Massacre de Guapoy é episódio mais recente em longo histórico de confrontos entre indígenas que aguardam demarcação e fazendeiros em Mato Grosso do Sul. Em meio a expansão agrícola, violência aumentou nos últimos anos.
Nádia Pontes, Deutsche Welle, 1 de julho de 2022.
A cada novo pedido de socorro que chega às lideranças guarani-kaiowá em Mato Grosso do Sul, o medo de mais mortes aumenta. O alerta mais recente partiu do território Kurupi, no município de Naviraí: indígenas dizem ser perseguidos por uma viatura enquanto buscam lenha nas redondezas.
O local fica a cerca de 150 quilômetros de outro ponto de tensão, onde familiares ainda choram a morte do guarani-kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, enterrado em Amambai na última segunda-feira (27/06).
Fernandes integrava o movimento pela retomada do território tradicionalmente ocupado pelos indígenas no estado. Fazia um mês que ele e 30 famílias ocupavam uma dessas áreas, onde atualmente se encontra a fazenda Borda da Mata. Uma ação de despejo, sem mandato judicial e com policiais militares da tropa de choque, vitimou Fernandes, além de deixar pelo menos outros nove indígenas gravemente feridos por armas de fogo e projéteis de borracha.
O caso está sendo chamado por entidades indigenistas e de direitos humanos de Massacre de Guapoy, em referência ao nome do território ancestral ao qual tentam retornar (Guapo'y Mirim-Tujury).
"Conflito é quando os dois lados estão bem armados e lutando de igual pra igual. No nosso caso, é massacre. Porque nossos parentes [indígenas] não têm armamento, não têm fuzil, não têm helicóptero. Nossa arma é nossa reza, nosso cocar, nosso maracá", comenta sobre o cenário Natanael Vilharva Caceres, representante do Movimento Guarani-Kaiowá e historiador.
Questionada pela DW Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul não respondeu às perguntas enviadas até o fechamento desta reportagem.
Terra indígena perdida
Como outros povos indígenas, a história dos guarani-kaiowá envolve expulsão de seus territórios, avanço da fronteira agrícola e décadas de tentativas de retorno às terras em que viviam até o início do século passado.
Considerados um subgrupo dos guarani, eles vivem hoje em Mato Grosso do Sul e em parte do território paraguaio. Antes da chegada dos colonizadores, habitavam uma área de 40 mil quilômetros quadrados na fronteira entre Brasil e Paraguai.
Até a Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, os guarani-kaiowá mantiveram o domínio sobre o território, mas a fixação de soldados na região mudou o panorama. A chegada, por exemplo, da Companhia Matte Larangeira, em 1891, fez com que indígenas fossem usados como mão de obra, o que significou uma "imposição definitiva do contato e dependência", afirma o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Guarani-Kaiowá Guyraroká, documento da Fundação Nacional do Índio (Funai) publicado em 2001.
No fim da década de 1940, a Matte Larangeira perdeu o monopólio, e as fazendas de gado se expandiram. É quando a "terra é efetivamente ocupada e, conforme dizem os kaiowá, 'não tinha mais lugar para o índio'", recupera o relatório.
Expulsos do território tradicional, os guarani-kaiowá foram confinados em oito reservas criadas pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre 1915 e 1928. A área, no entanto, foi drasticamente reduzida: as reservas vão de 20 a 36 km².
"O Estado arrancou os guarani-kaiowá do território tradicional e criou essas reservas artificiais, embora algumas delas sejam pedaços diminuídos de territórios ancestrais. E foi levando indígenas de muitas regiões, causando um caos, misturando lideranças, confinando gente, fazendo com que eles não conseguissem mais viver a cultura deles”, afirma Matias Benno Rempel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Superlotação em reservas
Nas reservas, a superlotação é um problema para o modo de vida indígena. Em Dourados, por exemplo, são 18 mil pessoas em 30 km². Em Amambai, onde ocorreu o último episódio com morte, são quase 10 mil indígenas em 24 km². Estima-se que 40 mil guarani-kaiowá vivam somente em Mato Grosso do Sul.
"São áreas pequenas, que não comportam nem a metade da população indígena", diz Caceres. "Precisamos dos nossos territórios para nossa sobrevivência física e cultural de modo digno. É o nosso tekoha", complementa, referindo-se ao termo que significa "o lugar onde podemos ser nós mesmos".
