O México é o único país ex-colonizado que, no século XIX e na primeira metade do século XX, conseguiu por seus próprios meios impor derrotas de monta aos seus credores. Em 1861 repudiou uma parte da dívida externa e interna que lhe era reclamada e obteve uma vitória em 1867, depois de ter repelido um grande exército francês. A partir de 1914 e durante mais de 30 anos, sob a pressão de uma verdadeira revolução popular, o México suspendeu mais uma vez o pagamento da sua dívida. Durante este período, com altos e baixos nas mobilizações populares, foram implementadas profundas reformas económicas e sociais e, após a Segunda Guerra Mundial, a economia mexicana saiu reforçada.
Esta história pouco conhecida merece destaque, por ser inspiradora para os povos actuais. Mostra que a luta resoluta de um país dominado contra as grandes potências e as finanças internacionais pode gerar grandes progressos sociais.
Prova também que nenhuma vitória é definitiva a fortiori se quem governa a puser em causa.
Este estudo consagrado ao México, para o período que vai do início do século XIX à Segunda Guerra Mundial, mostra que um estado periférico pode repudiar vitoriosamente uma dívida, mesmo quando ela é reclamada sob a ameaça armada das potências imperiais.
Este artigo é o sexto de uma série que incide sobre «A Dívida como Instrumento de Subordinação da América Latina». Para uma visão do conjunto dos artigos, clique aqui.
As classes dominantes locais emprestavam ao estado colonial espanhol
A Espanha conquistou o México a ferro e fogo a partir de 1519 [1]. Madrid chamou Nova Espanha à colónia. A guerra de independência começou em 1810 e terminou com a vitória dos independentistas em 1821. No final do século XVIII as classes dominantes locais, incluindo o clero, emprestavam à taxa de 5 % ao Estado colonial e também à Metrópole. Com efeito, os proprietários das minas, os grandes proprietários de terras, os comerciantes ricos espanhóis radicados no México e o clero mexicano emprestavam a Madrid grandes montantes a taxas de juro que oscilavam entre os 5 e os 6 %. Estes empréstimos serviam para financiar as guerras levadas a cabo pela Espanha no continente europeu. Foi assim que os títulos espanhóis comprados pelas classes dominantes do México contribuíram para a guerra da Espanha contra a Inglaterra em 1872 e contra a França revolucionária em 1793-1794. Quando começou a guerra da independência do México em 1810-1811, as classes dominantes fecharam a torneira do crédito ao governo do México e de Madrid: o risco era muito grande [2]. Só os comerciantes espanhóis residentes no México continuaram a emprestar dinheiro ao governo colonial em 1813, à taxa de 5 % [3], pois interessava-lhes a derrota dos independentistas e estavam convencidos de que, em caso de derrota do campo espanhol, seriam indemnizados por Madrid.
Repudiar a dívida, confiscar os bens da Igreja ou realizar um empréstimo para a reembolsar?
A luta pela independência foi levada a cabo, com raras excepções, por sectores ricos da população de origem europeia que, tal como o resto da América Latina, queriam libertar-se do jugo colonial [4]. Tal como sucedeu no resto do continente nessa mesma época, o movimento foi dirigido pelos «crioulos», filhos e filhas de pais de ascendência europeia nascidos nas colónias espanholas. Os líderes da independência deixavam muito pouco espaço às populações indígenas, que representavam cerca de 80 % dos 6 milhões de habitantes do México [5]. No dia seguinte à independência de 1821, Iturbide, o novo chefe de Estado, viu-se perante o dilema de pagar ou não a dívida do regime anterior. Imaginou três opções: primeira, repudiar a dívida, pois tratava-se de uma dívida acumulada no interesse da potência colonial que tinha explorado o país; segunda, confiscar os bens da Igreja, pô-los à venda e utilizar as receitas para reembolsar a dívida; terceira, pedir um empréstimo a Londres para reembolsar as dívidas antigas [6]. Para não entrar em conflito com as classes dominantes locais que detinham grande parte da dívida colonial, Iturbide decidiu não repudiar a dívida. Da mesma forma, para não inquietar o poderoso alto clero, decidiu não nacionalizar os bens da Igreja. E contra o interesse do povo optou por pedir empréstimos a Londres e consagrar uma parte significativa do empréstimo ao reembolso da dívida colonial.
Entrada de Iturbide com o Exército Trigarante na capital, 27/09/1821
Às classes dominantes mexicanas, ou pelo menos a um sector maioritário delas, interessava que o Tesouro público do país se envidasse no exterior…
No artigo «A Dívida como Instrumento de Conquista Colonial do Egipto» foram rapidamente analisados os empréstimos contraídos pelo México em Londres em 1824-1825. São eles que estão na raiz de uma cadeia de acontecimentos que decorreram ao longo do século XIX e que condicionaram fortemente a história do país no que diz respeito às relações com as potências estrangeiras.
