Gabriela Caramuru*
Quem está fazendo a comida dos restaurantes que garantem o isolamento de apenas alguns? Quem entrega mercadorias na sua casa? Quem está no mercado, na farmácia e no comércio trabalhando? Em que condições se explora a classe trabalhadora no Brasil de 2020? O que defendem os socialistas para a manutenção dos salários frente ao Covid-19?
Em resumo, defenderemos que, diante do isolamento necessário à prevenção do Covid-19, cabe aos patrões arcarem com a interrupção dos contratos de trabalho no Brasil, isto é: a suspensão da prestação de serviço e manutenção dos salários! Defenderemos o fim do tempo mínimo de trabalho para acessar ao Seguro Desemprego e o impedimento de rompimento de contratos de estágio. A imediata suspensão do trabalho de grávidas e idosos (60 anos). Para os trabalhadores informais e autônomos defenderemos pagamento de salário mínimo pelo Estado, enquanto durarem as orientações de isolamento. Vamos aos argumentos.
O país está em crise econômica e política devido a um governo miliciano, patronal e fundamentalista, que reafirma nosso lugar de quintal dos EUA na América Latina. Alguns empresários brasileiros enriquecem com a venda do país e restrições de direitos, principalmente aqueles que não precisam vender suas mercadorias em um país de terra arrasada, que vivem dos títulos públicos, das operações bancárias e dos nichos de mercado fruto das privatizações, como as previdências privadas. Outros afundam com a restrição do mercado interno em face dos cada vez mais baixos salários e poder de consumo dos trabalhadores, compram trabalho intermitente para seus cafés e padarias, mas não existem mais brasileiros para tomar expresso e comprar queijo. A dependência internacional da venda de commodities baratas, o desaquecimento da China e a imprevisão da produção mundial também diminuem exportações brasileiras e investimentos estrangeiros em dólar. A dependência econômica dos mercados, investimentos e tecnologias externas se acirra com a venda de setores importantes como a Petrobras, a desindustrialização do país, a destruição do território e matérias primas pelo agronegócio. A burguesia nacional faz o melhor para si, aliando-se ao capital internacional e comercializando o trabalho superexplorado como atração latino-americana.
O neoliberalismo aparece na ausência completa de planificação econômica, de proteções sociais como saúde e demais políticas públicas. E sua derrota se verifica na constante concentração de riquezas em âmbito mundial, aumento da jornada de trabalho e diminuição de salários, com reformas trabalhistas e previdenciárias em todo o globo. A crise dos empresários e sua política econômica empurram o capital sobre o trabalho, invadindo a cesta de consumo dos trabalhadores. Busca-se compensar os lucros diminuídos pelas equivocadas políticas de mercado.
A reprodução atrofiada da classe trabalhadora não é nova, e na América latina aparece como regra, com uma opressão de morte de cerca de dez anos em relação a expectativa de vida dos países centrais[i]. O acesso à saúde como condição da própria manutenção da força de trabalho para a exploração, ou o pagamento de aposentadorias para a manutenção de um mínimo mercado interno benéfico ao capital, também é fragilizado em relação ao centro. Com um histórico exército de reserva majorado desde o passado de sequestro e escravização de africanos para suprir a demanda do centro, nem mesmo os direitos sociais do trabalho para o mínimo de regulação do consumo da força de trabalho na exploração tem a devida eficácia no Brasil. A vida dos trabalhadores latino-americanos importa menos ao capital, de modo que se o vampiro matar a presa (ou incapacitá-la para o trabalho) existirá outra presa na fila para a extração de mais-valor.
A luta de classes conquista uma fumaça de direito, que embora nada tenha de revolucionário e conserve as relações capitalistas, legalizando a exploração do trabalho, na medida em que garante a reprodução parcial da classe trabalhadora garante vida a esses trabalhadores. Assim, os direitos à saúde, salários e jornada máximas são reivindicados como pauta tática nas lutas reais por sobrevivência e enfrentamento do mais-valor absoluto.
