Publicamos entrevista do economista belga Eric Toussaint, diretor do Comitê pela Anulação das Dívidas Ilegítimas (CDTM) para o jornal L’Anticapitaliste (do Novo Partido Anticapitalista, da França)
Em um artigo recente, você escreve: “o coronavírus é a faísca ou o detonador da crise bolsista e não a causa”. Você pode esclarecer seu pensamento sobre este assunto?
Enquanto a grande mídia e os governos afirmam constantemente que a crise bolsista é causada pela pandemia do coronavírus, eu tenho insistido que todos os elementos de uma nova crise financeira estavam reunidos há vários anos e que o coronavírus é a centelha ou o detonador da crise bolsista e não a causa. A quantidade de material inflamável na esfera financeira tinha atingido a saturação durante vários anos e sabia-se que uma faísca poderia e causaria a explosão: não sabíamos quando a explosão ocorreria e o que a causaria, mas sabíamos que ela viria.
O primeiro grande choque bolsista ocorreu em dezembro de 2018 em Wall Street e, sob pressão de um punhado de grandes bancos privados e da Administração Donald Trump, a Reserva Federal dos EUA (Fed) começou a baixar novamente as taxas. O frenesi da subida dos valores bolsistas recomeçou e as grandes empresas continuaram a comprar de volta suas próprias ações na bolsa de valores para ampliar o fenômeno. Grandes empresas privadas aumentaram o seu endividamento e grandes fundos de investimento aumentaram as suas aquisições de empresas de todos os tipos, incluindo empresas industriais, recorrendo ao endividamento.
Depois, novamente em Wall Street, de setembro a dezembro de 2019, houve uma crise de liquidez muito grande. A Reserva Federal interveio maciçamente, injetando centenas de bilhões de dólares para tentar evitar o colapso dos mercados. O Banco Central Europeu (BCE) e os outros grandes bancos centrais (Reino Unido, Japão, China…) aplicaram aproximadamente o mesmo tipo de política e têm uma responsabilidade muito significativa na acumulação de materiais inflamáveis na esfera financeira.
Naturalmente, o tamanho da redução da produção nos meses seguintes a março de 2020 será sem precedentes em comparação com as crises dos últimos 70 anos. Vai ser enorme. Mas a crise no setor produtivo já havia começado em grande escala em 2019, particularmente no setor automotivo, com uma queda maciça nas vendas na China, Índia, Alemanha, Grã-Bretanha e outros países. Também houve superprodução no setor de equipamentos e fabricação de maquinário na Alemanha, um dos 3 maiores produtores do mundo neste setor.
Houve uma redução muito acentuada no crescimento industrial chinês, que teve consequências graves para os países que exportam equipamentos, automóveis e matérias primas para a China. No segundo semestre de 2019, começou uma recessão no sector da produção industrial na Alemanha, Itália, Japão, África do Sul, Argentina… e em vários sectores industriais dos Estados Unidos.
A pandemia do coronavírus foi o detonador. Qualquer evento sério, e de natureza diferente, poderia ter sido aquele detonador. Por exemplo, uma guerra quente declarada entre Washington e o Irão ou uma intervenção militar direta dos EUA na Venezuela. A crise bolsista que se seguiu teria sido atribuída à guerra e às suas consequências. Da mesma forma, eu teria dito que esta guerra, cujas consequências seriam muito graves, sem qualquer sombra de duvida, teria sido a centelha e não a causa raiz. Portanto, mesmo que exista uma ligação inegável entre os dois fenómenos (a crise bolsista e a pandemia de coronavírus), isso não significa que não devemos denunciar as explicações simplistas e manipuladoras segundo as quais a culpa é do coronavírus.
O que mostra a crise do coronavírus sobre a União Europeia, o seu funcionamento e as relações entre os Estados Membros?
A União Europeia e as suas instituições estão completamente desarmadas perante a pandemia do coronavírus: o Presidente do Conselho Europeu não tem sequer uma equipa de 10 médicos para enviar para a Lombardia ou para Espanha. Por outro lado, a UE está gastando 420 milhões de euros com a Frontex – a sua polícia de fronteira superequipada. A UE não tem hospitais de campanha ou reservas de respiradores ou máscaras para ajudar um país membro. No entanto, está equipado com drones europeus para espionar os movimentos de pessoas em perigo em busca de asilo. E estas pessoas morrem aos milhares todos os anos no Mediterrâneo. Felizmente, Cuba acaba de enviar 50 médicos internacionais para ajudar o povo da Lombardia. Temos de lutar para reavivar o internacionalismo entre os povos.
Você está acompanhando a situação do Terceiro Mundo? Que áreas vão ser mais atingidas? Países produtores de petróleo?… E os países endividados?
Todos os povos do “Sul Global”[1] estão ameaçados pela crise multidimensional do sistema capitalista mundial. A pandemia do coronavírus é um grave problema de saúde pública e o sofrimento humano causado pela propagação do vírus é enorme. Está atingindo maciçamente países do “Sul Global” cujos sistemas de saúde pública, já fracos ou muito frágeis, foram terrivelmente danificados por quarenta anos de políticas neoliberais, e as mortes serão muito altas. Usando o pretexto da necessária austeridade fiscal para pagar a dívida pública, governos e grandes instituições multilaterais como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) generalizaram políticas que deterioraram os sistemas de saúde pública.
Os países do “Sul Global” estão enfrentando uma nova crise de dívida, suas receitas de exportação estão caindo com o colapso dos preços das commodities e o montante da dívida a ser reembolsado é enorme. Se eles querem enfrentar a pandemia de Covid19 , devem suspender o pagamento da dívida pública e usar o dinheiro para a saúde pública.
O que deve ser feito?
Devemos lutar pela implementação de um amplo programa anticapitalista que inclua uma série de medidas fundamentais: a suspensão do pagamento da dívida pública seguida da anulação de dívidas ilegítimas, sejam elas privadas ou públicas; a expropriação sem compensação dos principais acionistas dos bancos, a fim de criar um verdadeiro serviço público de poupança, crédito e seguros sob controlo cidadão; o fechamento das bolsas de valores; a criação de um verdadeiro serviço público de saúde nacional gratuito; a expropriação sem compensação de empresas farmacêuticas e laboratórios de investigação privados e a sua transferência para o sector público sob controlo cidadão; a expropriação sem compensação de empresas do sector energético (para poder levar a cabo a luta contra a crise ecológica de forma planejada) e muitas outras medidas radicais e fundamentais, incluindo medidas de emergência para melhorar imediatamente as condições de vida da maioria da população. Os tratados de livre comércio devem ser revogados e a produção deve ser relocalizada, tanto quanto possível, em circuitos curtos de produção e distribuição.
A resposta necessária à pandemia do coronavírus deve ser uma oportunidade de avançar para uma verdadeira revolução para mudar radicalmente a sociedade no seu modo de vida, propriedade e modo de produção. Esta revolução só terá lugar se as vítimas do sistema se tornarem auto-activas e auto-organizadas para desalojar o 1% e os seus lacaios dos vários centros de poder, a fim de criar um verdadeiro poder democrático. É necessária uma revolução ecológica e socialista feminista e autogestionária.
Tradução: Alain Geffrouais
[1] O termo “Sul Global” está sendo usado cada vez mais para se referir ao que era comumente chamado de “Terceiro Mundo” ou “países em desenvolvimento”: um conjunto de países que compartilham “um conjunto de vulnerabilidades e desafios”. (Nota do Anticapitaliste).