O pensamento de Marx inclui uma referência implícita às facetas progressistas do romantismo, mescla de uma revolta sadia contra o surgimento do mundo industrial e de uma nostalgia das épocas passadas da humanidade. Eis a tese central do livro de Michael Löwy e Robert Sayre, que ajuda a reler Marx e o marxismo de um ângulo diferente do “científico” - Revolta e melancolia: O romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995 (reedição pela Boitempo em 2015).
Enzo Traverso, Critique Communiste nº 132, 1993
[Esta resenha, que sistematiza as teses originais e centrais da ambiciosa reinterpretação de Lowy e Sayre do romantismo, foi escrita por ocasião da publicação da edição francesa original, Revolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité. Paris: Payot, 1992.]
Marx romântico
Se os homens perderam a crença num Deus, seu único recurso contra um não-Deus cego da necessidade e do mecanismo, contra uma terrível máquina a vapor mundial que os aprisionam em seu ventre de ferro como um monstruoso touro Phaloris, será com ou sem esperança, a revolta.
Esta passagem de Thomas Carlyle, compilada por Marx em seu caderno de notas em 1845, resume perfeitamente a sensibilidade romântica, com sua rejeição humanista e desesperada da modernidade industrial e seu espírito de revolta contra a sociedade capitalista. Encontramos esta mesma sensibilidade em alguns escritos de Marx onde ele define o “progresso” como um “medonho ídolo pagão” e vê o capitalismo como um sistema que “transforma cada progresso econômico em uma calamidade pública”. São, porém, numerosos também os escritos - antes de tudo, o Manifesto Comunista - nos quais Marx empreende uma verdadeira apologia do capitalismo, que impõe sua dominação nos recantos mais recuados do mundo e realiza um imenso desenvolvimento das forças produtivas. Marx seria, portanto, apenas metade romântico.
Enigma inapreensível
Podemos captar as mesmas contradições em muitos outros pensadores, tanto no século XIX como no século XX. Que dizer de Fichte, Schlegel, Schelling e representantes do primeiro romantismo alemão, que foram inicialmente revolucionários jacobinos e depois apologistas do Estado burocrático prussiano? Como qualificar Walter Rathenau, industrial e banqueiro que procura introduzir a racionalidade econômica na Alemanha e, ao mesmo tempo, escreve um ensaio intitulado A mecanização do mundo (1912), na qual ele manifesta uma profunda nostalgia pela beleza dos produtos do trabalho artesanal e, de uma maneira geral, pelo homem de antes da revolução industrial, que “conhece o ciclo da natureza” e vive num mundo onde “o maravilhoso faz parte da vida cotidiana”? Que dizer de Walter Benjamin, que exalta as potencialidades libertadoras de uma técnica transformada em “chave para a felicidade” e não mais reduzida a um “fetiche da decadência”, mas lamentando ao mesmo tempo a época na qual os homens podiam ainda viver a “experiência cósmica” de uma simbiose total com a natureza? Um último exemplo: no começo do século, na “Ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber celebrava a marcha triunfal da racionalidade do Ocidente, mas seus últimos escritos de 1919 sobre a ciência e a política como profissão, corretamente considerados como seu testamento intelectual, concluíam com uma nota sombria e pessimista: “Não é a florada do verão que nos espera, mas antes de tudo uma noite polar, glacial e rude”. Exatamente oposto era, em troca, o percurso do movimento do Bauhaus, simbolizando em seu início pelo quadro expressionista de Lyonel Feininger intitulado “A catedral do socialismo” e reorientado em seguida por Walter Gropius, a partir de 1922, em um sentido claramente modernista que visava conciliar estética e tecnologia.
Visão social de mundo
Estes exemplos, que poderiam facilmente ser multiplicados, contribuem para confundir a paisagem. Porque, no fundo, o que é o romantismo, este fenômeno estranho que aparece com freqüência como um enigma inapreensível?
Para respondê-lo, Michael Löwy e Robert Sayre primeiro limpam o terreno das definições falsas ou insuficientes, criticando as visões estreitas que reduzem o romantismo como simples tendência literária e artística do século XIX, como reação conservadora à revolução francesa (uma espécie de contra-iluminismo, segundo a definição de Isaiah Berlin), como atitude psicológica subjetivista, ou ainda como corrente filosófica reacionária precursora do fascismo. Esta definições são freqüentemente justas, mas sempre unilaterais porque são incapazes de apreender o fenômeno em sua globalidade e em suas contradições.
