Isabel Lessa e Gabriel Souza Bastos, Rio de Janeiro, 26 de Setembro de 2020
“Existe um quadro de Klee intitulado ‘Angelus Novus’. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”
(Benjamin, Teses Sobre o Conceito de História, Tese IX).
Em 26 de Setembro de 1940, há 80 anos, Walter Benajmin, após anos de exílio e fuga da repressão nazista, resolveu tirar a própria vida frente à possibilidade de se ver mais uma vez capturado. Judeu alemão, Benjamin não viu os piores anos da II Guerra Mundial e dos campos de repressão nazistas, mas sobreviveu à pandemia da Gripe Espanhola, à 1ª Guerra Mundial (fugindo do alistamento), à perseguição antisemita, mas preferiu tirar a própria vida ao se ver derrotado pelo fascismo. Um vivência que se deu em uma Europa devastada onde os ‘escombros dos mortos’ era uma realidade palpável ao ponto de levá-lo a escrever que esta era a normalidade da história da humanidade e que o ‘verdadeiro estado de exceção’ seria a inauguração de um novo tempo histórico, onde as vítimas dos séculos de opressão seriam rememoradas e redimidas pelo processo revolucionário, que restituiria à humanidade a dimensão de uma ‘experiência’ de vida plena.
Benjamin legou para as gerações que o sucederam uma preocupação essencial: traduzir as centelhas de rupturas revolucionárias do passado em uma força emancipadora no presente, capaz de interromper a continuidade de séculos de opressão. De Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht à Marielle Franco e Anderson Silva; dos ‘mártires de Chicago’ aos sem-terra de Eldorado dos Carajás; de Ernesto Che Guevara à Margarida Maria Alves - e outros incontáveis -, Walter Benjamin faz um chamado a se reescrever a história à contrapelo - isto é, ir contra a corrente das história oficial, opondo à esta as tradições dos oprimidos - capaz de redimir cada vítima do passado para a emancipação humana.
São muitas as aproximações possíveis que poderíamos fazer entre o tempo vivido por Benjamin e o nosso: um tempo regido por uma experiência de intenso luto coletivo, crise econômica, crise social, ascenção do fascismo e a efervescência política da produção artística. Não à toa, o pensamento de Benjamin parece iluminar uma série de elementos do nosso tempo presente, não apenas do ponto de vista da teoria crítica, mas também do ponto de vista da caracterização e tática política contra o fascismo.
Benjamin, acima de tudo, era um ferrenho crítico do progressismo e da mentalidade burguesa que, para ele, estava arraigada a tradições políticas da esquerda, como a socialdemocracia alemã e o stalinismo. Para ele, a crença de que o ‘progresso’ e o avanço tecnológico levariam a formas superiores de relação social e, eventualmente, à revolução socialista, leva uns ao imobilismo e outros a cumplicidade de sua própria derrota.
A crença na ideia de ‘progresso’ os levaria a analisar o fascismo como um fenômeno que representa uma ‘regressão’ histórica, uma volta a um regime totalitário do passado, manifestações culturais arcaicas, incompatível com os avanços da técnica e do progresso. O progresso científico, industrial e técnico não é incompatível com a barbárie social e política, ao contrário, são os próprios traços de uma sociedade tecnocrática e fascista. A incorporação de cada vez mais tecnologias às relações de trabalho humanas e à exploração da natureza não levam à emancipação humana, mas a formas superiores de alienação do trabalho (como podemos ver hoje em dia com a uberização) e desagregação dos laços sociais, os quais são constituintes a uma narrativa das experiências vividas como memória compartilhada em comunidade.
Assim, Benjamin critica a visão cientificista e evolucionista que justifica a exploração da natureza como necessária ao progresso humano, como se o progresso da técnica por si só fosse capaz de emancipar a humanidade. Ao contrário, ele defende uma nova forma de trabalho, um trabalho apaixonado, que levaria à extinção de toda forma de exploração de ambos (humanidade e natureza) e afirma: “O trabalho não seria mais orientado para a produção de valores, mas para uma natureza aperfeiçoada.”
A compreensão de que a história está em aberto, originalmente formulada para refutar tanto o entusiasmo burguês da noção de ‘progresso’ (e sua forma socialdemocrata de acúmulo de pequenas vitórias da classe trabalhadora), quanto uma ilusão essencialista do marxismo ortodoxo de inevitabilidade da revolução, é de uma atualidade aterradora. Se por um lado, os limites do ‘progresso’ capitalista se mostram cada vez mais próximos de um colapso ambiental, social, econômico e político da civilização capitalista globalizada, por outro, experiências recentes de governos progressistas na América Latina se demonstraram incapazes de romper com essa mesma noção de ‘progresso’.
