Não é o gasto público excessivo que leva a dívida a níveis insustentáveis mas as condições impostas pelos credores. As classes dirigentes locais unem forças com grandes potências financeiras estrangeiras para submeter os povos a um mecanismo de transferência de riqueza permanente.
Martin Mosquera entrevista Eric Toussaint, Esquerda.net, 24 de julho de 2022
Martín Mosquera: Por favor, faça um resumo de alguns dos principais pontos do seu livro “O Sistema da Dívida. História das Dívidas Soberanas e do seu Repúdio”.
No meu livro “O Sistema da Dívida”, publicado em francês em 2017 e depois em grego e espanhol em 2018(link is external), em inglês(link is external) e em italiano(link is external) em 2019, em árabe e polaco em 2020 [2], creio ter conseguido demonstrar o papel fundamental da dívida como forma de subordinação dos Estados. Karl Marx já tinha comentado sobre isso, ele usou uma fórmula muito forte em “O Capital”: «A dívida pública, por outras palavras, a alienação do Estado, seja ele despótico, constitucional ou republicano, marca a era capitalista» [3].
Na mesma passagem de “O Capital”, Marx acrescentava um comentário que ainda hoje é totalmente relevante: «Daí que seja inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público converte-se no credo do capital. E ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede o seu lugar para a falta de fé na dívida pública».
Rosa Luxemburgo no seu livro de 1913 “A Acumulação do Capital” tinha desenvolvido a contribuição de Marx sobre a dívida pública [4]. Neste livro, Rosa Luxemburgo analisa o papel da dívida pública(link is external) durante a independência da América Latina. Ela também analisa o papel da dívida pública no Egito na segunda metade do século XIX, o que levou à colonização do Egito pela Grã-Bretanha a partir de 1882 [5].
O papel fundamental da dívida como forma de subordinação do Estado
O que eu acho que Rosa Luxemburgo trouxe à análise com o estudo da independência latino-americana (contemporânea da independência grega) é que a sua forma de endividamento significa que eles ficaram imediatamente subordinados, como países independentes, aos centros imperialistas, especialmente à Grã-Bretanha. Por outras palavras, a América Latina libertou-se do império espanhol e a Grécia do império otomano para ficarem sob o controle do governo britânico, mas também dos franceses, porque o capital francês era muito ativo com os seus investimentos tanto na América Latina quanto nas margens do Mediterrâneo (na Grécia, Tunísia e Egito, por exemplo).
Também mostro a ligação, desde os primeiros anos da independência da América Latina, entre a dívida e a assinatura de acordos de livre comércio. Isto é importante porque estes dois instrumentos de dominação ainda estão em vigor hoje em dia. É claro que também há dominação através de investimentos, através da exploração dos trabalhadores dos países periféricos pelo grande capital nacional e transnacional, mas ela assume principalmente a forma de dívida, seguindo a lógica dos acordos de livre comércio e trocas desiguais já analisados por Marx. Este é o primeiro tema do meu livro “O Sistema da Dívida”.
Uma grande parte da esquerda vê a questão da dívida da perspetiva de uma contradição Norte-Sul, Centro-Periferia. Qual é o seu ponto de vista?
Uma segunda tese mostra que a contradição sobre a questão da dívida não pode ser pensada apenas como um conflito entre os países do Sul, lutando pela sua independência, e os centros imperialistas, porque as classes dirigentes locais têm desempenhado um papel fundamental desde os anos 1810 e 1820, no momento decisivo das lutas pela independência e imediatamente depois. E estou a falar das classes dirigentes, não da classe capitalista, porque elas ainda não eram inteiramente compostas por capitalistas modernos, longe disso. Entre as classes dominantes locais estavam a classe tradicional dos proprietários da terra, o setor dos ricos comerciantes e o setor dos proprietários de minas. Estes três setores vieram a constituir a burguesia moderna no final do século XIX e no início do século XX. Estas classes dirigentes tradicionais no início das independências e a burguesia moderna [6] que se seguiu foram atores fundamentais no endividamento, tanto através das suas pressões por dívidas internas como externas.