Inspirando-se na metodologia de Lucien Goldman, eles caracterizam o romantismo como uma visão de mundo, baseada numa crítica da modernidade ou, dito de outra forma, na rejeição da civilização industrial burguesa. Como uma revolta contra o espírito do capitalismo nascido com a reforma protestante, generalizado e hegemônico depois da revolução industrial, o romantismo deslancha sua trajetória no final do século XVIII e impregna profundamente com sua sensibilidade a cultura dos dois séculos seguintes. Ele se confronta com características fundamentais da sociedade capitalista moderna: o espírito de cálculo, a mecanização e o desencantamento do mundo (segundo a celebre fórmula de Max Weber) , a racionalidade instrumental, a dominação burocrática, a dissolução de todas as relações sociais comunitárias.
Alimentado pela nostalgia de um passado no qual os homens e as mulheres viviam em harmonia com eles mesmos e com a natureza, o romantismo é profundamente atraído pela religião, pelos mitos, as atmosferas noturnas, os símbolos e as tradições carregadas de uma aura mágica, ao mesmo tempo que manifesta uma atitude fundamentalmente pessimista e desesperada face à realidade presente. Enquanto crítica da modernidade engendrada por essa realidade, o romantismo a segue como uma sombra ao longo de todo o seu percurso, tendo portanto aprendido a coexistir com o espírito das Luzes e transformando-se assim num fenômeno típico da cultura moderna. Sinteticamente, segundo a definição de Lowy e Sayre, ele se tornou uma espécie de “autocrítica da modernidade”.
Os vários romantismos
A visão de mundo romântica se exprime em diferentes áreas da cultura, das artes, das ciências sociais e atravessa todo o espectro de sensibilidades políticas. Ele parece um arco-íris, como uma paisagem fragmentada em diferentes configurações, as vezes opostas umas às outras. Löwy e Sayre procuram colocar um pouco de ordem nesta nebulosa, propondo uma tipologia que distingue um certo número de tipos ideais: o romantismo restitucionista (de origem fundamentalmente religiosa, representada sobretudo pelo filósofo alemão Friedrich Novalis e pelo escritor francês Georges Bernanos) que quer restaurar o passado; o romantismo conservador (encarnado, por exemplo, pelos historiadores Edmund Burke e Joseph De Maistre), que se opõe ao advento da modernidade em nome da manutenção dos valores do Antigo Regime; o romantismo fascista ou pré-fascista (Oswald Spengler, Ernst Jünger, Carl Schmitt) que anuncia a decadência do Ocidente e aspira uma nova ordem autoritária e hierárquica, freqüentemente não incompatível com a tecnologia industrial mas sempre alimentado por mitologias arcaicas; o romantismo resignado (teorizado de modo mais explícito pelos sociólogos alemães Max Weber e Georg Simmel), que une a nostalgia do passado ao reconhecimento lúcido do caráter irreversível e inelutável da racionalização do mundo; o romantismo reformador, que visa transformar a realidade, que pode tomar um aspecto jacobino-democrático (William Blake, Heinrich Heine, Jean-Jacques Rousseau) ou populista (Sismondi), utópico-humanista (Moses Hess) ou libertário (Michail Bakounine, Piotr Kropotkine, Gustav Landauer); enfim o romantismo marxista, que se exprime de maneira acabada na obra de Ernst Bloch e de Walter Benjamin.
A cultura romântica é dominada, no século XIX, pela Inglaterra, o centro da revolução industrial, onde se impõem figuras como Charles Dickens, S.T. Coleridge e sobretudo John Ruskin, cuja definição da modernidade - the dark age, a idade das trevas ou sombria, nome freqüentemente dado em inglês ao período medieval - reverte a visão tradicional sobre a idade média.
Entre os produtos intelectuais mais significativos do romantismo inglês, os autores lembram primeiro “Hard times”, a obra de Dickens, e “News from nowhere”, de William Morris, que imaginava uma Londres utópica, comunitária e “pós industrial”. No século XX, o romantismo se manifestou sobretudo em numerosos movimentos de vanguarda como o expressionismo ou o surrealismo, e ganhou um novo impulso, em nossos dias, na crítica do capitalismo e de certos movimentos de inspiração religiosa, como a Teologia da Libertação na América Latina.
Fascismo e romantismo
O fascismo e o marxismo, duas correntes de pensamento que se opuseram radicalmente uma à outra ao longo do século XX, e que foram algumas vezes concebidas como saídas possíveis para a rejeição de um mundo “desencantado” e “frio”, tiveram uma atitude muito contraditória e ambígua frente ao romantismo.
No fascismo, certas tendências explicitamente modernistas como o futurismo - com seu culto da velocidade e sua exaltação estética da máquina - coexistiam com filósofos de inspiração romântica que partiam da rejeição da técnica (a referência inevitável aqui é a Martin Heidegger, inexplicavelmente ausente do livro de Löwy e Sayre). Com mais freqüência, encontravam-se de maneira paradoxal para desembocarem sobre formas ideológicas híbridas que certos historiadores e sociólogos, na esteira de Armin Mohler, o primeiro intérprete da “revolução conservadora”, qualificaram de modernismo reacionário. Esta visão de mundo preservava a dicotomia romântica entre Kultur e Zivilisation, opondo o mito do Volk (povo) e do passado germânico à decadência do Ocidente, ao mesmo tempo que valorizava a técnica e a indústria, que pertenceria à nação, ou à “raça”. Muito significativa era, a este propósito, a formulação de Joseph Goebbels, segundo a qual nosso século teria engendrado a stahlernde Romantik, o “romantismo de aço”.
