Yaku Pérez, candidato indígena à presidência, pode derrotar a direita e ir ao 2º turno. Virada superaria polarização tóxica, evidenciaria alternativa pós-desenvolvimentista e abriria novas perspectivas para ruptura real com neoliberalismo.
Maristella Svampa, Editora Elefante, 9 de fevereiro de 2021
Em um cenário latino-americano cada vez mais polarizado e — com a exceção do Chile — desalentador em termos de propostas políticas inovadoras, as eleições presidenciais no Equador [realizadas em 7 de fevereiro de 2021] abrem uma interessante caixa de surpresas. Enquanto certas pesquisas previam a vitória no primeiro turno de Andrés Arauz, candidato apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa (2007-2017), ou deram como certo que, em caso de segundo turno, este seria disputado por Arauz contra o banqueiro Guillermo Lasso, representante da direita oligárquica, o poderoso movimento indígena equatoriano ressurge com força na figura de Yaku Pérez, reconhecido líder indígena e ambientalista, ex-governador da província de Azuay, no sul do país, e defensor dos direitos da Natureza.
Enquanto a Arauz se afirmou em primeiro lugar com cerca de 32% dos votos, estamos diante do virtual empate técnico entre Yaku (19,80%) e Lasso (19,60%), e teremos que esperar alguns dias, com a contagem final, para ver quem vai finalmente para o segundo turno. [Na data de publicação da versão em português deste texto — 9 de fevereiro —, com 99,26% das urnas apuradas, Yaku tem 20,09% e Lasso, 19,5% dos votos.] Destaca-se também a votação recebida por outro jovem candidato, o empresário socialdemocrata Xavier Hervás, da Esquerda Democrática, com 16,01% [15,97%] da preferência popular.
Esses resultados permitem uma primeira análise.
Em primeiro lugar, em uma região marcada politicamente por uma polarização tóxica entre o velho progressismo e a direita mais reacionária, surgem novas opções, que buscam oferecer uma alternativa democrática à população. Aliás, é notório que após a desastrosa gestão do presidente Lenin Moreno — candidato escolhido a dedo por Rafael Correa, que depois se distanciou dele e alinhou-se economicamente com os setores mais conservadores —, a sociedade equatoriana, apesar das profundas e históricas divisões regionais, está mais uma vez apostando principalmente em candidatos que promovem diferentes visões de esquerda. Assim, o que alguns consideram uma perigosa “fragmentação” ou fruto de puro “anticorreísmo”, na realidade deve ser lido como um incipiente processo de despolarização política, que evidencia a existência de esquerdas invisíveis, aprisionadas e/ou engolfadas pela virulência da política maniqueísta nos últimos anos.
Em segundo lugar, há uma grande diferença entre os possíveis resultados do primeiro turno. Se Lasso passar para o duelo com Arauz, a polarização tóxica estaria de volta aos holofotes — e o pior cenário seria a vitória do banqueiro. Se, em vez disso, Yaku Pérez passar ao segundo turno, isso abriria um novo e inesperado cenário político. Estaríamos diante da disputa entre as duas esquerdas que tensionou o ciclo progressista latino-americano entre 2000 e 2015: de um lado, o progressismo realmente existente (que esteve dez anos no poder com a Alianza País sob a forte liderança de Rafael Correa, que persiste na vitimização e mostra nulo desejo de autocrítica) e, de outro lado, a esquerda indígena e ambientalista, que hoje aparece renovada, fortalecida pelo levante de outubro de 2019, em aliança com novos setores da juventude urbana (e do feminismo).
Não é por acaso que isso acontece no Equador, país que, junto com a Bolívia, no início do ciclo progressista, elaborou e aprovou [em 2008] a mais inovadora constituição política, com grande participação popular, cujo corolário foi a ampliação da fronteira de direitos. Categorias como Estado Plurinacional, Autonomias Indígenas, Bem Viver, Bens Comuns e Direitos da Natureza passaram a fazer parte da gramática política latino-americana, promovidas por diferentes movimentos sociais e organizações indígenas e estimuladas por governos emergentes. Desde o início, porém, ficou evidente a existência de um campo de tensão em que coexistiam diferentes matrizes políticas e narrativas descolonizantes. Com o passar da década, os progressistas se consolidariam, de mãos dadas com uma política extrativista e do personalismo político, deslocando outras narrativas descolonizadoras, indianistas e ambientalistas que promovem o Estado Plurinacional, a defesa dos Direitos da Natureza e as saídas do extrativismo.
Assim, apesar de em 2008 a Constituição de Montecristi ter sancionado os Direitos da Natureza e traçado o caminho da transição para o pós-extrativismo, no calor do boom das commodities, tudo isso rapidamente ficou em segundo plano. Por um lado, o correísmo aprofundou a expansão da fronteira petrolífera (cancelando a Iniciativa Yasuní-ITT, que em 2007 tinha proposto deixar debaixo da terra o petróleo descoberto em uma jazida amazônica) e impondo a megamineração a “sangue e fogo”, uma das atividades extrativas que encontra mais resistência no Equador. Da mesma forma, utilizou dispositivos legais para invalidar a demanda da Iniciativa Popular, proposta pelo movimento cidadão Yasunidos por meio da coleta de assinaturas, depois que o governo decidiu unilateralmente encerrar a Iniciativa Yasuní-ITT e iniciar a exploração petrolífera.