As classes dirigentes locais organizaram, durante os últimos dois séculos, a fuga de capitais. Isto ainda hoje é verdade. Consideremos o exemplo do que aconteceu em 2018 na Argentina. O ex-presidente Mauricio Macri pediu ao FMI um crédito de mais de 50 bilhões de dólares. Uma grande parte da quantia desembolsada pelo FMI voltou para o exterior devido às ações dos capitalistas argentinos. O mecanismo é o seguinte: o Estado pede emprestado dinheiro em moeda estrangeira, que é capturado pelas classes dominantes, que enviam grande parte dele para lugares «seguros» – por exemplo, os Estados Unidos. Com parte dos dólares investidos no Norte, os capitalistas compram a dívida pública soberana do seu país, o que lhes proporciona uma renda garantida pelo Estado.
Isto também explica por que na Argentina, Equador, Venezuela, Colômbia ou México, nunca houve uma burguesia que realmente lutasse pelo não pagamento da dívida.
Um caso em que a dívida foi denunciada, num contexto de grandes lutas populares e mudanças de regime, foi o de Benito Juárez no México uma primeira vez em 1861 e uma segunda vez em 1867. Um terceiro repúdio/suspensão também ocorreu no México durante a revolução de 1910-1920, quando a dívida contraída pelo ditador Huerta em 1913 (um dos responsáveis pelo assassinato do presidente Madero, que tinha posto fim à ditadura de Porfirio Diaz) foi repudiada pelo presidente Venustiano Carranza. Este também foi o caso na Costa Rica, durante uma revolução democrática contra a ditadura de Tinoco em 1919. Eu analiso estes e outros eventos importantes em detalhe no livro “O Sistema da Dívida”.
Repúdios ou suspensões prolongadas dos pagamentos da dívida ocorreram em períodos de revoltas populares e/ou grandes contradições entre diferentes setores das classes dominantes.
Portanto, é necessário compreender o papel extremamente importante das classes dirigentes locais e, no período mais moderno, do grande capital local, que é totalmente a favor da dívida. Digo isto porque existe um setor da esquerda que simplifica as coisas apresentando o problema da dívida apenas em termos da contradição nação/império, sem entender que em geral a classe capitalista é a favor do recurso à dívida pública interna e externa.
Em geral, a imprensa dominante e os credores do Norte afirmam que é o sobre-endividamento do Sul que leva a crises de endividamento. O seu livro fornece outra explicação, não é assim?
Uma terceira tese considera o facto de que as crises da dívida são geralmente geradas por períodos de fluxos e refluxos de capitais dos centros imperialistas. Assim, as crises da dívida na América Latina, assim como as da Europa periférica ou periferias como o Egito, Tunísia e países asiáticos, foram causadas pelas crises financeiras dos centros imperialistas.
Isto também tem a ver com os ciclos longos de desenvolvimento capitalista, retomando um conceito desenvolvido pelo economista marxista Ernest Mandel, tanto expansivas como depressivas [7]. Neste nível, há uma diferença entre a minha explicação e a explicação de Rosa Luxemburgo sobre a crise argentina com o banco Baring em 1890. Rosa, influenciada pela base de informações que tinha, pensou que a Argentina tinha de alguma forma causado a crise, quando na verdade o problema veio de Londres (o principal centro financeiro mundial na época) e a crise financeira na Inglaterra. Há períodos de empréstimos frenéticos para reciclar os capitais abundantes que são seguidos por crises financeiras, interrupções dos fluxos de capitais e repatriações que geram uma impossibilidade de refinanciamento da dívida e, consequentemente, inadimplência, suspensões de pagamento etc.
Períodos de empréstimos frenéticos para reciclagem de capital abundante nos principais países imperialistas do Norte são seguidos por crises financeiras, interrupções dos fluxos de capitais e repatriações que geram uma impossibilidade de refinanciamento da dívida e, consequentemente, no Sul, inadimplências, suspensões de pagamento etc.
