Gustavo Ayala, Viento Sur, 20 de março de 2021. Tradução de Antonio P Souza Neto, militante do PSOL-CE
Evocar a nostalgia pode ser um instrumento para chamar a incerteza, nos dizia David Dorenbaum, com relação às respostas psicológicas diante da pandemia. Poderia ser também o marco para entender a ação das elites políticas equatorianas nas eleições presidenciais de 2021. Diante da mais grave crise contemporânea do Equador, a oferta eleitoral só prometeu o passado. Os quatro candidatos mais votados em 7 de fevereiro de 2021 representaram, de alguma maneira, diversas propostas de volta a um momento anterior, muito na linha da estética vintage.
A Esquerda Democrática, declarada social-democrata, mas de linha liberal, com seu candidato Xavier Hervas foi uma versão leve de um governo do final dos anos 1980, já brando então. A década de 1990 foi representada pelas duas opções mais representativas da época: um movimento indígena que lembrava as grandes mobilizações populares de resistência e suas difusas expressões eleitorais, desta vez com seu candidato à presidência Yaku Pérez. A outra opção da época é Guillermo Lasso, que assume o eterno compromisso neoliberal, com o apoio de muitos dirigentes da já extinta democracia cristã. Da mesma forma, Correísmo, com o seu candidato Andrés Arauz, foi apresentado como uma reedição que procurou relembrar o período da chamada Revolução Cidadã (2007-2017).
Nenhum dos 16 candidatos à presidência falou do duro presente que atravessa boa parte do país, dos enormes problemas cotidianos de sobrevivência de amplos setores populares empobrecidos e de sua percepção -nova, há algum tempo- de que o futuro de seus filhos pode ser pior do que viveram, ainda mais agora que a migração é difícil como válvula de escape. Tampouco foi discutida a situação das classes médias que, com rendas mais baixas e mais conscientes de sua extrema vulnerabilidade, têm que enfrentar viradas inesperadas de mão-de-obra para sustentar seus padrões de vida. Não foram propostas estratégias abrangentes ou ideias inovadoras para problemas estruturais agravados por novas desigualdades ou desafios que o capitalismo contemporâneo e a COVID-19 colocaram na agenda política de qualquer Estado. Para além de elementos específicos, também não refletiram sobre as consequências das mudanças climáticas, apesar de fazerem parte das causas da pandemia que vivemos.
Uma sociedade extremamente segmentada, desiludida, temerosa e estressada foi convidada a votar por candidatos que não falavam dela, não ofereciam horizontes mobilizadores, estavam enlatados em propostas de pouca qualidade e disputas muito distantes da cotidianidade cidadã. Também é certo que estamos sem fluxo social, o que deixa a sociedade política um tanto sozinha, falando entre si e de si. Mas fica a sensação de que as elites políticas não conseguiram sintonizar com a cidadania nem levantar propostas de futuro. E no entanto os equatorianos foram votar massivamente com o desejo de encerrar um ciclo de indolência asfixiante.
O governo de Moreno: giro conservador, recomposição do bloco de poder e destruição estatal
Lenin Moreno foi vice-presidente de Rafael Correa em dois períodos (2007-2009; 2009-2013) e foi a carta da Alianza País para sucedê-lo nas eleições presidenciais de 2017. Ganhou num segundo turno polarizado com uma diferença apertada (51,16 % versus 48,84 %), sob agudas reclamações de fraude de Guillermo Lasso, do partido CREO, que, no entanto, nunca teve interesse em provar.
Moreno prometia ser uma versão leve e sem tanto conflito do correísmo, era a continuidade do projeto da Alianza País com certa mudança de estilo e adaptação ao novo contexto. No entanto, antes de sua posse no cargo ficou claro seu distanciamento com Correa, um continuo interesse em acentuar diferenças até terminar em um agudo enfrentamento. O que começou, aparentemente, como um conflito pessoal tomou corpo político e terminou dividindo o partido e o bloco legislativo.
O correísmo conseguiu manter certa coesão e preservar um bloco legislativo próprio, certa estrutura nacional e um voto duro fiel (de cerca de 25%). Se posicionou a tempo como o opositor mais radical a Moreno. No entanto, o artifício para caracterizar o governo Moreno baseava-se na desqualificação ética de traidor. E é claro que houve traição de Moreno, mais do que de Correa, ao programa eleitoral que o elegeu. Mas, com essa caracterização, evitou-se um exame mais político, autocrítico e de longo prazo dos fracassos dos governos da Revolução Cidadã, do novo cenário e do clima social. Com a traição, evitou-se a discussão sobre as deficiências da construção partidária (como instrumento de deliberação, decisão coletiva e organização) ou do próprio projeto político. Nem mesmo a personalização do problema foi abordada em relação à escolha das autoridades, aos diversos atos de corrupção ou à falta de controles democráticos necessários.