Por outro lado, a resposta ao conflito socioambiental foi a criminalização do protesto, por meio de processos criminais de porta-vozes de organizações indígenas, bem como a retirada do status legal e expulsão de ONGs (Fundación Pachamama, em 2013; ameaça de dissolução da Acción Ecológica, uma das principais ONGs ambientalistas da América Latina, com forte ligação com movimentos sociais e indígenas, em 2009 e 2016; cancelamento de visto e expulsão de consultores estrangeiros ligados a lideranças ambientais, em 2014 e 2015. Poucos se lembram hoje que, no final de 2016, Correa declarou estado de exceção quando os índios Shuar se apoderaram do acampamento de uma mineradora chinesa que havia se instalado na região amazônica sem consulta prévia e após a militarização dos territórios.
Em meio ao boom das commodities, o correísmo consolidou uma liderança popular e uma base eleitoral nacional, impulsionada pelo crescimento econômico e pela redução da pobreza, como aconteceu em outros países latino-americanos. Ao mesmo tempo, emergia não apenas como um governo extrativista, mas também anti-indígena e com dimensões autoritárias, com características e práticas patriarcais inegáveis. Lembremo-nos que Correa desarmou o plano de prevenção e planejamento familiar e da prevenção da gravidez na adolescência com critérios de saúde pública, passando-o para o controle de pessoas próximas do Opus Dei; e que até proibiu que a questão do aborto por estupro fosse discutida na Assembleia Nacional, sancionando quatro de suas companheiras que se atreveram de levantá-la.
Os estragos e a deriva ideológica que isso significou para o partido indígena Pachakutik foram tantos que, em 2017, por ocasião do segundo turno em que se enfrentariam Lenin Moreno e Guillermo Lasso, vários de seus líderes foram convocados a votar em Lasso. O lamentável é que o anticorreísmo acabou sendo tão definidor que essa rejeição forçou posições extremas e indefensáveis. [N.E.: Movidos pelo ressentimento, setores do movimento indígena equatoriano e do Pachakutik também haviam apoiado a tentativa de golpe de Estado contra Correa, em 2010.] Lembremo-nos que as feridas políticas foram e são tão grandes que, para uma parte importante do movimento indígena, Correa não é considerado um político progressista, nem de esquerda, nem muito menos socialista.
Além da heterogeneidade do movimento indígena, hoje, a situação parece ser diferente. Tudo parece indicar não só a existência de novas lideranças, mas também de alianças com setores ecologistas urbanos e feministas, como mencionado. Detalhe importante foi o apelo às redes sociais de setores feministas para que as pessoas não votassem no candidato de Correa, diante das recentes declarações deste em relação ao aborto. Embora suas posições arcaicas tenham uma longa trajtetória, as recentes declarações de Correa associando o aborto legal com “atividade sexual frenética” das mulheres deixam qualquer um que se considere minimamente progressista ou de esquerda sem palavras…
Outro fato a levar em conta é que no dia 7 de fevereiro, junto com as eleições presidenciais, foi realizada uma Consulta Popular vinculante em Cuenca, a terceira maior cidade do país, perguntando à população se concorda em banir a mineração de grande e média escala para proteger cinco rios. Organizações indígenas e ambientalistas fizeram uma forte campanha nacional e internacional, que colocou os paramos [ecossistemas andinos de grande altitude] e os rios no centro da discussão, em defesa da água. O retumbante NÃO à megamineração ultrapassou 80% dos votos, fortalecendo assim uma luta histórica no Equador contra uma das atividades extrativistas que mais provoca resistência dos povos na América Latina.
Trata-se de uma votação que abre caminho também para a consolidação dos dispositivos institucionais existentes que apostam na participação popular de baixo para cima, para deter e colocar limites a um extrativismo depredador. Um extrativismo que não só não pode ser um “motor de desenvolvimento”, que não só põe em perigo os territórios ao gerar zonas de sacrifício, que não só agrava o contexto de crise climática, mas também busca avançar sem o consenso das populações, violando processos de cidadania. As razões para a rejeição do extrativismo não são apenas ambientais, mas também tocam o próprio cerne da democracia, reafirmando a premissa generalizada “Mais Extrativismo, Menos Democracia”. A luta contra a mineração em Cuenca se arrasta há mais de duas décadas e expressa uma crescente aliança popular entre o campo e a cidade. Um dos principais líderes desse processo é o próprio Yaku Pérez, já que, como governador de Azuay, cuja capital é Cuenca, tentou três vezes fazer uma consulta popular sobre o tema, que acabaram sendo bloqueadas pela Corte Constitucional.
A diferença de votos entre Yaku e Lasso é muito pequena. Para o candidato indígena, ir para o segundo turno seria uma excelente notícia, mas não há dúvida de que enfrentaria inúmeros desafios. Ele não só terá que lidar com a crescente demonização vinda do campo hegemônico progressista, que fará todo o possível para mostrar que Yaku não representa a esquerda; também terá que provar com propostas e fatos até que ponto representa uma esquerda ecológica e indianista, que pensa e age na perspectiva da justiça social, e até que ponto pode estabelecer alianças — urbanas e rurais, com os feminismos e outros movimentos sociais — se quer se tornar uma nova alternativa de governo de esquerda.