É importante tirar lições do passado porque nos permite imaginar cenários para o futuro. No caso de os bancos centrais do Norte voltarem a aumentar significativamente as taxas de juros, causando uma nova repatriação de capital para os EUA ou Europa, muitos países periféricos poderão enfrentar grandes problemas de refinanciamento e entrar numa nova fase de crise da dívida com suspensão de pagamentos. Hoje temos uma explosão da dívida pública e privada que ainda não levou a uma crise generalizada de pagamentos. Mas isso pode acontecer nos próximos meses ou anos, dependendo, mais uma vez, se há uma crise financeira no Norte ou se os bancos centrais aumentam as taxas de juros nos centros imperialistas.
O Sri Lanka, que implementou sistematicamente políticas neoliberais desde os anos 80 e fez numerosos acordos com o FMI e tem seguido suas recomendações, entrou em suspensão de pagamentos(link is external) desde abril de 2022. Esta é a primeira vez desde a independência, em 1948, que o país entrou em inadimplência total e o primeiro país asiático a fazer isso nos últimos 20 anos. No caso do Sri Lanka, é uma série de choques externos e, em particular, o enorme aumento do preço dos alimentos e dos combustíveis (inteiramente importados), que o impede de continuar a pagar a sua dívida. Estes dois choques externos são causados pela evolução nas economias do norte com a guerra Rússia-Ucrânia e os seus efeitos sobre a economia global. O Paquistão, também, se está a aproximar(link is external) de uma situação de dívida muito difícil.
O pensamento dominante tanto no Sul como no Norte é que a suspensão dos pagamentos ou o repúdio das dívidas leva a uma interrupção no financiamento e a uma catástrofe para a economia e a população do país em questão. No seu livro, demonstra que isso não é verdade.
Uma quarta tese desenvolvida no livro “O Sistema da Dívida”: o repúdio de dívidas não conduza uma catástrofe económica e social. E, ao contrário de uma afirmação comum, os países que repudiaram as suas dívidas não foram excluídos duradouramente das fontes externas de financiamento.
Portugal, que repudiou a dívida em 1837(link is external), principalmente aos credores franceses, pôde continuar a emitir dívida pública nos mercados financeiros ao longo do século XIX. O mesmo aconteceu com os Estados Unidos, onde as dívidas foram repudiadas quatro vezes durante o século XIX (em 1837, em 1865, durante a década de 1870 e em 1898). Isto também é verdade para o México. Em 1867, o México, após o primeiro repúdio em 1861, repudiou a dívida contraída durante a ocupação francesa de 1862-1867 pelo regime de Maximiliano da Áustria com banqueiros franceses. Apesar deste repúdio, o México recebeu imediatamente empréstimos dos Estados Unidos porque, após a guerra civil que assolou o país de 1861 a 1865, o governo dos Estados Unidos estava a procurar mercados e clientes. Como resultado, Londres, que estava em concorrência com Paris e os Estados Unidos, também concedeu empréstimos ao México. E quinze anos mais tarde, a França assinou novos tratados com o México. Por outras palavras, após o repúdio desta dívida, o México não foi excluído de nenhum financiamento externo.
Se tomarmos o caso da Rússia soviética, que repudiou a dívida czarista em fevereiro de 1918(link is external), ela também não foi cortada do financiamento externo por muito tempo. Foi realizada uma conferência em Génova em 1922 sobre a dívida reclamada da Rússia e a delegação soviética reiterou o seu repúdio, afirmando em substância: «Poderíamos mudar nossa posição se vocês – os governos dos países credores – garantissem investimentos para a reconstrução da Rússia soviética, se vocês nos concedessem uma redução muito grande no montante reclamado. Nesse caso, poderíamos retomar os pagamentos daqui a 30 anos, em 1952». Na conferência, que durou um mês, os governos das principais potências recusaram esta proposta. Mas então, nos anos seguintes, todos eles começaram a conceder novos créditos à URSS, que acabou por sair vitoriosa da situação.
A conclusão é óbvia: Um governo não só pode suspender o pagamento, mas também repudiar uma dívida e ainda encontrar capitalistas ou governos que queiram conceder crédito, como mostram os impressionantes casos mexicanos e russos (da era soviética), entre outros.
A maioria dos advogados que defendem o sistema capitalista e as grandes instituições como o Banco Mundial e o FMI dizem que a noção de dívida odiosa não tem uma base legal sólida. O que acha?