Dessa maneira, em que pese o Direito garanta a exploração do trabalho com certos limites (menos rigorosos na América Latina) é pacífico que o Direito do Trabalho parte da constatação de que uma das partes da relação de trabalho tem privilégio sobre a outra e o privilégio está naqueles que têm o poder econômico de comprar trabalho: os patrões. Estamos dizendo aqui que o próprio Direito Capitalista do Trabalho reconhece a injustiça (e Direito nunca teve a ver com justiça[ii]) das relações de trabalho no capitalismo. Tal reconhecimento e autorização da subordinação de outras vidas ao empregador impõe deveres mínimos em troca. Isso para dizer que o risco da atividade econômica do capital é apenas do capital.
Em uma conjuntura de crise econômica e Covid-19 nos perguntam: – mas o empresário também não está passando por dificuldades? Os socialistas respondem: – Pode ser que estejam, pode ser que não. O que importa é que a diferença em ser capitalista ou trabalhador não é uma diferença subjetiva, digo, não se trata de querer ser capitalista, ou se esforçar, ou ter boas ideias, ou merecer. Ser capitalista é uma condição objetiva de “ter capital”. E ter capital e receber a autorização do sistema para comprar trabalho pressupõe o devido risco de comprar trabalho, o risco de concorrer com os diversos fatores do mercado capitalista, sejam eles internos ou externos. E se o pequeno empregador se diferencia por não ter capacidade (capital) para ser empregador, assim como sem habilitação especial não se dirige avião, ou sem ser médico não se faz cirurgia, não devemos duvidar em impedir que o exercício da atividade econômica ocorra às custas da reprodução atrofiada de força de trabalho (impedimento por vezes realizado pelo próprio movimento de monopolização do capital).
Assim, diante de situações econômicas, políticas ou ambientais e também como é o caso do Covid-19 em que prejuízos indiscutivelmente atingirão a produção, cabe aos patrões a responsabilidade com o risco da atividade econômica. E vejam que não se trata de uma punição aos patrões, mas apenas a outra face da moeda que permite com que em condições extremamente favoráveis, ou em condições inesperadamente favoráveis os patrões não sejam obrigados a dividir seus lucros com os trabalhadores. Esse é o capitalismo dos próprios liberais.
Vejamos: “Lucros dos maiores bancos do Brasil crescem 18% em 2019”[iii], ou ainda “XP tem alta de 40% em receita e lucro dispara no quarto trimestre”[iv], apenas para exemplificar. A pergunta é: nesses casos de situações excepcionais favoráveis aos empregadores cabe divisão de lucros com os empregados? Pois o Direito é bem claro ao determinar que não. O fruto da bem-sucedida exploração do trabalho e dos elementos externos que levaram ao lucro são direito exclusivo do empregador que compra a força de trabalho. São os louros do risco da atividade econômica, próprios da condição de ter capital e valorizá-lo com a exploração do trabalho em uma jornada com limites legais.
Nessa medida, em caso de condições desfavoráveis como o Covid-19 cabe ao empregador mesmo em casos de prejuízo econômico a interrupção do contrato de trabalho com suspensão do trabalho e manutenção dos salários. A proteção à saúde do trabalhador (e aqui falamos novamente do mínimo) já aparece como uma regulação do próprio Direito Capitalista do Trabalho para proteger a reprodução da classe trabalhadora. A doação e uso de equipamentos de segurança (EPI) e a suspensão da prestação do trabalho diante de grave risco para a saúde já se encontra prevista na legislação até mesmo de países dependentes como o Brasil.[v] A segurança do mínimo de existência da força de trabalho deve ter primazia sobre o sucesso dos capitalistas na exploração do trabalho. E mesmo do ponto de vista do capital, a reprodução só não é protegida se o exército de reserva suprir a demanda por nova força de trabalho saudável para a exploração, como é o caso da América Latina e Brasil, e por isso o enfrentamento mais bruto na conquista dessas proteções.
