Friedrich Hayek. Pois, na forma por eles recomendada, ela permite a eliminação de quase toda outra proteção social destinada aos trabalhadores. Nesse sentido, ela é consistente com a privatização de tudo. Não endosso essa ideologia.
Creio que é preciso manter a educação, o lazer e a saúde gratuitos para todos com qualidade cada vez maior. Se a renda mínima for uma adição e não uma subtração de direitos, ela virá dar maior poder de barganha para aqueles que são assalariados ou trabalham por conta própria a serviço das empresas e das famílias abastadas. Acho oportuna por isso, especialmente se for implementada como parte de uma reforma substantiva da repartição da renda e da riqueza no país.
Grande parte da esquerda – penso – acha consciente ou inconscientemente que não sabe mais como superar o capitalismo - Eleutério da Silva Prado
IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que a desindustrialização, a privatização, a reprimarização e a financeirização geraram uma transformação estrutural no sistema econômico brasileiro. Pode explicar como isso ocorreu e que sistema econômico resultou deste processo?
Eleutério da Silva Prado – Como se sabe, nos anos 1980 se descobriu que ocorrera um esgotamento do processo de substituição de importações por meio do qual a economia capitalista no Brasil crescera a uma taxa média de pouco mais de 7% ao ano durante várias décadas. Diante desse fato, ao invés de manter um projeto nacional que visasse manter e aperfeiçoar a estrutura produtiva alcançada, buscando maior especialização qualificada, os governos desde então optaram pela liberalização comercial e financeira.
Argumentou-se, então, que era preciso submeter o sistema econômico a um choque de competição e de redução da intervenção estatal. Os economistas neoliberais, como se sabe, mantêm uma devoção pela espontaneidade do processo econômico; eles acreditam, como se diz, numa suposta capacidade intrínseca dos mercados de se desenvolverem por si mesmos.
Eis que essa capacidade está, sim, ancorada na lógica do processo de acumulação de capital, o famoso dinheiro que compra mercadorias para produzir e vender novas mercadorias, obtendo assim mais dinheiro. E essa lógica tem um dinamismo próprio, mas ele depende da taxa de lucro dos novos projetos de investimento – e esta taxa tem caído tendencialmente após 1980, aqui e no centro do sistema.
Ademais, ela requer a proteção e mesmo complementação do Estado. Num mundo em que existe uma luta acirrada pelos mercados internacionais, em que vigoram imperialismos já bem estabelecidos, essa crença na espontaneidade nada mais é do que a intenção de tornar a economia nacional cada vez mais dependente de tecnologia e de capital externo e, assim, subordinada aos interesses das potências capitalistas.
IHU On-Line - Como a desindustrialização, a privatização, a reprimarização e a financeirização se combinaram e se reforçaram mutuamente neste período?
Eleutério da Silva Prado – O que a liberação produziu – eis que ocorreu sem a neutralização da vantagem competitiva dos produtos primários vis-à-vis dos tecnológicos aqui produzidos – foi um processo de desindustrialização da economia capitalista no Brasil. A contrapartida imediata do abandono completo do projeto desenvolvimentista a ela associado foi a reprimarização, a desestatização e a financeirização. É evidente que faltava competitividade para muitas indústrias aqui instaladas.
Com uma abertura econômica descontrolada e irresponsável, muitas empresas privadas fecharam ou se tornaram maquiladoras. Muitas empresas estatais se tornaram desnecessárias já que não se buscava mais ancorar um desenvolvimento independente. Muitos capitais deixaram a esfera da produção por falta de perspectivas lucrativas, passando então a se concentrar na esfera financeira.
IHU On-Line – Que resultados econômicos e sociais foram colhidos com as escolhas políticas feitas nas últimas três décadas?