Em seu primeiro ano de governo, Moreno apresentava certa continuidade nas políticas públicas e seu gabinete era composto, em sua maioria, por gente da esfera progressista da Alianza País. No entanto, Moreno logo iniciou uma estratégia para alterar a gramática discursiva do Correísmo, tirando o sermão sobre a corrupção da oposição, por atrasar algumas definições (especialmente em política externa e economia), evidenciando uma aproximação com atores políticos anti-Correistas (meios de comunicação, câmaras de negócios, partidos políticos tradicionais, os Estados Unidos) e para desconstruir o andaime institucional onde o correísmo tinha peso.
Por fim, o ritmo se aceleraria em 2018 e uma virada conservadora se intensifica, agora sem volta e cada vez mais intensa. Realiza consulta popular em fevereiro de 2018 (que venceu com 67,65% contra 32%) com o objetivo central de nomear um novo Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS), órgão de indicação da autoridade, para aprofundar o deslocamento de líderes estaduais correistas por outros mais próximos de Moreno. Esta mudança seria reforçada com a nomeação para Ministro da Fazenda de um representante da Câmara das Indústrias e Produção; Desde então, aos poucos, o perfil do gabinete mudou, tornando-se cada vez mais conservador. Da mesma forma, o apoio legislativo veio dos partidos de direita (PSC, CREO) e outros (ID, Pachakutik) que, embora nominativamente progressistas, votaram nos projetos do governo sob a tese de descorreação do país.
O bloco hegemônico não alcançou uma resposta política comum ao correato, em continuidade com a histórica divisão interna, apenas articulou sua oposição à Revolução Cidadã. Durante o governo Moreno, esse bloco conquistou a unidade política, sendo o motor e o apoio entusiasta das orientações das políticas públicas, que voltaram a se alinhar ao neoliberalismo e à geopolítica do presidente Trump dos Estados Unidos. Mas, além de reorientar as políticas públicas, o objetivo central da estratégia do bloco de poder era provocar uma derrota estratégica (Ominami, 2017). Para isso promoveram um enfraquecimento do Estado, não só para alcançar o sempre incompleto ajuste fiscal que a escola neoclássica postula, mas, sobretudo, para evitar que o Estado volte a servir de instrumento de acumulação política e de impulso das reformas. Embora analistas e atores políticos de direita sempre apontassem que no Equador tínhamos um estado de obesidade, nunca apresentaram estudos sobre o quanto deveria diminuir e qual era o objetivo. De qualquer forma, durante o governo Moreno, segundo alguns estudos, os gastos públicos foram cortados em mais de 5% do PIB (Dávalos, 2021).
Em meio a esse retorno ao caminho neoliberal, Moreno se tornou a ferramenta perfeita para o bloco de poder. Conseguiu dividir a maioria social progressista, implodir o Alianza País como instrumento eleitoral, mudar as coordenadas do debate político, destruir o Estado como entidade reguladora e, graças à sua função de cavalo de Tróia, possibilitou a ocupação do poder político por setores anteriormente expulsos com as urnas. Dessa forma, o bloco de poder se tornou o ventríloquo que puxou os cordões do governo. No entanto, embora este projeto tenha conseguido gerar confusão, passividade cidadã e realinhamento político, o momento de persuasão nunca ultrapassou o de coerção. Ou seja, o discurso do poder não conseguiu processar ou dissolver as demandas populares, configurando, de alguma forma, o que eles chamaram de dominação sem hegemonia (Guha, 2019).
Quando o Equador estava mais uma vez no conhecido caminho neoliberal, surgiu uma mobilização para desafiar o governo. A liberalização dos preços dos combustíveis em outubro de 2019 desencadeou, primeiro, uma greve dos trabalhadores dos transportes, depois uma revolta indígena e, por fim, uma revolta popular. A irrupção foi espontânea, com grande apoio cidadão, apresentou formas pré-políticas de resistência, com uma organização precária e um projeto ideológico escasso, foi a mobilização mais massiva e intensa das últimas décadas e uma nova experiência de classe compartilhada; Apesar disso, teve pouca eficácia política imediata. O governo apenas atrasou seu plano de ajuste, que posteriormente retomou com o aprofundamento.
