Avalanche de prazeres fúteis oferecidos pelo sistema é cada vez mais enfadonha. Mas alternativa seriam o sacrifício e o puritanismo? Ou acenar com o tempo livre, o fim do trabalho alienado e novas relações com a natureza e a sensualidade?
Kate Soper, no IAI / Outras palavras, 12 de dezembro de 2020 | Tradução de Simone Paz e Gabriela Leite
Por mais que aceitemos que somos responsáveis pelas mudanças climáticas, nos recusamos a ver a oportunidade que elas oferecem para criar modos de vida que sejam melhores para o meio ambiente e mais agradáveis para nós. Isso não só é verdade para pessoas comuns, como também para economistas e outros “especialistas” que levam o aquecimento global muito a sério, mas que não conseguem pensar para além das soluções técnicas que podem nos permitir continuar com nossos modos de vida atuais. A maioria dos políticos e líderes empresariais parece igualmente incapaz de pensar “fora da caixa” do consumismo.
Obcecados como são pelo crescimento econômico e o PIB, não convidam a população e os eleitores a pensar em novas ideias de progresso e prosperidade, e ficam mais do que felizes com os publicitários mantendo o monopólio da imagem e da representação do prazer e de uma “vida boa”.
Até os críticos do capitalismo à esquerda têm se preocupado mais com as desigualdades de acesso e distribuição que o sistema do que com as maneiras como nos confina a modos de vida orientados pelo mercado. A militância socialista e a atividade sindical no Ocidente têm sido amplamente limitadas à proteção da renda e dos direitos dos empregados dentro das estruturas já existentes do capital globalizado — e pouco fazem para desafiar, muito menos transformar, a dinâmica de “trabalhar e gastar” das culturas mais abastadas.
Mesmo quando a esquerda aborda questões relacionadas à necessidade e ao consumo de forma mais direta, ela tende a defender narrativas de uma “vida simples” para a realização humana, em vez de pensar de forma mais inspiradora nas complexidades e potencialidades do prazer humano, e nas direções barrocamente enriquecedoras que elas poderiam adquirir em uma sociedade pós-capitalista.
Mas a presunção, em todo o espectro político, de que o consumo mais sustentável sempre envolverá sacrifícios, em vez de melhorar o bem-estar, precisa ser enfrentada.
A nossa “vida boa”, hoje é reconhecida como uma das principais causas de estresse e de problemas de saúde. É uma vida muito barulhenta, poluente e desperdiçadora. Nossas rotinas de trabalho e prioridades comerciais forçaram as pessoas a direcionar todas as suas forças para a busca por empregos e carreiras. Muitos, durante a maior parte de suas vidas, começam seus dias em engarrafamentos ou sofrendo outras formas de desconforto causadas pelo trânsito. E passam grande parte do resto delas colados na tela do computador, muitas vezes envolvidos em tarefas entorpecentes.
Grande parte da atividade produtiva em nossas vidas é projetada para aprisionar o tempo na criação de uma cultura material de contínua melhoria da casa, expansão urbana, rotatividade de produção cada vez mais rápida e obsolescência programada. Em outras palavras, excluindo formas de realização humana mais dignas, duradouras ou fascinantes. Nosso sistema atual também lucra enormemente com a venda de bens e serviços para os quais temos muito pouco tempo ou espaço (aqui entra o papel dos setores de fast food, lazer e terapia, ou as academias onde pagamos para caminhar numa esteira porque a ditadura do carro tornou a caminhada em outros lugares impossível ou muito desagradável).
Os movimentos verdes são rejeitados e vistos por alguns como estraga-prazeres, como se estivessem empenhados em nos levar de volta à Idade da Pedra. Mas a “abundância” dos dias de hoje, contaminada por trabalho, escassez de tempo e excesso de lixo, é em muitos aspectos puritana e ofensiva para com a sensualidade. Muito disso nem corresponde a um desejo inato nosso de trabalhar constantemente e consumir mais. Se assim fosse, os bilhões gastos em publicidade e preparação de crianças para uma vida de consumo dificilmente seriam necessários.
Um número cada vez maior de pessoas vem percebendo isso e descobrindo, após refletir, que a vida não se reduz a “trabalhar e gastar”. Desencantados com seu estilo de vida estressante, eles começam a revisar ideias sobre o que mais valorizam e desejam. O fato de ansiarmos por outra vida, e que com ela sentiríamos mais prazer, é corroborado por uma pesquisa recente que mostra que mais riqueza não nos torna necessariamente mais felizes, e sugere que há algo inerentemente autodestrutivo na busca incessante pelo consumo.
