Surge o primeiro levantamento completo das invasões de garimpeiros e madeireiros em áreas de povos não contatados na Amazônia. Atividades ampliam o vetor da covid e políticas de Bolsonaro estrangulam territórios. Alerta é máximo para Yanomamis
Maria Fernanda Ribeiro, Repórter Brasil, 17 de novembro de 2021
O assassinato de dois indígenas isolados por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, divulgado na semana passada pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), é uma tragédia que vinha sendo anunciada de vários lados.
Meses antes, Davi Kopenawa Yanomami já alertava sobre a situação dos Moxihatëtëma. “Estou preocupado com os parentes isolados porque o perigo está chegando para eles. Estamos cercados pelo garimpo, e tem garimpeiro que gosta de matar índio”, disse o líder, reconhecido mundialmente como um grande defensor na luta pelos direitos da Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima. “Eles são meus vizinhos, meus irmãos e estamos lutando para o garimpeiro não chegar até eles.”
Crédito: Carolina Passos/Repórter Brasil
Outro aviso do risco que corriam estava estampado com letras vermelhas no ranking Alerta Povos Indígenas Isolados Covid-19, do Opi (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato). A ferramenta é como um termômetro que mede o grau das ameaças – agravadas com a pandemia – contra os isolados. No primeiro lugar da lista, está justamente a Serra da Estrutura, área da TI Yanomami onde vivem os Moxihatëtëma. O principal agravante? Garimpo.
Mas os garimpeiros são apenas uma das ameaças contra os isolados. O ranking do Opi e relatos desesperados de lideranças indígenas alertam para uma “tempestade perfeita” que põe em risco a sobrevivência desses povos. Primeiro, veio o desmonte das políticas sociambientais promovido por Jair Bolsonaro, que enfraqueceu a fiscalização dos territórios. Veio também o discurso anti-indígena do próprio presidente, que deu um salvo-conduto aos invasores. Em seguida, chegou a pandemia, que dificultou ainda mais a proteção das terras indígenas, deixando esses povos cada vez menos isolados.
Assim, as porteiras – que já estavam sendo abertas para garimpeiros, grileiros, madeireiros, missionários e até traficantes – foram escancaradas para a “boiada” passar. Caso do desmatamento em TIs com isolados, que cresceu quase 1.500% durante o governo atual, se comparado à década anterior. Ou seja, entre 2009 a 2018, a média registrada foi de 582 hectares por ano, marca que chegou a 9.271 hectares durante a gestão Bolsonaro, segundo cálculo do Instituto Socioambiental (ISA).
Vetores da destruição – e do vírus
Durante a atual “tempestade”, o desmatamento e o garimpo vão além de destruir os territórios dos povos originários, atuando também como vetores da covid-19. Ambas as atividades foram responsáveis por abrir caminho para que o vírus contaminasse ao menos 22% dos indígenas infectados, segundo uma pesquisa com dados até agosto do ano passado, do economista e especialista em políticas públicas Humberto Laudares.
“São justamente os indígenas, os maiores protetores da floresta, quem mais sofrem com essa dupla pandemia sanitária e ambiental. Infelizmente, as políticas vindas do governo estão a favor das pandemias e contra os indígenas”, afirma Laudares.
Para Angela Kaxuyana, liderança do movimento indígena da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), é desesperador saber que a vida dos isolados, que dependem de um território preservado, está em risco: “Quando tem queimada ou desmatamento, eles são os primeiros que sofrem”.
“Sempre existiram ataques, invasões e tentativas de desaparecer com os povos isolados. Mas antes desse governo muito declarado contra os indígenas, as pessoas agiam de uma forma mais tímida, mais camuflada”, afirma Kaxuyana. “Só que hoje o que intensifica essa ameaça é que você tem o presidente declarando que tem como agenda oficial esse desmonte [de políticas pró-indígenas], além da pandemia, claro.”
Para ela, a Covid segue sendo uma ameaça aos indígenas em geral, mas especialmente aos isolados. “Se algum for contaminado, teria um genocídio em dois ou três dias”.
Os riscos para essas populações são maiores por serem mais vulneráveis a doenças infectocontagiosas – uma simples gripe pode matar e deixar povos inteiros à beira da extinção. Foi o que aconteceu com os Nambikwara. Após o contato com não-indígenas, 90% da população foi morta por epidemias como as de sarampo e gripe. É justamente por contatos catastróficos como esses que alguns povos se isolaram.