O movimento indígena tornou-se o eixo da revolta graças ao seu tecido organizacional. Isto obrigou seu partido (Pachakutik) a romper com o governo, com o que mantinha uma aliança para a distribuição institucional e atacar o correísmo. A revolta popular teve um núcleo indígena que levantou várias reivindicações. Embora tenha começado como uma reação ao ajuste, realmente deve ser lido como uma reação com uma história mais complexa. Foi produto tanto do abandono acumulado do setor rural (no período a atenção agrária sempre foi o grande vazio governamental, parcialmente preenchido com investimento social e fortalecimento do mercado interno), quanto de uma reação à situação do fechamento da mobilidade social e do corte drástico no investimento público do governo Moreno. Essa mobilização foi brutalmente reprimida pelo então ministro do governo, autoproclamado feminista de esquerda de direita, provocando, segundo o Defensor del Pueblo, em seu relatório de 14/10/2019, 8 mortes, 1.340 pessoas atendidas e 1.192 detidos em todo o país.
Poucos meses depois, chegou a pandemia de coronavírus. Isso permitiu ao governo lançar uma contra-ofensiva para neutralizar outubro de 2019. O governo, em meio a uma pandemia, radicalizou seu programa neoliberal. Aproveitando a situação, o investimento público diminuiu ainda mais -incluindo o setor saúde- com a eliminação de instituições, demissão massiva de funcionários públicos e redução de salários da burocracia, flexibilizando as regulamentações trabalhistas para minar os direitos mais básicos (demissão , remuneração, jornada de trabalho, salário mínimo, possibilidade de processos trabalhistas), e abriu a janela para outras reformas (privatizações, independência do Banco Central, entre outras).
Isto foi feito no âmbito de um estado de exceção permanente na situação mais leal à descrita por Agamben (2004), o ministro do governo argumentou que "a realidade ultrapassou a legalidade", visto que o estado de emergência foi utilizado para suspender direitos e liberdades, fortalecer o antigo paradigma da segurança nacional e governar por decreto, sem controles democráticos, onde o contrapeso dos demais poderes é mínimo. Paralelamente, foi desenvolvido um arcabouço discursivo com o objetivo não de convencer, mas desorientar, gerar desconfiança e impor a lógica individualista de quem pode se salvar, lembrando-nos que o fascismo não é tanto produto da convicção da população em seus ideais, mas da indiferença a eles. O capitalismo em crise recorre novamente a formas autoritárias que remetem às advertências de Poulantzas (1976) ao analisar as origens do fascismo com a presença de fenômenos como as derrotas dos movimentos populares, uma crise de hegemonia, uma crise de representação política e uma base de apoio aos regimes autoritários.
Com Moreno observou-se como os autoproclamados democratas e defensores da institucionalidade só o eram na oposição. No governo apresentavam uma gestão atormentada pelo desrespeito permanente à Constituição, nomeavam autoridades sem cumprir os regulamentos, obtinham apoio legislativo distribuindo parcelas do poder, perseguiam os correistas, reprimiam as mobilizações, silenciavam dissidências nos meios de comunicação e não teve escrúpulos em sacrificar a soberania para obter pequenas receitas pessoais. Isso sustentou os Correistas como a verdadeira antítese do governo e canalizou a inquietação para eles. No final, os correístas se beneficiaram com a frase atribuída a Perón: “não é que sejamos bons, mas que os outros são piores”.
Além disso, a fraca legitimidade do governo minou sua capacidade de coordenação política e o corte nos gastos públicos enfraqueceu a governança institucional e as capacidades do Estado. A ineficácia e indolência do governo foram evidenciadas por uma gestão terrível da pandemia. As imagens terríveis de Guayaquil, de abril de 2020, circularam pelo mundo mostrando cadáveres nas ruas, hospitais saturados, casas funerárias desabadas, falta de remédios, salários não pagos de funcionários públicos... O Equador não tem cifras credíveis. Hoje tem mais de 40 mil óbitos acima da média anual, seus números de infecções estão subestimados, pois os testes de PCR dificilmente são realizados e nunca foi construído um sistema de monitoramento para rastreamento e confinamento. Hoje em dia não se compra vacinas e as poucas obtidas (8 mil a 17 milhões de equatorianos) foram distribuídas a suas famílias, amigos e acólitos com escândalos permanentes sobre a má gestão realizada em torno do privilégio sem atenção aos direitos e ao benefício comum.