A condição de proprietário do capital permite ao capitalista que ele e sua família não passem fome por conta do fechamento temporário de sua atividade econômica, permite que o empregador e sua família não sejam forçados a trabalhar em locais de risco e possam realizar a quarentena indicada pelos órgãos de saúde. A condição de capitalista ainda permite melhor atendimento médico e hospitalar, acesso a medicamentos e tratamentos que o trabalhador obrigado ao trabalho ou sem salário jamais logrará. Em suma, a condição de capital que compra o trabalho determina uma diferença na capacidade de enfrentamento aos prejuízos sociais e obriga o empregador a se responsabilizar pelas famílias que produzem a riqueza por ele apropriada privadamente ao longo de gerações. Dito isso, não é possível comparar os prejuízos do capital aos prejuízos dos trabalhadores.
No padrão de reprodução dependente, com alto exército de reserva, os trabalhadores lutam por pautas que no centro do capitalismo são preocupações também do capital para “manter a galinha dos ovos de ouro”. Quem pode se isolar no Brasil de 2020? Com previsões de mortes alarmantes os trabalhadores brasileiros seguem produzindo riquezas para os patrões, sem direito ao isolamento indicado pela saúde pública. A Pandemia mundial promete varrer favelas e periferias, nesse exato momento sendo contaminadas em suas jornadas de trabalho e trajetos. Enquanto os ricos se isolam e a classe média pede comida por aplicativos a ampla maioria dos brasileiros não tem a escolha pela manutenção de suas vidas. A garantia da vida dos trabalhadores mais do que nunca é uma questão de classe!
O recuo das relações de emprego e ampliação do trabalho informal com contratos civis de compra de trabalho reduzem ainda mais o valor dos salários e consolidam no Brasil o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor de reprodução. A informalidade, de 41,1% em 2019 no Brasil[vi], a pejotização com a fraude dos MEIs[vii], a terceirização irrestrita e a precarização do próprio vínculo de emprego (com negociações individuais, banco de horas, restrição da justiça e retirada de direitos) se cristalizam como uma tática patronal de avançar o capital sobre os bens necessários a reprodução dos trabalhadores.
Ao contrário do isolamento necessário à manutenção da vida de milhares de brasileiros, os trabalhadores informais e trabalhadores com vínculo de empregos precários, como terceirizados com alta rotatividade, estão sendo submetidos às jornadas ainda maiores em consequência do alto fluxo de pessoas nos supermercados, farmácias, pedidos de comida e demais mercadorias por aplicativos e trabalhos domésticos. O trabalho dos motoristas de ônibus e Uber, dos ciclistas de aplicativos, porteiros, educadores físicos, das cozinhas de restaurantes, dos seguranças, psicólogos, esteticistas, garçons, padeiros, dentistas, dos balconistas de farmácias, mercados e demais lojas devem ser prioritariamente protegido pelos socialistas e ser o foco das lutas contra a Pandemia e sua questão de classe.
A luta de classes não pode contar com a sensibilidade dos patrões, já que salários são sempre inversamente proporcionais aos lucros e estamos em uma disputa inconciliável de interesses econômicos. A qualidade de vida para os trabalhadores sempre demandou a redução dos lucros dos empregadores e nesse momento a vida dos trabalhadores exige o freio da acumulação privada das riquezas produzidas pelo trabalho dos brasileiros.
No caso dos trabalhadores informais, para além da luta tática por fiscalização e vínculos de emprego, no caso específico do Convid-19 cabe aos socialistas a cobrança de firme intervenção estatal para preservar a vida dos trabalhadores. E assim como a pena dos patrões é mero desvio burguês e desenvolvimentista, sem nenhuma crise moral devemos defender que o Estado capitalista deve suprir as demandas de vida dos trabalhadores afastados pela necessidade do isolamento. Estado ineficiente em garantir até mesmo moradias para todos os brasileiros, tendo em vista que o país conta com uma população em situação de rua, trabalhadores sem-teto em habitações precárias e detentos em situação comparável apenas ao passado escravocrata. A suspensão do pagamento da dívida pública, ou/e a execução de dívidas tributárias prescritas são sim medidas emergenciais que dividem o problema econômico com os capitalistas nacionais e internacionais.