Para o Ministério Público Federal (MPF), a densidade demográfica é comparável a um verdadeiro confinamento humano. "Em espaços tão diminutos, é impossível a reprodução da vida social, econômica e cultural", afirma o órgão em ações que cobram a demarcação das terras no estado.
Sem espaço nas reservas, famílias acampam há duas décadas em barracões de lona às margens da rodovia BR-163. "Outras famílias ficam nos 'fundos' dos nossos territórios sagrados, mas não ocupam. São fazendas onde têm monocultura de cana, soja ou pasto", explica Caceres.
Na beira da rodovia, eles não têm água, enfrentam períodos de fome, correm risco de atropelamento. "Crianças morrem por motivos banais, por falta de atendimento", complementa Rempel.
Em 2007, o MPF firmou com a Funai um termo de ajustamento de conduta para que o órgão cumprisse as etapas para delimitação das terras indígenas, que guiariam a demarcação das áreas de ocupação tradicional. Como nada ocorreu conforme o acordado, o MPF ajuizou uma ação em 2010 cobrando a execução. Desde então, nenhum dos procedimentos de demarcação foi concluído.
Expansão agrícola e alta da violência
Segundo o monitoramento da violência feito pelo Cimi, a situação em Mato Grosso do Sul piorou nos últimos anos. "Isso tem muito a ver com a bancada ruralista no Congresso", comenta Rempel.
No estado, a área de agricultura saltou de 2,4 milhões de hectares em 2015 para 3,8 milhões em 2021, segundo dados do governo estadual. A soja é a principal cultura e commodity de exportação, seguida pela celulose.
Forças particulares que atuam nas fazendas estariam por trás da investida contra indígenas. "Os guarani-kaiowá vivem um genocídio estrutural. Há uma constante de ataques contra essas comunidades, de falta de território, abandono completo pelo Estado. Há forças de segurança agindo em propriedades privadas envolvidas", afirma Rempel.
Só em 2015 e 2016, o Cimi testemunhou 33 ataques paramilitares em comunidades indígenas. Em agosto de 2015, o guarani-kaiowá Simião Vilhalva foi morto com um tiro na cabeça numa área retomada do tekoha no município de Antônio João. No ano seguinte, Clodiodi Rodrigues de Souza, agente de saúde indígena, foi morto quando cerca de 40 caminhonetes, três pás carregadeiras e mais de cem pessoas – muitas encapuzadas, uniformizadas e armadas – atacaram os guarani-kaiowá numa região de retomada.
Esse último caso, que ficou conhecido como o Massacre de Caarapó, começou a ser julgado em janeiro deste ano, após o MPF apresentar denúncia contra cinco fazendeiros, ainda em 2016.
A retomada mais recente, no tekoha Guapoy, aconteceu depois da morte do guarani-kaiowá Alex Lopes, de 17 anos. "Ele estava catando lenha quando foi alvejado com mais de cinco tiros. Morreu na hora. Isso revoltou muito os parentes. Eles decidiram partir para a retomada, já que estamos aguardando uma decisão judicial há anos", diz Caceres.
Procurada, a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul não comentou o cenário de confrontos até o fechamento desta reportagem.
Investigação e memória
O confronto que vitimou o guarani-kaiowá Vitor Fernandes neste mês mobiliza a Defensoria Pública da União e o MPF. "A situação é bastante grave, de violação de direitos humanos. O que a gente verificou foi uma violência desmedida contra crianças, jovens e idosos, além de uma tentativa de criminalização das vítima"”, disse à DW Brasil Daniele Osório, defensora pública federal que acompanha o caso em Mato Grosso do Sul.
Segundo Osório, o número de pessoas feridas é maior do que o identificado pela polícia. "Eles estão feridos nas comunidades, não querem se identificar porque têm medo da criminalização", explica, mencionando que o caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Após o enterro de Fernandes, que ocorreu no local onde ele foi morto, após um acordo assinado com a fazenda Borda da Mata, os indígenas decidiram voltar para a área de onde haviam sido expulsos. Apesar do medo, eles afirmam que não vão deixar o local.
"A memória dos povos indígenas está presente nas florestas, nos rios, que fazem parte da nossa vivência, do nosso local de viver. Queremos que nossa história não seja apagada", diz Caceres, que acabou de defender um mestrado sobre as tradições orais de seu povo na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).