Se antes da pandemia o Equador já vivia uma crise de representação, agora ela se configura como uma crise de Estado. Mas a crise é multidimensional. Às dimensões saúde e política, já descritas, se somam uma profunda crise econômica, com queda do PIB em 2020 de mais de 10 pontos, e uma crise social, com queda em todos os indicadores em cerca de 20 anos. Por exemplo, de acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade Central, a desigualdade aumentou em cerca de 6 pontos e a pobreza em 8, apenas em 2020.
Eleições presidenciais: un momento anti establishment
“Os pobres não deveriam votar”, disse em dezembro de 2020 o fundador da universidade mais cara do Equador, com grande predominância entre seus professores da escola austríaca de economia. Esta foi apenas uma das pérolas recorrentes das elites que acreditam possuir um país que desprezam. Mas é um exemplo claro do ambiente onde as direitas buscam quebrar o consenso do que é politicamente correto e impor seu arcabouço discursivo.
A destruição do Estado como política de governo e a crise multidimensional decorrente da pandemia geraram uma sociedade atomizada e desarticulada. Isso fez com que nenhuma linha de conflito (ou clivagem) ordenasse a competição eleitoral, uma vez que não conseguiu articular os demais conflitos ou envolver toda a população. O que mais o faz é o nacionalismo popular-estatal versus globalização neoliberal, produto da época dos governos da Revolução Cidadã (desenvolvemos mais em Ayala e Serrano, 2020).
Com uma oferta eleitoral extremamente fragmentada, três foram os principais projetos políticos em disputa. Arauz representou o Correismo. Um progressismo que combina elementos keynesianos da economia e uma visão conservadora de valores, principalmente pelo peso de Correa. Sem estrutura partidária, consequência tanto do empenho do líder (Rafael Correa) quanto da perseguição do morenato, tem um voto de identidade forte, reforçado por canalizar a agitação contra o governo. Embora obtenha cada vez mais um voto popular urbano, sua liderança exibe uma super-representação das classes médias. Na frente está o CREO, ele se constituiu como um representante da nova direita, e mescla uma visão liberal em economia -com think tanks de redes econômicas neoclássicas- com uma visão extremamente conservadora, influenciada pelo Opus Dei. Tem conseguido uma expansão territorial devido à sua polarização com o Correísmo.
Por último, está Pachakutik. É o instrumento eleitoral da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e nasceu como uma plataforma antineoliberal e reivindicação indígena. Depois de mais de duas décadas de existência, preservou um certo tecido organizacional - o único no país - mas seu perfil mudou. O movimento indígena é mais diverso e heterogêneo, com maior presença urbana e com novas gerações de lideranças, mais bem formadas e muitas oriundas de uma pequena burguesia indígena que se consolidou nas últimas décadas. Apresenta agora um maior distanciamento dos atores que a promoveram desde a sua fundação (partidos de esquerda e a quase desaparecida Teologia da Libertação) e uma maior diversidade política é observada em suas lideranças, mesmo com lideranças nitidamente de direita.
Pachakutik, nas eleições presidenciais anteriores, participou com algum sucesso, terminando também em terceiro lugar em 1996 com 20,6% dos votos de seu candidato, fora da organização, Freddy Ehlers. Em 2002 ganhou a presidência em aliança com Lucio Gutiérrez, que em 2003 fez outro caminho político e expulsou Pachakutik do governo. Posteriormente, nunca fez parte da aliança eleitoral dos Correísmo e teve uma relação complicada com os seus governos, com fortes críticas, ora de esquerda (desafio plurinacional, preocupações ecológicas nas suas localidades, lógica comunitária), ora de direita (indigenismo corporativo, linha econômica, presença do estado, alianças políticas). Nestas eleições apresentou um candidato da sua corrente moderada, que representava - apesar de tudo - um ar de rebelião, com um discurso difuso e sem muitas definições, mas com preocupações sobre a natureza e as exigências do povo.
Os resultados oficiais mostraram o candidato do Correísmo, Arauz, vencedor do primeiro turno com 32,72%; o segundo lugar para o conservador Lasso, do partido CREO, com 19,74%; Yaku Pérez do Pachakutik em terceiro com 19,39% (1); quarto, pela Esquerda Democrática (ID), Hervas, com 15,68%. Mas, além dos dados quantitativos, identificamos quatro fenômenos clandestinos que caracterizariam essas eleições.