É verdade que as pesquisa precisam ser analisadas com cautela. O que relatamos sobre nosso grau de satisfação nem sempre é o melhor guia sobre como realmente estamos nos saindo. E nem sempre a falta de correlação relatada entre uma renda mais alta e maior satisfação com a vida significa que um consumo maior não melhore o bem-estar. Isso ocorre porque os padrões que usamos para avaliar nosso nível de satisfação podem se tornar mais exigentes à medida em que nossa experiência de vida muda com o aumento da renda.
Experiência e educação podem melhorar nosso senso de liberdade e potencial pessoal justamente ao gerar descontentamento com nossa situação de vida existente. À medida que aprendemos uma nova habilidade, frequentemente criamos novas formas de frustração e exigências sobre nós mesmos (quanto melhores nos tornamos em um determinado esporte ou tocando um instrumento musical, mais conscientes estaremos daquilo que faz falta em nosso desempenho).
O que deveria, então, ser considerado na estimativa da “boa vida” — a intensidade de seus momentos de prazer mais raros ou seu nível geral de contentamento? A fuga da dor e da dificuldade ou sua superação bem-sucedida? E quem está na melhor posição para decidir se o bem-estar pessoal aumentou: seria inteiramente uma questão de relato pessoal ou aberto a uma avaliação mais objetiva?
Há muito que essas questões estão no centro dos debates, entre a abordagem utilitarista e a aristotélica, para refletir sobre o bem-estar. Enquanto a ênfase da primeira está no prazer e em sua quantificação (deve contar, na estimativa da felicidade, o número de prazeres experimentados ou dores evitadas), o foco aristotélico baseia-se no curso geral de uma vida (o que você foi capaz de fazer com ela — tomando em conta, portanto, as capacidades, funções e realizações, ao invés de sentimentos mais imediatos de gratificação).
Em defesa de sua posição, os aristotélicos argumentarão que as pessoas nem sempre são os melhores juízes de seu próprio bem-estar e que muito prazer imediato pode também ser obtido com um comportamento autodestrutivo. Além disso, se proibirmos quaisquer avaliações objetivas da “vida boa”, também seremos privados de motivos para criticar formas egoístas e ambientalmente agressivas da busca pelo prazer. Também foi afirmado, de forma relacionada, que uma “felicidade” concebida ou medida em termos de sentimentos subjetivos desestimularia o desenvolvimento do senso de cidadania e solidariedade intergeracional — que é essencial para o bem-estar social e ambiental.
No entanto, a abordagem mais utilitarista não precisa excluir as formas de prazer com orientação cidadã, que vêm com o consumo responsável para com os outros e o meio ambiente. Afinal, o prazer de muitas atividades, como andar de bicicleta, inclui tanto os prazeres sensuais pessoais mais imediatos, quanto aqueles que vêm do fato de não contribuir para o perigo e a poluição do transporte automotivo. Além disso, é difícil, em última análise, legitimar reivindicações sobre o bem-estar de alguém sem alguma medida de endosso da pessoa em questão.
Há, então, uma tensão nas discussões sobre o hedonismo e “boa vida”, entre o privilégio utilitarista do prazer experimentado e o viés mais objetivo da tradição aristotélica. Enquanto o primeiro corre o risco de ignorar os componentes mais objetivos da “boa vida” e da “boa sociedade”, o último faz justiça a esses pilares, mas corre o risco de superestimar, ou até mesmo de preferir o conhecimento superior de “especialistas” por sobre os próprios indivíduos.
Mas aceitar a complexidade de avaliar as afirmações sobre a qualidade de vida e a satisfação pessoal é uma coisa. Negar que haja hoje evidências da natureza autodestrutiva do consumo em constante expansão seria outra bastante diferente. De fato, é consenso de ambos os lados do debate hedonista que a felicidade não reside no acúmulo infinito de coisas. E embora não tenha — e nem possa — a aspiração de resolver as questões filosóficas dessa área, a perspectiva hedonista alternativa destaca as narrativas sobre prazer e bem-estar que estão implícitas nas formas emergentes de insatisfação com a cultura afluente. Assim, busca abrir uma ótica pós-consumista sobre a “boa vida”, que pode se conectar com os sentimentos dos consumidores no aqui e agora.
O “hedonismo alternativo” nesse sentido tenta evitar moralizar a questão do que as pessoas deveriam precisar ou querer (apesar de ser verdade que esses dois não podem ser evitados ao mesmo tempo…), enquanto se relaciona com novas respostas de anticonsumismo. Seu principal interesse, assim, (evocando um conceito do crítico cultural Raymond Williams) é em uma “estrutura de sentimentos” em ascensão, que é ao mesmo tempo perturbada por formas de consumo que antes eram tidas como certas, ciente de antigos prazeres perdidos, e sensível pela primeira vez ao convite a uma nova forma de viver.
