A crise pandêmica ensina: já não são apenas os trabalhadores, e seu possível comunismo, que atordoam os capitalistas. Também a natureza vinga-se. E só outro sistema social poderá reconciliá-la com a humanidade…
Eleutério F S Prado, Outras Palavras, 4 de dezembro de 2020
De início é preciso fazer uma comparação entre duas perspectivas sobre as condições atuais e futuras da sociedade humana. Num artigo publicado no sítio A terra é redonda, o Prof. Paulo Artaxo, docente titular do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), diz: Nossa sociedade está simultaneamente convivendo com três emergências importantes: 1) a crise na saúde; 2) a crise de perda de biodiversidade; e 3) a crise climática. Salienta-se que essas crises têm ligações profundas entre si, e diferenças importantes, mas todas provocam impactos sociais e econômicos fortes e afetam nosso planeta globalmente.
Já num relatório sobre a estabilidade financeira publicado recentemente pelo banco central norte-americano, o Federal Reserve, constata-se uma preocupação diversamente orientada: O curso da pandemia, sua extensão e duração, as consequências econômicas e financeiras, continua a ser um dos mais significantes riscos para o sistema financeiro. A efetivação desses riscos depende largamente do sucesso das medidas de saúde pública e outra ações governamentais para conter a difusão do COVID-19.
Ora, essa comparação leva imediatamente à seguinte questão: a finalidade última da sociedade atual é se preservar, difundindo melhor o nível de civilização até agora alcançado, ou, ao contrário, é manter a lógica de acumulação de capital e, assim, o seu sistema financeiro globalizado? É “ele” que importa? O sistema econômico existente está a serviço da sociedade? Ou, ao contrário, é esta última que deve atuar e se sacrificar em função do sistema econômico?
Com sua franqueza habitual, Karl Marx não disse que “o valor de uso nunca deve ser tratado como meta imediata do capitalismo; tampouco o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento de ganho”? Se é assim, neste momento histórico, não se deve esperar outra preocupação de um aparelho financeiro do capitalismo. Por outro lado, também não se pode deixar de ficar indignado com a insensibilidade desse tipo de manifestação, portadora de um anti-humanismo explícito.
De qualquer modo, vale notar que essa preocupação mostra que os tecnocratas do banco central norte-americano estão com medo. E que esse medo está bem difundido entre a classe dos capitalistas em geral, seja nos Estados Unidos seja na Europa e mesmo fora dos países ditos desenvolvidos. Isso prova que sobrou algum fundo humano nos funcionários do sistema econômico atualmente em decomposição? Pode-se duvidar, porque eles parecem mais preocupados com a sobrevivência do capital do que com a própria sobrevivência. Uma coisa parece certa: uma mudança de fase na relação do homem – do capitalismo, por enquanto – com a natureza assusta agora o capital. E o próprio negacionismo, seja ele moderado (e hipócrita) ou extremista (e cínico), afirma implicitamente o seu contrário. Pois ele consiste num modo irracional – humano, demasiadamente humano – de afastar o medo.
Eis como o capital financeiro percebe o crescimento do “risco” futuro diante de eventos que a ciência da ecologia prevê com certeza científica.
Esses riscos climáticos se apresentam em vários horizontes. A figura abaixo ilustra como os riscos ecológicos se transformam em riscos para a estabilidade financeira. Riscos agudos, tais como tempestades, inundações, secas ou incêndios florestais, podem alterar rapidamente ou revelar novas informações sobre as condições econômicas futuras ou o valor de ativos reais ou financeiros. Além disso, na presença de mudanças rápidas nas percepções públicas de risco, os perigos crônicos (como um aumento lento no nível do mar) têm o potencial de produzir eventos de reprecificação abrupta semelhantes. Esses eventos de reprecificação e perdas diretas associadas a riscos climáticos podem resultar em um aumento da frequência e gravidade dos choques financeiros; o momento e as repercussões desses choques são difíceis de prever com antecedência.
O sinal mais proeminente desse difuso temor da morte, apresentado por meio da linguagem tecnocrática dos economistas do sistema, encontra-se entre os dois primeiros blocos da figura produzida por eles mesmos e aqui reproduzida: os riscos são crescentes tanto em frequência quanto em severidade. E, ainda que mencionem precipitações de curto prazo, o que está em jogo na formulação desse quadro é uma previsão de longo prazo bem embasada cientificamente. Segundo ela, parece cada vez mais difícil supor que há futuro possível para o capitalismo.
