Os encontros puseram em relevo a centralidade das estratégias anticapitalistas, do ecofeminismo e dos empregos para o clima
João Garcia Rodrigues, Esquerda.net, 16 de fevereiro de 2022
Para as ativistas que puderam ir a Lisboa, o evento desdobrou-se em seis sessões temáticas e três reuniões plenárias. Ali os debates centraram-se nas estratégias para a transformação do sistema capitalista, na importância das políticas ecofeministas para a transição climática, na organização do movimento juvenil e no papel dos sindicatos no movimento ecossocialista e nos empregos para o clima. Além de debates teóricos houve sessões dedicadas a táticas e iniciativas em curso para enfrentar o capitalismo onde se partilharam experiências de ativistas nos movimentos por justiça climática do Norte ao Sul Global.
Apesar da importância de cada um dos temas debatidos nos Encontros, deixo aqui algumas impressões sobre os debates que acompanhei mais de perto: estratégias anticapitalistas, políticas ecofeministas e papel dos sindicatos nos empregos para o clima. São três temas particularmente relevantes para entender os tempos de crise ecossocial em que vivemos e agir sobre eles.
Estratégias para superar o capitalismo
Inspiradas em estratégias anticapitalistas identificadas pelo sociólogo Erik Olin Wright, o debate sobre a superação do capitalismo dividiu as ativistas em três campos: o das alternativas criadas dentro do sistema (reformismo); o das alternativas construídas fora do sistema (escapismo); e o das alternativas geradoras de rutura e descontinuidade no sistema (estratégia revolucionária). O debate pautou-se pela discussão dos riscos, vantagens e complementaridades entre as três estratégias.
O reformismo foi considerado passível de ser capturado pelo sistema (capitalista) e de não ir à raiz do problema, podendo resultar em apatia social e criar a perceção de que a mudança é impossível. As alternativas escapistas foram tidas como sendo suscetíveis de ser moralistas e de não ter a escala necessária para responder à injustiça social e climática, falhando no confronto sistémico com o poder. Por sua vez, a estratégia revolucionária foi caracterizada como sendo originadora de grandes incertezas sobre o momento pós-rutura e podendo ter a ela associada a ideia de que os fins justificam os meios. Além disso, acarreta o risco de transformar a esperança de emancipação em desilusão, caso a alternativa não encerre uma democracia plena.
Apesar dos riscos, cada estratégia tem as suas vantagens. Para as participantes, o reformismo pode ajudar a legitimar e a tornar populares as críticas ao capitalismo ao conseguir avanços nos direitos sociais, na sustentabilidade ambiental e na vida das classes populares, combatendo os privilégios das classes dominantes e garantido, por essa via, maiorias em torno de forças políticas ecossocialistas. Os pequenos espaços coletivos criados fora do sistema, as alternativas escapistas, podem ser úteis para a organização de ações de contestação e para o desenvolvimento de experiências inspiradoras para futuros alternativos ao capitalismo, podendo motivar mudanças para sociedades mais justas e que prosperam dentro dos limites biofísicos do planeta. Mas é a estratégia revolucionária aquela que encerra o maior potencial de transformação por ir à raiz dos problemas e das contradições do sistema capitalista, buscando a rutura e propondo alternativas transformadoras. No final do debate concluiu-se que as diferentes estratégias se complementam e quando aplicadas de modo concertado podem propiciar maiorias sociais para a mudança.
A centralidade das políticas ecofeministas
Este debate fez-se em torno da necessidade de munir o sindicalismo de perspetivas ecofeministas. A ideia é garantir e reforçar direitos das trabalhadoras cujo trabalho reprodutivo sustenta a sociedade e a vida, confrontado, ao mesmo tempo, a noção capitalista de trabalho produtivo e a insustentabilidade que dela resulta. Para isso, o sindicalismo deve centrar atenções na área dos cuidados, reivindicando salários dignos para as cuidadoras, lutando pela redução do horário de trabalho e ajudando a criar movimentos cooperativos fortes para a provisão de cuidados para a infância, para a velhice e para pessoas dependentes. Em muitos países, falta criar uma estrutura organizativa sindical plural e aberta a diferentes sensibilidades para conseguirmos avanços neste campo.