Com o aquecimento do planet, precisamos construir uma resposta que apele para essa “estrutura de sentimentos”. Seu apoio irá desafiar o estrangulamento da ética de trabalho no modo de vida ocidental, será um esforço para alcançar uma ordem sócio-econômica na qual trabalho e renda sejam distribuídos de maneira mais justa, em que a coparentalidade e que o trabalho doméstico compartilhados sejam regra, e na qual todos tenham os meios e o tempo para formas sustentáveis de atividades e melhorias de vida.
Se fizéssemos a mudança para uma economia de trabalho menos intensiva, ela iria reduzir o ritmo em que as pessoas, os bens e as informações têm que ser entregues ou transmitidas, e o impacto nas fontes de atrito e nas emissões de carbono seriam de grande impacto para todos. Poderíamos recuperar tempo para nossa vida pessoal e familiar. Diminuiríamos as viagens diárias e adotaríamos maneiras mais saudáveis de deslocamento, como as caminhadas, a bicicleta e os barcos. Supermercados e compras online seriam substituídos por um ressurgimento do varejo de rua, evitando a síndrome da “cidade clone” e dando força às comunidades locais, de maneira que poderíamos reduzir o crime e adotar novas formas de convívio e troca intergeracional.
Tudo isso transformaria a vida rural e urbana, especialmente para as crianças, e proporcionaria mais espaço para a reflexão, além de oportunidades para experiências sensoriais negadas pela rotina atormentada e isolada de trabalho e deslocamento. E os custos para isso acontecer seriam insignificantes em relação aos representados pela organização atual, especialmente se as despesas médicas pudessem ser substituídas por uma saúde pública de mais qualidade, com menos acidentes.
Há, é claro, algumas vantagens e prazeres que teríamos de sacrificar em uma economia de baixo carbono: confortos de vários tipos; algumas das excitações de uma vida acelerada; a facilidade de que dispunhamos até recentemente das viagens ao exterior. Mas o conforto constante pode tanto satisfazer quanto entorpecer os apetites. A inventividade conseguirá certamente criar uma série de emoções mais ecológicas. Mesmo viagens a lugares distantes nem sempre cumprem sua promessa de oferecer experiências raras, e o ritmo diferente das férias perto de casa também pode ser fonte de formas inesperadas de encantamentos e escape da vida banal.
A mudança para um modo de vida pós-consumismo traz uma perspectiva chocante, dada a estrutura da existência moderna e a subordinação das economias nacionais ao sistema globalizado. Além disso, é irrealista supor que podemos continuar com as taxas atuais de expansão de produção, trabalho e consumo material do último século, para não falar das últimas décadas. Tecnologias mais verdes ajudarão a conter o aquecimento global.
Mas a adoção de alternativas ao crescimento econômico tem de se tornar uma preocupação central no planejamento e na criação de políticas — não ser ignorado ou desprezado, como se fosse uma fantasia impraticável. Além disso, em abalos climáticos ou financeiros, somados a um grande cinismo em relação aos comprometimentos dos governos com o aquecimento global, mais honestidade a respeito desse assunto pode também gerar mais cooperação e respeito de parte do eleitorado — especialmente se for acompanhado de imaginação sobre as singularidades de viver em uma sociedade sustentável. Essas ideias transformadas de “vida boa” podem também ser projetos que os países menos desenvolvidos terão, se quiserem reconsiderar as convenções e objetivos de seu próprio “desenvolvimento”, e evitar algumas das consequências mais indesejáveis do modelo dominante.
Meu argumento sobre o hedonismo alternativo é frequentemente rejeitado e taxado de utópico. Mas há algo bem irrealista na projeção de futuro focada nos “negócios, como sempre”. E dada a urgência atual de políticas de prosperidade que dissociem prazer e realização de consumo de uso intenso de recursos, é importante evitar suposições fantasiosas sobre o que seriam formas globalmente sustentáveis de indústria e estilo de vida. Nós não podemos, é claro, defender acesso igualitário e universal à riqueza e ao estilo de vida ocidental. A demanda por pleno emprego, o fim da austeridade e a segurança econômica para todos devem estar ligadas a demandas de expansão do tempo livre, da diminuição de ritmo da economia e do estabelecimento de uma ordem baseada em uma forma de consumo material essencialmente reprodutiva. A reconceitualização de “progresso” segundo essas linhas deve oferecer as bases em que nos apoiaremos para pensar sobre arranjos de trabalho e instituições políticas para um futuro socialmente justo e viável.