Depois de passar a semana em articulações em Brasília e prometer conversa com movimentos sociais, petista impõe derrota tática ao ‘centro’ ao se reunir com tucano
Flávia Marreiro, El País Brasil, 21 de maio de 2021
O flerte estava na praça há algumas semanas. Desde que voltou ao tabuleiro político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de dizer que estava aberto a conversar com todos ―sugeriu incluir quem apoiou o impeachment de Dilma Rousseff― e sinalizou, inclusive ao mercado financeiro, sua disposição para ajustar posições do PT mais ao centro, se necessário. Fez exitoso giro por Brasília e já havia anunciado que na semana que vem a agenda seria com os movimentos sociais. Do seu lado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o mais importante ex-mandatário da redemocratização ao lado do próprio petista, também resolveu fazer um gesto. Depois da campanha de 2018 em que evitou apoiar o petista Fernando Haddad contra Jair Bolsonaro, mesmo dizendo que o ultradireitista era uma ameaça à democracia, o tucano disse, em uma entrevista à TV, que apoiaria Lula contra o atual ocupante do Planalto em um eventual segundo turno no ano que vem. Foi a senha para quebrar as últimas resistências.
O resultado apareceu nesta sexta-feira, quando as redes sociais de Lula divulgaram uma foto simbólica: o petista e FHC, lado a lado, e de máscara, como manda o protocolo pandêmico. A mensagem informa que os dois se reuniram em um almoço “com muita democracia no cardápio” a convite de Nelson Jobim. O anfitrião é dono de um currículo imbatível para fazer a ponte: foi ministro da Defesa de Lula, mas ministro da Justiça de FHC, que também o indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF). Jobim é um conhecedor dos meandros políticos e, não menos importante, dos humores jurídicos das mais altas cortes no país, um fator essencial na conjuntura brasileira. “Os ex-presidentes tiveram uma longa conversa sobre o Brasil, sobre a democracia e o descaso do Governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia”, diz o texto.
A postagem correu como pólvora no dia, ainda mais com um público órfão da principal atração política do momento, a CPI da Pandemia que encurrala, pelo menos midiaticamente, o Governo Bolsonaro. “Nossas diferenças são muito menores do que o nosso dever histórico de derrotar Bolsonaro”, escreveu o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), e um dos atraídos para renovada galáxia de Lula. “É hora de dialogar e construir consensos, porque o que está em jogo é a democracia e a vida dos brasileiros. Parabéns a Lula e FHC pelo gesto de grandeza e responsabilidade com o país”, seguiu. A interpretação de Freixo é a mais óbvia: a aproximação pode sanar um problema de todos os ensaios de “frente ampla” contra Bolsonaro. Não havia os dois líderes em nenhum dos movimentos que surgiram até agora.
FHC, no entanto, teve que lidar com um efeito colateral do seu gesto em seu próprio partido, o fraturado PSDB. A sexta-feira foi de reação dos aspirantes a candidato tucano às presidenciais do ano que vem ―no momento, o governador de São Paulo, João Doria, e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O mandatário gaúcho foi explícito: “Conversar com todos é premissa de quem deseja o fim do ‘nós contra eles’. Mas eu não aceito que o Brasil ande pra trás. Confio que Fernando Henrique Cardoso também não”. Ato seguido, o ex-presidente tucano teve que ir às redes se explicar: “PSDB deve lançar candidato próprio e o apoiarei”. Se a sigla, que teve a pior performance em uma presidencial em 2018 com Geraldo Alckmin, não avançar para o mata-mata eleitoral, aí FHC aperta 13 na urna, ele insistiu.
Mas o desconforto já estava no ar. A chateação pública dos tucanos explicita um problema evidente desde que o ex-presidente Lula recuperou os direitos políticos entre março e abril, quando o STF deu uma guinada em seu posicionamento e anulou as condenações do petista no âmbito da Operação Lava Jato. Lula começa a demonstrar fortaleza nas pesquisas (desde a liderança do petista em um eventual segundo turno, como no levantamento do Atlas, até a ampla dianteira que aparece nos últimos dados do Datafolha). Com o ex-presidente de novo no páreo e com Bolsonaro ainda demonstrando notável resiliência entre sua base, ficou reduzido o espaço para novos nome de “centro” —entre aspas, porque a maioria são nomes de direita, numa posição relativa ao extremo do atual mandatário.
Nas atuais pesquisas, tomadas com um grão de sal pela distância do pleito, em outubro de 2022, nenhum nome desse “centro” ou nem-nem (nem Lula nem Bolsonaro) desponta. Como mostrou a pesquisa Atlas para o EL PAÍS, o governador Doria não decola nem mesmo no Estado que governa e apesar de seu bem-sucedido papel na campanha de vacinação contra a covid-19. Andrei Roman, CEO do Atlas, vê em Leite, no entanto, um potencial como efeito surpresa, dado que não é conhecido no país e não tem rejeição.
Outro nome à esquerda, Ciro Gomes (PDT), que segue em atrito aberto com Lula e o PT, tampouco decola e busca um rebrading se apresentando como “Joe Biden brasileiro”, apesar de ser antípoda do presidente norte-americano em termos de temperamento. A aposta terceira via com com Luciano Huck fica cada vez mais distante com o apresentador de TV prestes a ocupar o horário nobre da TV Globo no domingo ―aposentando de vez a ideia de candidatura.na
É neste contexto que a eleição presidencial, até o momento, se configura como batalha das rejeições. Quem é maior: o antipetismo, como em 2018, ou o antibolsonarismo? Neste embate, a foto desta sexta-feira de Lula e FHC é um trunfo do petista. Com a mudança em sua conduta, FHC traça uma nova linha e dinamita a falsa teoria dos dois demônios que abraçou. Pela democracia no cardápio, ele fica com Lula.