A busca pelo novo. A instabilidade do sistema político e o confinamento da pandemia reforçaram o uso de ferramentas de comunicação por parte dos candidatos, o que deu vantagens ao aparelho eleitoral instalado no território e com um voto duro mais consistente (CORREÍSMO e CREO), restringindo a possibilidade da emergência de um estranho. No entanto, uma grande porcentagem do eleitorado explorou novas opções e se dirigiu a duas (Pérez e Hervas) que simbolizaram a novidade, com certo perfil social e com um ar difuso de anti-establishment.
Recuo eleitoral da direita. Apesar de o bloco de poder ter se unido nesta conjuntura para apoiar o governo Moreno, não conseguiu avançar na construção da organização política ou no posicionamento de um candidato competitivo. Lasso se tornou o melhor posicionado e quem finalmente seria seu representante. No entanto, apesar da unidade de classes, do apoio do governo, dos meios de comunicação e de sua aliança com o Partido Social Cristão (PSC), a direita como um todo diminuiu seu apoio eleitoral. Em 2017, o Lasso obteve 28% na primeira volta, e o PSC que ficou à parte obteve 16%; em 2021, eles foram juntos e caíram 10 pontos, pelo voto de Lasso, ou 24 pontos, se a votação conjunta for considerada. Seu vínculo com o esgotado governo Moreno e sua oferta neoliberal em tempos de urgência social podem ser dois dos fatores que o explicam. Seja qual for o resultado, há disputas por novas lideranças dentro dessa corrente.
Desperfilhamento das esquerdas. A esquerda no Equador, como no resto da América do Sul, fazia parte das coalizões progressistas. Uma grande parte deles (socialistas, comunistas, vários colectivos) permaneceram no Correísmo com formatos diferentes mas como uma minoria, outros (Maoísmo e Pachakutik) posteriormente confrontaram o Correísmo e estabeleceram diferentes alianças eleitorais sem muito sucesso. Pode-se dizer que desde 2017 não houve uma candidatura claramente de esquerda e que sua participação se desenvolveu em coalizões mais amplas. Em 2021, é claro que a presença pública da esquerda sofreu um grande revés. Não só eles se tornaram mais fracos, mas seus principais candidatos apresentaram um perfil mais difuso. As candidaturas do Correísmo ou do Pachakutik, bem como as suas fracas estruturas, - para não falar do ID - são propostas moderadas num cenário que, por si só, as coloca na defensiva, com necessidade de alargar o seu apoio e sem acúmulo político para encampar reformas profundas.
Desnacionalização e emergência da periferia. Durante o correísmo, uma alta articulação nacional foi conseguida desativando a clivagem regional presente na história equatoriana. Nestas eleições volta a clivagem regional mas com outro formato, uma periferia que agrupa as províncias do planalto central e do leste reaparece (este eixo já tinha aparecido nas eleições de 2002, 2006, 2009 embora tivesse diminuído gradualmente) e agora se expande para o sul (planaltos do sul). É uma periferia no sentido territorial, longe do centro (Quito e Guayaquil) e porque reúne duas das três áreas com maior pobreza e insatisfação das necessidades básicas. Antes essa periferia tinha expressão política com o partido de Gutiérrez, hoje com Pachakutik.
Os cenários em aberto
A própria pandemia no Equador significará um ponto de inflexão que ainda não se manifestou. A crise multidimensional estreita a margem de ação do próximo governo e o obrigará a se concentrar na situação de urgência social, na retomada da economia e na reconstrução da institucionalidade. Mas, paradoxalmente, também pode se tornar um ponto de inflexão que estabelece o próximo horizonte do tempo. Esse é o verdadeiro jogo dessas eleições.
Diante do cenário mundial de incertezas, o Equador decidirá se o próximo horizonte tem como princípios de ordem social a proteção comum e a ação coletiva ou o mercado e a saída individual. Não são diferenças de modelos civilizatórios, mas contrastes dentro do próprio capitalismo, pelo menos por enquanto. Mas o compromisso com um ou com o outro vai definir gradativamente com que modelo de desenvolvimento está se comprometendo, com qual Estado (re) se constrói, como se reorganiza o pacto social e como se redefine nossa relação com a natureza. É, de certa forma, um momento polaniano aberto: corremos o risco de que o mito do mercado livre acabe por desagregar as sociedades (Polanyi, 1944 [2007]).