O principal efeito da crise pandêmica em curso ocorreu na saúde e na sanidade da população: muitos milhões de infectados, milhões de mortes. Mas o relatório não enxerga o mundo por esse visor. Prefere perscrutar os efeitos da exaustão ecológica na manutenção das propriedades imobiliárias: Um exemplo de como as mudanças climáticas podem aumentar os riscos para a estabilidade financeira são as suas consequência para as propriedades imobiliárias. Algumas propriedades residenciais e comerciais estarão sujeitas a perigos agudos, como tempestades associadas à elevação do nível do mar e furacões mais intensos e frequentes. O uso produtivo contínuo dessas propriedades exigiria investimento e adaptação. À medida que as inundações ou tempestades se tornarem mais frequentes, o valor esperado dos imóveis expostos pode diminuir, o que pode, por sua vez, representar riscos para os empréstimos imobiliários, títulos lastreados em hipotecas, os detentores desses empréstimos e títulos e a lucratividade dos bens não financeiros empresas que usam essas propriedades.
Um ponto desse relatório pode ser aproveitado para fazer uma avaliação crítica do presente e do futuro do sistema. Ele diz que tais eventos sobrevenientes – portadores de “riscos”! – “divergem dos padrões históricos” observados até recentemente. De fato, o que a presente crise já mostra é que ela não é uma mera repetição do padrão das crises econômicas passadas; é certo que ela tem algo bem novo e que este algo precisa ser ressaltado. A crise de 2007-08, por exemplo, tem semelhanças com a crise de 1929, mas a que sobreveio em 2020 tem um caráter crucialmente diferente. Se não se trata de um evento sistêmico produzido por causas endógenas, também não provém de um choque exógeno, tal como tendem a pensar os tecnocratas que militam no partido político Economics. Logo, ela própria põe uma questão à reflexão teórica sobre o evolver do capitalismo.
Desde logo, é preciso ter consciência de que não se está enfrentando mais uma crise, mas uma mudança metabólica, uma transformação decisiva da relação do homem – do capitalismo, por enquanto – com a natureza.
A questão anterior é, pois, enormemente relevante. Ela exige, no entanto, uma resposta – julga-se aqui – que fique no horizonte da dialética do sujeito automático, exposta em O capital. Eis que, em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre “barreiras” e “limites”. As barreiras, conforme a tradição do uso do termo, são postas pelo próprio movimento da acumulação de capital; já os limites, segundo a sua própria semântica, provêm das condições naturais que são necessárias para o seu evolver possível, no tempo histórico. Grosso modo, tomando o capital como uma falsa totalidade que não engloba nem a natureza nem o próprio homem (mesmo se os subordina na prática), as barreiras são obstáculos internos, mas os limites se antepõem externamente ao processo de reprodução do capital.
As crise capitalistas tradicionais são sempre crises de superacumulação porque o capital é um sujeito posto que busca se alimentar crescentemente de trabalho vivo; ele é, como se sabe, insaciável e, por isso mesmo, tende inexoravelmente à desmedida. O avanço da acumulação engendra decréscimo da taxa de lucro, falta de demanda efetiva, exacerbação financeira, desvalorização do capital existente, ou seja, realiza um padrão de crises, as quais, entretanto, nunca se repetem identicamente. Ademais, como diz Marx, ao elevar de modo constante a produtividade do trabalho, ele próprio não pode deixar de minar, ao mesmo tempo, as bases do próprio capitalismo. Em síntese, o capital é um auto-movimento que cria continuamente barreiras para si mesmo, mas tende a superá-las – descarregando sempre que necessário os ônus dessa superação no ambiente e na sociedade.
A produção capitalista – diz esse autor clássico – tende constantemente a superar essas barreiras1 que lhes são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela essas mesmas barreiras, em escala ainda mais formidável.
Logo, portanto, tais barreiras não podem pôr, em certo momento, um limite absoluto ao desenvolvimento do capitalismo, mesmo se, para superá-las, esse sujeito repetitivo precise se tornar cada vez mais destrutivo das suas condições de existência – que também são as dos seres humanos em geral. Na verdade, o capital, como princípio de desenvolvimento infinito, não pode avançar sem consumir predatoriamente a natureza humana e a natureza não-humana.
