A aprovação da Reforma da Previdência, em primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados, é inegavelmente uma grave derrota para a esquerda e os debaixo. Embora a estratégia de privatizar a seguridade social via capitalização não tenha sido aprovada, a reforma que foi possível ao governo e aliados foi um passo adiante fundamental para o reordenamento ultraliberal do Estado Brasileiro e para a reconfiguração das relações capital-trabalho.
Aliás, foi para esse reordenamento que se deu o golpe parlamentar de 2016; foi para isso que governou Temer; e foi para tal que setores do capital deram apoio à eleição de Bolsonaro. A limitação dos gastos públicos por 20 anos (PEC do Teto dos Gastos), a Reforma Trabalhista (ao lado da Lei das Terceirizações) e a Reforma da Previdência constituem o tripé estrutural desse processo.
Por maior que tenha sido a porrada da semana passada e por grandes que já tenham sido os retrocessos sob Bolsonaro, os três anos desde o golpe não destruíram a capacidade de resistência e mobilização popular. Não houve uma derrota capaz de fechar por longo tempo as perspectivas de lutas. Pelo contrário, houve muito rápida retomada de mobilizações massivas depois da eleição do atual governo ultradireitista.
O rechaço aos cortes na Educação gerou manifestações, capitaneadas pela juventude e os trabalhadores do setor, que furaram a bolha dos protestos tradicionais de vanguarda ampla, recolocaram a esquerda com capacidade de disputar o protagonismo das ruas e evidenciaram um crescente desgaste do governo Bolsonaro. (Ainda que o bolsonarismo esteja consolidando uma base de massas expressiva, 30% nas pesquisas significam que são minoritários na sociedade.) A greve geral de junho, embora insuficiente para barrar a reforma da Previdência, não foi um fiasco e mostrou uma ampliação da capilaridade de pautas e setores envolvidos no crescente descontentamento ao governo.
As contradições não resolvidas de uma crise política
É preciso levar em conta também que a Reforma da Previdência dividiu opiniões entre os setores populares. Não é uma reforma rechaçada pela ampla maioria da população, como são os cortes na Educação. É importante lembrar que Bolsonaro foi eleito com o discurso de que seria necessário sacrificar direitos para voltar a ter empregos. E, como sabemos, uma parcela expressiva da própria classe trabalhadora acreditou nessa mensagem. Essa divisão da classe foi um limitador para a mobilização, somado à crescente perda de capacidade de mobilização e burocratização das centrais sindicais – algumas das quais puxaram o tapete da luta contra a reforma.
Apesar da demonstração inequívoca de força do chamado Centrão (que favorece, sim, ao governo Bolsonaro, lhe dá fôlego), a crise política não se encerra com a votação em primeiro turno da Reforma da Previdência. Basta ver a manutenção do tom crítico e troca de farpas entre o governo e Rodrigo Maia. Por incrível que possa parecer, o governo estava “isolado” no parlamento. Vitorioso, mas isolado, pois seria impossível a reforma tramitar, sem a condução, as exigências e tempos pautados pelo bloco majoritário em torno do presidente da Câmara. Se nos serve de algum consolo, a retirada do regime de capitalização do projeto aprovado foi uma expressão que o fundamentalismo da via chilena de Guedes/Bolsonaro não tinha força para se impor no Congresso. (Claro que o mercado financeiro pode voltar a carga com este tema.)
O presidencialismo de coalizão está em crise. O que assistimos, no episódio da Previdência, foi um semiparlamentarismo em ação, com “primeiro ministro” e tudo. É cedo para afirmar que este cenário vai agravar a crise política ou gerar alguma acomodação de interesses em que convivam com relativa harmonia presidente e o “primeiro-ministro” informal. Mas não parece ser muito provável uma coexistência tranquila, visto que conciliação não é da natureza fascista, belicosa e provocadora da facção presidencial. As eleições de 2020, por exemplo, passarão longe de ser um palco de harmonia e unidade no campo da direita, que estará dividido, como mínimo, entre as candidaturas diretas do bolsonarismo e as do “centro” e suas variantes.
Dados a longa estagnação econômica e a falta de perspectivas de uma retomada rápida da geração de empregos, a palavra chave do cenário político será instabilidade. O agravamento da crise econômica e social, associado à retirada de direitos, pode produzir uma ruptura definitiva da maioria do povo com o governo.
Mas de toda forma, seria um erro subestimar a força que esse governo tem e o fato de que esta vitória do capital na reforma previdenciária vai fortalecer uma nova investida de ataques brutais: nova ofensiva sobre as universidades (retirada do regime jurídico de direito público), reforma administrativa, privatizações.
Reflexões para seguir em frente
Do lado da oposição e da resistência, algumas reflexões são necessárias para calibrar os próximos passos.
A derrota é importante, mas não é histórica, definitiva. O lugar privilegiado para a disputa de pautas, ideias e maiorias são as ruas. A oposição parlamentar é importante, foi muito combativa e digna, o PSOL foi linha de frente mais uma vez no enfrentamento, mas a oposição parlamentar é também muito minoritária e frágil. Basta ver os 19 votos vergonhosos a favor da reforma, que vieram das minorias do PSB e PDT, ou a atitude de pelo menos parte dos governadores do PT, que conspiraram em favor da reforma ainda que não assumindo posicionamentos públicos contrários à bancada do partido na Câmara.
É preciso buscar as pautas que tenham maior capacidade de gerar mobilização e capilaridade social. A defesa da Educação, diante das novas ameaças, parece se manter como principal bandeira da resistência. Continua sendo dramática a urgência de constituição de fóruns amplos de frente única, capazes de articular ações, pautas e setores sociais de forma plural e democrática, sem depender do paquidérmico peso das burocracias sindicais.
Começar imediatamente o debate em torno do lugar, da tática e dos objetivos da esquerda nas eleições de 2020 também é imperioso. Haverá um honesto clamor pela unidade da esquerda para derrotar a direita e o bolsonarismo miliciano em particular. Devemos estar abertos a frentes eleitorais amplas, mas sem abrir mão do protagonismo do PSOL, de um corte programático que aponte para mudanças radicais nas cidades e para uma firme oposição aos governos e candidatos de Bolsonaro e do Centrão.
Tão importante quanto as iniciativas mais imediatas é a compreensão de que só a resistência e enfrentamento à direita e à ultradireita, e às medidas da ofensiva do capital, é que vão forjar um novo e estratégico projeto de esquerda, coletivo, socialista e de massas para o Brasil. A caminhada será longa.