Reivindicações como “ficar em casa sem trabalhar e sem salário” carecem de materialidade da reprodução da vida em nossos países. Com salário médio de R$ 2.330,00[viii] as famílias brasileiras não têm qualquer reserva disponível para passar nenhuma semana sem trabalhar, pelo contrário, apresentam números gritantes do endividamento com 44% das famílias declarando-se endividadas em maio de 2019[ix], fato que já denota a insuficiência dos salários na reprodução. Nesse caso, de igual maneira colocamos em risco a reprodução da força de trabalho no Brasil e se não morrer de Covid-19 morreremos de fome. A interrupção de todo trabalho só pode existir com a manutenção dos salários da classe trabalhadora.
Não é possível que os brasileiros paguem com suas vidas para a manutenção da atividade econômica de valorização do capital dos patrões. A imediata interrupção dos contratos de trabalho com salários para empregados, o pagamento de um salário mínimo (e menos que isso é inconstitucional[1]) para trabalhadores informais, o impedimento de términos de contratos de estágio e o fim da exigência de tempo de serviço para acesso ao Seguro Desemprego se apresenta como a política de redução dos danos causados pela corrupta gestão da saúde que o capitalismo vem construindo desde de sua existência. Todos devem ter direito ao isolamento!
Em uma sociedade internacional com relações de valor não existe elementos meramente “naturais” que não sejam afetados pelas relações sociais de produção, nesse caso, capitalistas. Nessa medida, o Covid-19 atinge de modo desigual os humanos em sociedade, se faz diferente no que se refere à prevenção, tratamento médico e manutenção da renda de países ricos e países pobres, entre homens e mulheres, entre patrões e empregados, entre trabalhadores formais e informais, entre brancos e negros e etc.
Propor uma política classista para o enfrentamento ao Covid-19 é tarefa dos socialistas em todos os seus locais de trabalho e com todos os trabalhadores com quem se relacionam.
(*) Gabriela Caramuru é professora de Direito do Trabalho, doutaranda na USP e militante do PSOL Curitiba.
NOTAS:
i] OMS. Worls Health Atatistics 2018: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/272596/9789241565585-eng.pdf?ua=1
[ii] Para o marxismo o Direito é próprio do capitalismo e forma jurídica de troca de equivalente pelo contrato, com a construção de abstrações necessárias as trocas de mercadorias (como sujeito de direito, igualdade jurídica e liberdade). Os socialistas não defendem um Direito Proletário, mas o fim do Direito. Isso e mais em Evgene Pachukanis http://petdireito.ufsc.br/wp-content/uploads/2013/06/PACHUKANIS-Evgene.-Teoria-geral-do-Direito-e-marxismo.pdf
[iii] G1: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/02/13/lucro-dos-maiores-bancos-do-brasil-cresce-18percent-em-2019-e-soma-r-815-bilhoes.ghtml
[iv] Economia UOL: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/03/17/xp-tem-alta-de-90-em-receita-e-lucro-dispara-no-4-tri.htm
[v] Artigo 225 Constituição Federal; Art. 7, XXII Constituição Federal. Também a lei de urgência 13.979/2020 que abona faltas de trabalhadores empregados (formais) em quarentena e situações de isolamento.
[vi] IBGE 2019: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26741-desemprego-cai-para-11-9-na-media-de-2019-informalidade-e-a-maior-em-4-anos
[vii] Microempreendedor individual.
[viii] IBGE 2019: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26741-desemprego-cai-para-11-9-na-media-de-2019-informalidade-e-a-maior-em-4-anos
[viii] Banco Central em Valor Econômico: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/08/05/endividamento-das-familias-e-o-maior-em-3-anos.ghtml
[ix] Artigo 201, II, 2º, Constituição Federal.