Eleutério da Silva Prado – Nada melhor para mostrar o resultado dessa transformação estrutural da economia capitalista no Brasil do que os resultados obtidos por Paulo Gala em seu estudo denominado Complexidade econômica – Uma nova perspectiva para entender a antiga questão da riqueza das nações (Contraponto, 2017). O gráfico abaixo, obtido desse estudo que avançou na compreensão da evolução recente da economia brasileira, ilustra um ponto muito importante: partindo da tese de que há uma correlação positiva entre desenvolvimento e complexidade econômica – medida esta última pela sofisticação e diversidade de sua pauta de exportações –, Gala mostrou que a partir dos anos 1990 ocorreu uma regressão no processo de desenvolvimento econômico do Brasil.
Ora, esse movimento de regressão da complexidade da estrutura produtiva no Brasil se aprofundou a partir de 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff, mas foi ainda mais longe nos governos Temer e Bolsonaro. Todos eles estavam ou estão, um depois do outro, se esforçando e se esmerando para completar a parábola... mesmo se não o sabiam ou não o sabem.
A regressão da complexidade da estrutura produtiva no Brasil se aprofundou a partir de 2015, ainda no governo de Dilma , mas foi ainda mais longe nos governos Temer e Bolsonaro
IHU On-Line – O senhor explica a “fraqueza da esquerda” no momento atual por sua incompreensão de que não há qualquer esperança de desenvolvimento social no interior do capitalismo. Onde se encontra essa esperança? Quais são as fontes de possibilidade para dar continuidade ao desenvolvimento social?
Eleutério da Silva Prado – Grande parte da esquerda – penso – acha consciente ou inconscientemente que não sabe mais como superar o capitalismo. Não há mais para ela um projeto de socialismo claro e viável. Desse modo de pensar decorre ou um conformismo ou um ultraesquerdismo, ambos inefetivos para produzir mudanças reais. Ora, um projeto que contenha um modelo bem definido de uma nova sociedade só pode ser autoritário – não democrático. Eis que ele terá de ser imposto mesmo contra a vontade de muitos e mesmo da maioria. A superação do capitalismo – julgo – tem de ser uma obra coletiva, plural, com vozes e ações descentralizadas, enfim, democrático já de saída e em todo o seu processo.
Acontece que o capitalismo, que foi um sistema progressivo por vários séculos, até aproximadamente o fim da década dos anos 1970, tornou-se desde então um sistema regressivo. O filósofo Franco Berardi tem afirmado que o ocaso do capitalismo foi anunciado quando o Clube de Roma publicou o relatório Os limites do crescimento, em 1972. Desde então, o evolver desmedido desse sistema econômico e, com ele, a financeirização, a destruição das proteções sociais dos trabalhadores, o aumento descontrolado da população marginalizada, a necropolítica, a predação dos recursos naturais, a elevação dos níveis de poluição etc., não fizeram mais do que produzir uma aproximação progressiva do fim da civilização humana.
A mesma lógica que fez do capitalismo um sistema social progressivo por muito tempo, a lógica da acumulação insaciável de capital – que é também a lógica de sua desmedida constante, da produção de crises econômicas e sociais –, agora tornou esse sistema regressivo. O seu lado negativo superou o seu lado positivo: ele envelheceu e se tornou caduco. O “homem moderno” que se tornou, sim, dono e senhor de sua própria natureza e da natureza não humana, transformou-se agora em um monstro que tudo devora; no dizer de Anselm Jappe, o capitalismo gerou uma sociedade autofágica.
Em minha opinião, que é só a opinião de um professor do campo da ciência da economia, a esquerda tem de ter um programa de transformações que vise preservar a civilização tendo por base o princípio do comum, tal como ele está posto no livro Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI (Boitempo, 2017), de Pierre Dardot e Christian Laval. Segundo eles – e eu concordo –, é preciso construir uma política do comum, é preciso contrapor o direito de uso à propriedade, é necessário pôr o comum como um princípio de emancipação do trabalho, é preciso instituir a empresa comum etc.