Há atualmente 114 registros da presença de isolados na Amazônia Legal, sendo que são 28 povos isolados oficialmente confirmados, segundo a Funai. Confira abaixo como a pandemia e as decisões políticas da atual gestão federal vêm estrangulando os territórios, a sobrevivência e o modo de vida de alguns desses povos que entraram no ranking de alerta do OPI. Para se chegar ao nível de alerta, o levantamento considerou pontos como casos/mortes por covid, risco de invasões e planos de contingência caso haja contato.
TI Araribóia – ‘Perdemos o controle; nossa terra está toda invadida’
Na TI Yanomami, cujo risco de alerta é o mais grave, é o garimpo a principal ameaça, acompanhada de uma situação epidemiológica já fragilizada antes da pandemia, com problemas como desnutrição infantil severa. São mais de 2100 casos de covid e 22 mortos pelo vírus, de acordo com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
Durante uma saída para caçar, Flay Guajajara se deparou com com um indígena isolado Awá Guajá, povo com quem compartilha a A TI Araribóia (Foto: Flay Guajajara/Mídia Índia)
No segundo lugar no ranking está a TI Araribóia, no Maranhão, onde os Guajajara dividem o território com os isolados Awá Guajá, que frequentam as mesmas regiões alvos de invasões de madeireiros ilegais. A área foi a que mais sofreu com o desmatamento ilegal, segundo o monitoramento do Sirad-Isolados de agosto. Foi quando os invasores derrubaram uma área de mata nativa equivalente a 85 campos de futebol – um aumento de 78% no desmatamento em relação a agosto de 2020. Focos de queimadas também aumentaram 100% este ano.
Edivan Guajajara conta que, em 2019, o primo Flay tinha saído para caçar quando se deparou pela primeira vez com os Awá (retratados nesse documentário). “Nossos anciãos diziam que havia outro povo convivendo no mesmo território, mas a gente não acreditava porque nunca tinha visto. Foi quando o Flay saiu para caçar e viu”.
As invasões cresceram nos últimos anos e os isolados têm de fugir diariamente da exploração ilegal de madeira, conforme relatam Edivan e Flay. Ambos são do grupo Guardiões da Floresta, uma organização de vigilantes indígenas voluntários que atuam na proteção do território – o que seria uma função do governo. Para eles, realizar o monitoramento em busca de vestígios de invasão é arriscar a própria vida. A morte de Paulo Paulino Guajajara, em 2019, também um guardião, é um exemplo. Ele sofreu uma emboscada e foi morto a tiros por invasores dentro da TI Arariboia.
“Perdemos o controle e nossa terra está toda invadida por madeireiros. Mas, continuaremos a proteger o nosso território e faremos o máximo possível para que nossos parentes isolados não tenham contato com a nossa sociedade porque nesse tempo de pandemia é muito arriscado para eles”, afirma Edivan.
Ele conta ainda que durante o período crítico da pandemia, os Guajajara evitaram ir caçar a longas distâncias para que não houvesse nenhuma possibilidade de contato com os Awá. No entanto, nessa redução de perímetro, o monitoramento foi prejudicado e o efeito colateral veio em forma de mais invasão. “Os madeireiros sabiam que a gente não estava mais fazendo monitoramento no entorno do território e aproveitaram para praticar a invasão.”
TI Kaxinawá – ‘Estamos preocupados com nossos parentes isolados’
Empatado no segundo lugar com a Araribóia no ranking de alerta do Opi, e também marcada em vermelho, está a Terra Indígena Kaxinawá, no Acre, onde vivem os Huni Kuin e indígenas isolados (de etnia desconhecida).
Era raro para o povo Huni Kuin encontrar pegadas, barreiras e tocaias deixadas na mata pelos isolados. Agora, eles encontram esses vestígios com mais frequência e até ouvem seus assobios e ruídos imitando animais.
Uma prova de como os “parentes” em isolamento vêm se aproximando – inclusive fizeram contato no ano passado. Mas não é por vontade própria, mas sim porque a área onde conseguiam viver afastados está sendo estrangulada por queimadas e abertura de estradas, o que os obriga a chegar mais perto dos Huni Kuin, talvez para caçar, ter acesso a ferramentas ou até para pedir ajuda.
“Compartilhamos nossa terra com os isolados há várias gerações e estamos preocupados, pois passamos por uma situação delicada com as queimadas, a abertura de estradas e a pandemia”, afirma Ame Hunikui, líder espiritual do grupo, que é responsável pelo monitoramento e proteção dos isolados. Os parentes cabeludos, como ele se refere aos isolados, estão cada vez mais próximos.