Os termos dos empréstimos eram perfeitamente abusivos, bem como a sua gestão.
O México comprometeu-se a reembolsar 7 por cada 1 emprestado
Em fevereiro de 1824 o México emitiu um pedido de empréstimo a Londres, por intermédio do banco Goldsmith and Company. As condições eram leoninas, favorecendo de maneira abusiva a firma Goldsmith. Embora o México tenha contraído uma dívida no valor de 16 milhões de pesos (3,2 milhões de libras esterlinas) (NB: daqui em diante, £ = libras esterlinas), apenas recebeu cerca de 5,7 milhões de pesos (1,14 milhões de £), ou seja 35 % do montante do empréstimo. Tendo em conta os juros a pagar, recebeu 5,7 milhões de pesos e comprometeu-se a reembolsar, num período de 30 anos, 40 milhões de pesos (16 milhões de pesos em capital, acrescidos de 24 milhões de pesos a título de juros, cuja taxa era de 5 %). Dito de maneira mais simples: por cada 1 que o México recebeu, comprometeu-se a reembolsar 7. Logo à partida, a Goldsmith teve um lucro enorme.
Em 1825 o México contraiu outro empréstimo no mesmo montante (16 milhões de pesos, ou seja 3,2 milhões de £) junto de outra sociedade financeira, a Barclay and Company [7], e recebeu 6,5 milhões de pesos (1,3 milhões de £). Comprometeu-se a pagar 44,8 milhões de pesos (16 milhões de pesos de capital mais 28,8 milhões de pesos de juros, fixados a 6 %).
Contrariamente à narração oficial, a suspensão do pagamento da dívida mexicana e de outros países da América Latina (assim como a Grécia) que ocorreu a partir de 1827 não foi causa da crise que afectou a finança londrina, mas sim consequência.
Tão-pouco foi a consequência das perturbações que continuaram a abalar os países da América Latina e outros como a Grécia.
A crise estourou subitamente em Londres a partir de dezembro de 1825, em consequência da bolha especulativa financeira que se tinha desenvolvido nos anos precedentes e que dizia respeito sobretudo às actividades internas britânicas. Além disso, na vaga de febre especulativa, os banqueiros de Londres concederam empréstimos massivos a países que estavam em luta pela independência (as batalhas decisivas conduzidas por Simón Bolívar decorreram na América Latina em 1824; os independentistas gregos estavam numa situação frágil no conflito com o Império Otomano…). Quando a crise rebentou em Londres, os países da América Latina e a Grécia estavam a pagar normalmente as suas dívidas externas.
No caso do México, as duas firmas financeiras, a Goldsmith por um lado e a Barclay por outro, que tinham emitido títulos mexicanos em 1824-1825, obtiveram lucros consideráveis à custa do país. Note-se ainda que a Goldsmith tinha cobrado antecipadamente, no empréstimo de 1824, os juros e o reembolso do capital correspondentes aos anos de 1824-1825. Além disso, do empréstimo de 1825, realizado por intermédio da Barclay, um quarto serviu para pagar o reembolso da Goldsmith respeitante ao ano de 1826! A Goldsmith especulou com os títulos mexicanos: embora o banco os tenha comprado ao México por 50 % do seu valor, vendeu uma grande parte por 58 % do seu valor. Depois, no início de 1825, quando a euforia bolsista atingiu o auge, vendeu-os a 83 % do seu valor [8].
Ora a firma Goldsmith abriu falência em Londres em fevereiro de 1826 e a Barclay em agosto de 1826 [9]. Portanto é evidente que o México não foi responsável, foi apenas uma das vítimas.
Por causa da falência da Barclay, o México perdeu 304.000 £ que foram cobradas pela firma como pré-pagamento dos juros e do início do reembolso de capital respeitantes ao ano de 1826 e parte de 1827.
As condições dos empréstimos de 1824-1825 criaram uma espiral de endividamento
Se o México e vários outros países entraram em incumprimento [br: inadimplência] a partir de 1 de outubro de 1827, foi porque a torneira do crédito, que estava amplamente aberta em Londres em 1824-1825, se fechou subitamente a partir de dezembro de 1825. Ora o México, à semelhança dos restantes países devedores, estava a contar com novos empréstimos vindos de Londres para reembolsar os precedentes. As condições de endividamento que esses países tinham aceitado impossibilitavam a continuação do reembolso, caso não houvesse novos empréstimos. Por outras palavras, as condições dos empréstimos de 1824-1825 eram a tal ponto desfavoráveis aos jovens países devedores, que lhes era impossível reembolsar sem recorrer a novos empréstimos.