No entanto, parece cada vez mais evidente que o processo de acumulação de capital está agora enfrentando limites – e não mais apenas barreiras. Para compreendê-los teoricamente, tal como já foi indicado, é preciso compreender o sistema do capital como uma falsa totalidade. Eis que o capital, sujeito de um processo que tem dinâmica própria, labora constantemente para criar um mundo para si mesmo. Impõe aos homens e à natureza fins que não lhes são inerentes; ademais, não respeita as suas lógicas naturais de reprodução. Eis em linhas gerais o que este autor escreveu há um tempo atrás em outro pequeno artigo.
A totalidade posta pelo capital não integra serenamente em si o trabalhador, mas, ao contrário, captura-o e o subordina do modo que lhe é próprio, ou seja, por meio de um constrangimento estrutural. Ao mesmo tempo, ele se apropria também da natureza não consciente de si e, por isso, quase passiva em relação à sua violência desmesurada. Em consequência, é preciso concluir que a totalidade formada pelo capital tem um exterior, um ambiente, e este é formado pela natureza humana e pela natureza não humana. Ambas, de algum modo, são exploradas pelo capital à medida que ele reproduz a sua própria totalidade falsa.
Em consequência, é do exterior que pode vir uma limitação decisiva ao processo de reprodução do capital, isto é, da relação de capital. Marx, como se sabe, nunca deixou de pensar a própria classe trabalhadora como o limite externo possível do capital. Pois, o trabalhador apenas se subordina ao capitalista enquanto trabalhador, ou seja, enquanto suporte de sua própria força de trabalho. Por outro lado, está sempre pressuposto que o trabalhador guarda em si o ser humano como potência, que, no processo da luta de classe, pode vir a confrontar e mesmo a destruir o sistema do capital, pondo-se em ato, realizando-se enquanto tal. Logo, a possibilidade de uma contenção absoluta à expansão da relação de capital não pode ser considerada como uma novidade na história do capitalismo.
O outro limite externo se apresenta agora, com certa dramaticidade, na história do modo de produção capitalista. Uma certa exaustão dos recursos naturais apropriáveis apresenta-se agora como um fato relevante. A apropriação desses recursos está produzindo desequilíbrios ecossistêmicos fatais para a existência da humanidade. A capacidade de carregamento do planeta Terra que, mesmo tendo sido ampliada enormemente nos dois últimos séculos por meio da ciência e da tecnologia, está chegando – ou já chegou como afirmam certos ambientalistas – à sua fronteira absoluta.
Parece adequado, portanto, pensar que tal limitação pode vir a constranger a dinâmica da acumulação de capital no futuro próximo, ou seja, no correr do presente século. As crises econômicas do passado, assim como uma certa tendência à estagnação no centro do sistema e em diversos países periféricos, têm de ser explicadas principalmente pela dinâmica interna da acumulação de capital. Entretanto, a crise que agora se apresenta tem um caráter diverso. Trata-se de uma crise engendrada por uma “revolta” da natureza não humana contra a “lógica do capital”. Aproveitando-se de pontos fracos da globalização, ela espalhou celeremente um vírus que, além de contaminar e matar milhões, provocou um princípio de colapso no próprio funcionamento do sistema econômico.
Trata-se desse alerta – há uma mudança metabólica em curso – que também foi ouvido pelos tecnocratas alienados e desumanizados do banco central norte-americano. Também o sistema financeiro não poderá sobreviver à mutação ecológica em curso, a qual está sendo produzida, como bem se sabe, pelo próprio capitalismo. Tem-se atualmente, portanto, não apenas aquilo é chamado hoje de necropolítica, mas, como diz Vladimir Safatle, uma política suicidária.
Por enquanto – e é isto também que a presente crise anuncia –, o capitalismo só poderá se manter diante de tais limites regressivamente, pondo assim no horizonte, inclusive, a morte possível da humanidade. Mesmo assim continua sendo verdade que uma superação positiva, tal como Marx estabelecera ainda no século XIX, só pode provir da atuação política dos oprimidos em geral, estejam eles organizados como trabalhadores ou de outra forma. A tarefa, no entanto, parece cada vez hercúlea. Há, no entanto, de ser feita: a omissão é ela própria a aceitação de uma pena capital.
1 No texto original, está escrito “limites”. Como aqui, por maior clareza, buscou-se fazer uma distinção entre barreiras e limites, “corrigiu-se” a tradução.