Marxismo e romantismo
Encontramos a mesma ambivalência, em um contexto muito diferente, no coração do marxismo. O anticapitalismo de Lenin e Plekanov era resolutamente modernista, criticando o “romantismo econômico” dos populistas russos e concebendo o marxismo como ferramenta teórica indispensável para interpretar o processo de modernização e de ocidentalização da Rússia (eram reveladoras, a este propósito, as fórmulas de Plekanov, que atribuía ao socialismo a tarefa de concluir a obra encetada por Pedro, o Grande, e de Lenin, que definia o socialismo como “os soviets mais a eletrificação”).
Por outro lado, o marxismo de Rosa Luxemburg era rico de colorações românticas. Em seu livro “Introdução à economia política”, Rosa consagrava uma reflexão importante às formações sociais do comunismo primitivo. Mais complexa era a atitude de Georg Lukács: seus escritos marxistas dos anos 20, principalmente “História e consciência de classe” (1923), estavam ainda impregnados de uma forte sensibilidade romântica, a mesma já expressa em obras como “A alma e as formas” ou “A teoria do romance” - onde a “ irracionalidade harmoniosa” do cristianismo era lastimada à luz da irracionalidade demoníaca da “modernidade”, que não era mais estruturada pela “totalidade absoluta” do mundo antigo mas se tornava cada vez mais prisioneira de uma “planificação insana”. Estes escritos desembocavam na visão do capitalismo como um processo de reificação universal das relações sociais, mas Lukács abandonaria esta atitude e terminaria por considerar o romantismo como a primeira etapa do processo de “ destruição da razão” atingido pelo fascismo. Não é por acaso que Merleau-Ponty forjou a definição de webero-marxismo para os escritos de Lukács do início dos anos 20.
Bloch e Benjamin
Ernst Bloch, que na época era muito ligado a Lukács, escreveu em 1918 o “Espírito da utopia”, que tinha um capítulo intitulado “A frieza técnica”. Nesta obra, ele considera os sais de banho produzidos pela indústria moderna como o símbolo do século XX, da mesma forma que as catedrais góticas tinham antes encarnado o espírito da Idade Média. Alguns anos mais tarde, Bertold Brecht ironizava um culto da técnica freqüentemente subjacente a um movimento como a Neue Sachlichkeit (a “nova objetividade”). Em um poema particularmente cáustico, ele anuncia a chegada do Messias, sob a forma de um tanque de gasolina, que ele suplicava que ele entregasse aos homens a maldição do espírito, “em nome da eletrificação, do Ratio e da estatística”.
As idéias de Marx, segundo Löwy e Sayre, “não eram nem românticas, nem “modernizadoras” mas uma tentativa de Aufhebung (superação) dialética das duas, numa nova visão do mundo, crítica e revolucionária”. Colocado de outra forma, no pensamento de Marx as “correntes frias” da razão crítica se articulavam com as “correntes quentes” da utopia. A síntese que resultou pode incorporar a visão de mundo romântica ao mesmo tempo que escapava de seus perigos: de um lado, o de uma idealização do passado, incapaz de perceber as formas de opressão que ele implicava; de outro, o de uma rejeição em bloco da modernidade, incapaz de compreender as potencialidades libertadoras da técnica.
À diferença do romantismo conservador, que idealizava sobretudo a Idade Média e a sociedade hierárquica do Antigo Regime, a melancolia romântica dos marxistas nutria-se, freqüentemente, de lembranças das sociedades coletivistas primitivas, sem classes e sem Estado. A luta contra a opressão moderna permite então articular a nostalgia do passado com a aspiração utópica rumo a sociedade livre do futuro. Nas “Teses sobre a filosofia da história”, Walter Benjamin dá a seu romantismo uma forte conotação teológica opondo a plenitude do tempo messiânico ao “tempo homogêneo e vazio” do historicismo. Ele descreve a rejeição da temporalidade linear, cronológica e puramente quantitativa do mundo moderno, pela alegoria dos revolucionários franceses que, durante as jornadas de julho de 1830, atiravam contra os relógios dos campanários, manifestando assim, de maneira espontânea e sem dúvida inconsciente, sua vontade de suspender o continum da história.
Enzo Traverso é autor de Les marxistes et la question juive (Editions La Breche). Artigo originalmente publicado na revista Critique Communiste nº 132.