O segundo turno será um confronto mais agudo entre dois projetos sociais. Será um conflito intenso e provavelmente não muito limpo. Lasso jogará usando seu grande poder de classe; resta saber se ele continuará com sua campanha de medo e discurso de um self-made man ou se desta vez terá novas apostas comunicacionais que buscam revigorá-lo e agregar algo mais do que ser o melhor representante do anti-correísmo. Mas o momento de anti-establishment e fortes demandas por proteção social é apresentado como um contexto difícil para um banqueiro neoliberal da Opus Dei. Além disso, se chegar ao governo, não terá maioria legislativa ou social favorável, terá que dar muito em seu programa econômico, enfrentar intensas mobilizações sociais e até mesmo o risco de uma crise maior de Estado.
Arauz parte com vantagens para vencer o segundo turno. Ele fez uma importante diferença eleitoral e tem atrás de si um líder com importante popularidade e com governos associados ao boom econômico e melhorias sociais. No entanto, isso em um segundo turno não é suficiente para ele. Terá que mostrar um perfil mais autônomo, mais novo e aprimorar suas habilidades de comunicação, o que lhe permitirá aparentar solidariedade e afastar-se de sua imagem de aluno aplicado e de burocrata-técnico. Correísmo tem tido dificuldade em ouvir uma sociedade diversa nos seus problemas quotidianos, chegar a acordos e priorizar conflitos. Um futuro governo não pode ser uma simples reedição daqueles anteriormente liderados por Correa e, dada a fragmentação existente, corre o risco de se isolar da sociedade com aventuras políticas alheias à atenção da urgência social.
Finalmente, após este segundo turno, os maiores desafios virão. Numa perspectiva de esquerda, reaparece o desafio de construir um tecido organizacional que gere laços no mundo popular e suscite uma alternativa civilizatória. Já passou a moda progressista que acreditava que a dinâmica eleitoral e a exposição na mídia poderiam ser o único pólo de acumulação política para o rápido assalto ao governo. Já sabemos que mesmo isso não é sustentável sem organização, pois como dizia o velho Marx: “As reformas sociais nunca se realizam graças à fraqueza dos fortes; é sempre graças à força dos fracos” (Wheen, 2000: 21).
Referências
Agamben, Giorgio (2004). Estado de excepción. Homo Sacer II, 1. Pretextos.
Ayala, Gustavo y Serrano, Yura (2020) "Estado y nacionalismo. El Ecuador post Revolución Ciudadana", en Herrera, Stalin, Molina, Camilo y Torres, Victor Hugo. (Eds.) Ecuador. Debates, balances y desafíos post-progresistas. (pp.329-361) CIESPAL - Instituto de Estudios Ecuatorianos –CLACSO– Abya Yala.
Dávalos, Pablo (2021) "El ajuste recargado: La Carta de Intención (EFF) con el FMI de septiembre de 2020", en http://pablo-davalos.blogspot.com/2021/02/el-ajuste-recargado-la-carta-de.html
Guha,Ranajit (2019) Dominación sin hegemonía. Historia y poder en la India colonial. Madrid: Traficantes de Sueños.
Ominami, Carlos (Ed.)(2017).Claroscuro de los gobiernos progresistas. América del Sur: ¿Fin de un ciclo histórico o proceso abierto? Santiago de Chile: Editorial Catalonia.
Polanyi, Karl (1944[2007]) La gran transformación. Madrid: Quipu Editorial.
Poulantzas, Nicos (1976) Fascismo y dictadura: La tercera internacional frente alfascismo (8ª. ed.). Madrid: Siglo XXI.
Wheen, Francisv(2000) Karl Marx. Madrid: Editorial Debate.
Gustavo Ayala. Como ex-dirigente e ex-presidente do Partido Socialista Equatoriano (2007-2008) foi parte do processo de configuração da chamada Revolução Cidadã. Atualmente é acadêmico: Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Salamanca; Diploma de Estudos Avançados em Ciência Política e Administração Pública pela Universidad Autónoma de Madrid; Mestre em Relações Internacionais pela Universidad Complutense de Madrid.
1/Pachakutik denunciou uma fraude eleitoral acusando a CREO e o correísmo de conspiração. No entanto, este último não tem representação no Conselho Nacional Eleitoral, que o assediou em inúmeras ocasiões e é presidido por uma mulher indígena ligada ao Pachakutik. Enquanto estas linhas estavam sendo escritas, Pachakutik contestou os resultados em algumas províncias, embora a maior parte das reclamações se concentrasse em Guayas, onde o CREO tem mais apoio e controle do corpo eleitoral. É improvável que prosperem e os resultados oficiais sejam alterados.