Uma quinta tese apresentada no livro “O Sistema da Dívida” demonstra a atualidade da doutrina da dívida odiosa, que foi desenvolvida na década de 1920 com base nas muitas disputas de dívida soberana que ocorreram entre o final do século XVIII e o início do século XX em todo o mundo.
A doutrina da dívida odiosa desenvolvida em 1927 pelo jurista Alexander Sack [8] com base num século e meio de litígio sobre dívidas soberanas consiste na afirmação de que o princípio da continuidade das obrigações estatais não se aplica no caso de dívidas odiosas e mudanças de regime. Se uma dívida é odiosa, ela não precisa ser reembolsada, ela é nula.
De acordo com a doutrina legal da dívida odiosa teorizada por Alexander Sack, uma dívida é «odiosa» quando duas condições essenciais são satisfeitas:
- A ausência de benefício para a população: a dívida foi contraída não no interesse do povo e do Estado, mas contra os seus interesses e/ou no interesse pessoal dos dirigentes e das pessoas próximas a eles.
- A cumplicidade dos credores: os credores sabiam (ou estavam em condições de saber) que os fundos emprestados não iriam beneficiar a população.
De acordo com esta doutrina, a natureza despótica ou democrática de um regime é irrelevante.
No livro “O Sistema da Dívida”, mostro que esta doutrina ainda é relevante hoje, e até mesmo o governo dos EUA a invocou em 2003 para convencer as grandes potências a cancelar 80% da dívida do Iraque considerada odiosa.
Embora esta doutrina seja combatida pelos credores, ela tem de uma forma ou de outra inspirado muitos cancelamentos totais ou parciais de dívidas na segunda metade do século XX e desde o início do século XXI. Aqui estão uma série de exemplos citados no livro “O Sistema da Dívida”: o repúdio de dívidas pela China revolucionária em 1949-1952; o repúdio de dívidas à Holanda pela Indonésia em 1956; o repúdio de dívidas por Cuba em 1959-1960; o repúdio de dívidas coloniais pela Argélia em 1962; o repúdio pelo Irão, em 1979, das dívidas contraídas pelo Xá para comprar armas; o repúdio pelas três repúblicas bálticas das dívidas herdadas da URSS em 1991; o cancelamento da dívida da Namíbia com a África do Sul pelo governo de Nelson Mandela, em 1994; o cancelamento da dívida colonial do Timor-Leste em 1999-2000; o cancelamento de 80% da dívida do Iraque em 2004; o repúdio do Paraguai à dívida dos bancos suíços em 2005; o cancelamento pela Noruega em 2006 dos seus créditos a cinco países (Equador, Peru, Serra Leoa, Egito e Jamaica), em relação a um contrato de venda de barcos de pesca em 2006; o cancelamento em 2009 de parte da dívida do Equador que tinha sido identificada como ilegítima pela comissão de auditoria em 2007-2008…
Em resumo, no livro O Sistema da Dívida, mostro que desde o século XIX, da América Latina à China, passando pelo Haiti, Grécia, Tunísia, Egito e vários outros países, a dívida pública tem sido usada como arma de dominação e espoliação. Em última análise, é a combinação de dívida e livre comércio que é o fator fundamental na subordinação de economias inteiras a partir do século XIX. As classes dirigentes locais uniram forças com as grandes potências financeiras estrangeiras para submeter os seus países e a sua população a um mecanismo de transferência permanente de riqueza dos produtores locais para os credores, sejam eles nacionais ou estrangeiros. As crises surgem primeiro nos países capitalistas mais poderosos ou são o resultado de suas decisões unilaterais que, por efeito cascata, levam a crises em grande escala nos países periféricos endividados. Não é o gasto público excessivo que leva a dívida a níveis insustentáveis, mas sim as condições impostas pelos credores locais e estrangeiros.
Muitas vezes na história, após grandes mobilizações populares ou crises de regime, cancelamentos de dívidas e repudiações têm ocorrido repetidamente.
Não há razão para que isto não aconteça novamente, especialmente porque cada vez mais países estão a enfrentar aumentos consideráveis nas suas dívidas públicas e as dificuldades de pagamento estão novamente a começar a acumular-se.
Notas