A obra de Benjamin traz uma importante contribuição para as revolucionárias e revolucionários de hoje. A história não se faz por si só e a redenção/revolução não está escrita nas estrelas, em um sentido “natural” da história. Pelo contrário, a história deixada à própria sorte é a expressão máxima do “cortejo triunfal” das classes dominantes, produzindo novos tipos de barbárie. O ‘pessimismo’ revolucionário de Benjamin se opõe ao fatalismo melancólico da ideologia hegemônica neoliberal, onde supostamente não somos agentes históricos transformadores e não nos resta nada mais além de consumir e sofrer.
Pelo contrário, Walter Benjamin convoca a nossa geração, assim como as gerações futuras, a organizar o pessimismo, compreendermos que somente pelas nossas próprias mãos o curso da história da barbárie pode ser interrompido. A história está aberta, nos ensina Benjamin. Qualquer período da história tem seus potenciais revolucionários que podem ser manejados pela agência ativa das lutadoras e lutadores que desejem redimir o passado de nossos mártires e frear o curso bárbaro e opressivo da história das classes dominantes.
A vitória dos inimigos atuais ameaça também nossos mortos, seja pela falsificação ou pelo esquecimento. O passado, assim, não é um acúmulo de conquistas, mas uma série de derrotas que fazem do triunfo do inimigo um ato constante: “o inimigo ainda não acabou de triunfar”. Nesse sentido, a consciência sobre o perigo seria, para Benjamin, uma sensação fundamental para aguçar a sensibilidade pelas derrotas anteriores, estimulando o interesse e um olhar crítico ao passado. Mas o pessimismo realista de Benjamin não leva de forma alguma a um derrotismo apassivador da luta de classes, pelo contrário, ele nos leva ao inconformismo revolucionário, ele nos leva a necessidade de organização. Benjamin nos liga, assim, a um compromisso histórico com a revolução não apenas pelas possibilidades de futuro, mas pela redenção do passado.
Entender a história em aberto é, segundo Benjamin afirma, compreender que todo instante carrega uma chance revolucionária, entretanto deve ser vista “como chance de uma solução inteiramente nova em face de uma tarefa inteiramente nova”. Mas essa chance só é confirmada tanto pela situação política quanto pela ação política do sujeito revolucionário, a práxis revolucionária.
Nos interessa observar que a crítica radical à racionalidade progressista (e aos seus representantes também no campo do marxismo) de Benjamin o aproximou do movimento surrealista, cuja principal figura, Andre Breton, anos mais tarde estaria lançando o “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente” com ninguém mais ninguém menos que Trotsky.
Nos permitamos deixar levar pelo exercício imaginativo do que seria a aproximação entre esses dois grandes críticos da socialdemocracia e do stalinismo. Ambos carregavam nos seus olhares sobre o mundo a noção da potência histórica e, portanto, revolucionária, de cada instante vivido. A história não está predeterminada, nem para a nossa vitória nem para a nossa derrota, trata-se de mobilizar em cada momento do tempo de agora a carga explosiva que a memória de luta e resistência dos séculos de gerações oprimidas nos legaram e da responsabilidade histórica que cada geração tem em redimir suas vidas e restituir a potencialidade da experiência de vida plena para o conjunto, não só da humanidade, mas de todos os seres vivos.
Nós, revolucionárias e revolucionários, não podemos mais seguir reproduzindo a ilusão progressista de que a possibilidade da nossa vitória só está em um tempo futuro, para o qual nos faltam ainda acumular forças e condições. Dessa forma, seremos cúmplices da nossa própria derrota e, mais uma vez, fracassaremos no combate às forças fascistas. É urgente assumirmos a revolução ecossocialista como tarefa da nossa geração. É preciso, como disse Benjamin a respeito dos surrealistas, que troquemos “a mera gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos, cada minuto”. Que saibamos estar despertos a todo instante!
EM MEMÓRIA DE WALTER BENJAMIN
* Agradecemos às reflexões de Michel Löwy, que nos conduziram na leitura de Benjamin através de seu estudo minucioso do pensador, em especial em Walter Benjamin: Aviso de Incêndio - uma leitura das “Teses Sobre o Conceito de História”, editado pela Boitempo.
Colagem por Cesar Fernandes, da Insurgência Paraná/Distrito Federal.