Igualmente importante é entender os cuidados de forma ampla, indo além dos que são prestados na área da saúde e de educação e que garantem o bem-estar da comunidade. Neste sentido, perspetivaram-se outras áreas onde o trabalho reprodutivo é basilar, mas invisível. Os sistemas de produção agroalimentar e florestal, a preservação de ecossistemas e a gestão de propriedade comunal carece também de tarefas reprodutivas essenciais para o desenvolvimento da vida humana e para a proteção de equilíbrios ecológicos sem os quais nenhuma sociedade é viável. Alargar as perspetivas sobre os cuidados requer, por isso, políticas que não se restringem à realidade urbana, mas que intervêm também no contexto rural.
Apesar de estarmos ainda longe de consenso social sobre a importância dos cuidados e das conceções ecofeministas do trabalho, a criação pelos Estados de serviços nacionais de cuidados assume um papel central na conquista de direitos ecossociais e na formalização do trabalho de muitas cuidadoras. Esta foi uma ideia central do debate. Um serviço nacional de cuidados ajudaria a retirar o trabalho dos cuidados do âmbito privado, como os que existem em creches, centros de dia e lares particulares, que assenta em grande medida na precariedade laboral, na delapidação de recursos públicos e em custos insuportáveis para as famílias. Este serviço contribuiria também para a diminuição da prevalência dos cuidados no contexto familiar que continua a sobrecarregar as mulheres, desagravando as desigualdades. A instituição de serviços nacionais de cuidados seria um avanço civilizacional e uma peça estruturante de qualquer Estado social.
O papel dos sindicatos nos empregos para o clima
Nesta sessão, o debate centrou-se na necessidade de uma transição ecológica e climática justa. Para isso, as participantes enfatizaram o papel dos sindicatos na mobilização dos trabalhadores para que estes sejam protagonistas da transição e para que encontrem no movimento sindical instrumentos de organização e de reivindicação de direitos numa sociedade rumo à descarbonização. O sindicalismo e as forças de esquerda devem centrar esforços na proteção das pessoas que trabalham em setores produtivos de elevada intensidade material e carbónica, lutando ao lado dos trabalhadores pela criação de alternativas de emprego viáveis e desejáveis em setores descarbonizados. Se não o fizerem, prevalecerá a ameaça de desemprego que a transição pode concretizar.
Descurar esta luta acarreta riscos sérios. As organizações de extrema-direita ganham força ao cavalgar no descontentamento de trabalhadores desprotegidos em processos de extinção de postos de trabalho de setores poluentes. O mesmo acontece com o encarecimento de bens e serviços feitos em nome da transição ecológica e climática e que sobrecarrega as classes populares, servindo de mote para a extrema-direita mostrar a falsa indignação de quem nunca põe em causa os lucros obscenos dos grandes grupos económicos que tantas vezes representa. Por outro lado, a garantia de uma transição justa que protege o emprego e impede a transferência de custos para as pessoas ajuda a refrear as forças reacionárias.
O sindicalismo precisa de se reinventar e assumir um papel propositivo na luta climática. Deve alargar a representação de trabalhadores para além dos setores produtivos tradicionais e do trabalho assalariado, procurando alianças com as forças políticas que participam nos movimentos por direitos para o trabalho reprodutivo e que combatem a informalidade e precariedade laborais. Esta é uma estratégia necessária não só para mobilizar trabalhadores não sindicalizados, mas também para criar espaços de partilha e de solidariedade em torno da transição ecológica e climática. Não haverá transição justa sem a mobilização dos trabalhadores e proteção dos seus direitos.
A quinta edição dos Encontros Ecossocialistas permitiu a articulação de plataformas comuns de ativismo, alargou a rede ecossocialista internacional, densificou debates e possibilitou a partilha de iniciativas que podem lançar as bases para uma sociedade mais justa, mais solidária e mais alinhada com as condições ecológicas e climáticas que permitem a vida no planeta. Não é coisa pouca.
s é pesquisador em sistemas socioecológicos. Ativista do Bloco de Esquerda