“Antes, eles andavam longe da aldeia e só se aproximavam na época da seca. Agora andam por perto também no inverno, que é quando chove muito. Mudou a dinâmica do contato. Eles são altos, fortes e o chefe deles fica todo pintado de jenipapo, e os demais membros são pintados de urucum. Todos nus.”
TI Piripkura – O risco da extinção de um povo
Sob o risco de serem mortos e, assim, vermos a extinção de um povo. Essa é a situação dos isolados Piripkura, que habitam uma terra indígena no Mato Grosso, e tentam se refugiar na floresta nos poucos espaços que ainda restam longe dos grileiros e ruralistas. Sob desmatamento recorde em 2021, a Terra Indígena Piripkura, onde vivem Tamandua e Baita – dois remanescentes de um grupo quase todo dizimado por invasores – ocupa o quarto lugar no ranking de alerta do Opi. Uma outra sobrevivente Piripkura, Rita, atualmente vive com os Karipuna, em Rondônia.
Para agravar a situação, os Piripkura correm o risco de perder o direito ao território onde vivem. Eles estão legalmente protegidos apenas até março de 2022, quando vence uma portaria de restrição de uso da terra, que foi renovada por apenas seis meses, o que não é suficiente para a proteção do território. Caso a Funai não renove esse instrumento, é como se a invasão ao território deles ficasse liberada legalmente.
Os Piripkura também correm o risco de perder o direito ao território por conta de uma portaria, como retratado na campanha Isolados ou Dizimados.
Tamandua e Baita são os dois únicos remanescentes dos Piripkura vivendo da TI que está entre as principais preocupações de grupos indígenas, especialmente por conta de uma portaria que, caso não seja renovada, cria um cenário do fim de um povo (Foto: Bruno Jorge/Zeza Filmes/Divulgação)
Entre outras atribuições, essas portarias vedam a exploração de recursos naturais em TIs, a expansão das propriedades rurais já existentes e o surgimento de novos latifúndios. O fato de o governo ter colocado essa proteção na berlinda amplia o risco os Piripkura (cuja a história é retratada neste documentário) e outros isolados e preocupa organizações indígenas como o próprio Opi e a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Ambos lançaram a campanha Isolados ou Dizimados para alertar sobre a urgência dessa questão.
As invasões à TI Piripkura aumentaram de maneira considerável nos últimos dois anos, avançando até 10 quilômetros para dentro do território, chegando muito perto da área utilizada pelos já acuados Baita e Tamanduá como refúgio. Esse panorama é feito por Elias Bigio, especialista em povos indígenas isolados, ex-coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato na Funai.
De acordo com o sistema de monitoramento do ISA, foi detectado no período entre agosto de 2020 e abril de 2021 um desmatamento de 2.132 hectares, um dos maiores dentro de territórios com presença de povos indígenas isolados.
TI Vale do Javari – ‘Um contexto de genocídio’
A presença de balsas de garimpo na região do rio Curuena da TI Vale do Javari é um dos motivos que faz o território estar no quinto lugar do ranking do OPI.
Beto Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), afirma que além do garimpo, há em outras áreas do território a presença de grandes quadrilhas de pescadores e caçadores ilegais, que frequentam os mesmos lugares por onde circulam os isolados e podem levar o vírus. “Se os isolados se contaminarem, eles vão morrer na aldeia. Então quando a gente fala em genocídio e o governo fala que é alarde demais, é nesse contexto.”
Foi justamente para evitar tragédias como essa que a plataforma do Opi foi criada, explica Fabrício Amorim, membro do observatório. Segundo ele, além de monitorar o avanço do coronavírus nas terras indígenas com isolados, a ideia da ferramenta era subsidiar estratégias para a proteção desses povos, principalmente com o surgimento da ADPF 709 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).
A ação foi apresentada em julho de 2020 pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) para combater a omissão do governo federal em termos de pandemia e cobrar providências. Entre as medidas exigidas, estava a criação de barreiras sanitárias em 30 territórios onde vivem indígenas em isolamento ou de recente contato. No entanto, os resultados foram pífios. Mesmo em TIs que receberam alerta vermelho do Opi, o governo não providenciou barreiras – em algumas, os próprios indígenas assumiram essa função.
Durante a CPI, foi apresentado um dossiê mostrando como o governo Bolsonaro praticou o crime de genocídio indígena na pandemia, que acabou sendo ignorado pela comissão.A Funai foi procurada, mas não respondeu às perguntas da reportagem.
Colaboraram Edivan e Flay Guajajara. Essa reportagem foi produzida com o apoio do Pulitzer Center em parceria com o Rainforest Journalism Fund.