No início da década de 1830, Lorenzo Zavala, ministro mexicano das Finanças [10], afirmou que o México devia renunciar a pedir empréstimos em Londres, porque os seus recursos económicos eram suficientes [11]. Note-se que ele era presidente do congresso constituinte aquando da realização dos empréstimos de 1824-1825. Lucas Alamán, que era ministro em 1824, também reconheceu a posteriori, em 1852, que o empréstimo de Londres fora funesto [12]. José Mariano Michelena, que em 1825 substituiu Borja Migoni, que tinha negociado os empréstimos em 1824 e 1825, denunciou as taxas de juro usurárias [13]. No entanto, J. Bazant, numa obra publicada em 1968 e que goza de grande prestígio nos meios académicos, afirma erradamente que o México fez bem em endividar-se em Londres e que, feitas as contas, as condições de empréstimo não eram tão más quanto isso [14]. O principal argumento de Bazant consiste em dizer que outros países aceitaram as mesmas condições tão pouco favoráveis. Não é um argumento convincente. É preciso ter em conta critérios objectivos, tais como o preço da emissão, a taxa de juro real, ou as comissões pagas. O México viu-se sujeito a condições que deveria ter rejeitado. Seja como for, o empréstimo da Goldsmith de 1824 é de longe o pior dos acordos feitos com países da América Latina na década de 1820 [15]. De resto, não é pelo facto de outros governos terem aceitado empréstimos contrários ao interesse real do seu país que os empréstimos realizados pelo México se tornam legítimos. Para mais, países como o Paraguai e o Egipto [br: Egito], nessa mesma época, recusaram recorrer a empréstimos externos e contudo realizaram grandes avanços. Só quando o Egipto aceitou, a partir da década de 1850, recorrer a empréstimos externos massivos, é que as coisas começaram a correr mal [16].
A estreita ligação entre dívida interna e dívida externa
Em contraste com os empréstimos concedidos ao Estado colonial espanhol a taxas de juro de 5 a 6 %, as classes dominantes locais emprestavam a taxas usurárias (12 a 30 %, por vezes mais [17]) ao novo Estado mexicano. Os empréstimos externos serviam em parte para reembolsar a dívida interna. Aos mexicanos ricos (fossem eles latifundiários, grandes comerciantes ou proprietários de minas ou caminhos-de-ferro [br: estrada de ferro, ferrovia]) que emprestavam ao Estado interessava que as autoridades continuassem a endividar-se no estrangeiro. Esses empréstimos serviam em grande medida para reembolsar a dívida interna e traziam-lhes outras vantagens: eram uma fonte de lucro para as classes dominantes mexicanas que tinham adquirido títulos mexicanos no estrangeiro; constituíam uma fonte de divisas estrangeiras de que os capitalistas mexicanos necessitavam para importar produtos estrangeiros (equipamentos, bens de consumo, armas, etc.).
O facto de financiarem uma série de actividades do Estado por meio de empréstimos permitia também às autoridades mexicanas não aumentarem os impostos pagos pelos mais ricos.
A utilização dos dois empréstimos de 1824-1825 ilustra bem o que acaba de ser dito: 25 % do montante serviram para reembolsar a dívida interna; 15 % serviram para comprar armas em Londres; 8 % para comprar tabaco aos grandes produtores mexicanos (esse tabaco era em seguida revendido pelo Estado); 52 % para as despesas correntes do Estado (pagamento de salários em atraso, pensões, custos de funcionamento) [18]. Ou seja, 0 % para investimentos de desenvolvimento ou para despesas sociais.
O exemplo mexicano é muito interessante do seguinte ponto de vista: houve capitalistas mexicanos que adoptaram a nacionalidade inglesa ou francesa para beneficiarem da protecção dos governos de Londres ou Paris. Ora o pretexto usado pela França, pela Grã-Bretanha e pela Espanha para agredirem militarmente o México em finais de 1861 foi justamente a obtenção do reembolso das dívidas mexicanas a cidadãos franceses, britânicos ou espanhóis. Sucede que uma parte desses cidadãos era na realidade ricos mexicanos residentes no México mas que tinham adquirido a nacionalidade dessas potências europeias, a fim de obterem o apoio destas nos seus conflitos contra o Estado. Eram designados em língua espanhola «vende patria».
As reestruturações da dívida nas décadas de 1830 e 1840
Como já foi dito, o México suspendeu o pagamento da dívida externa (os empréstimos Goldsmith e Barclay) em outubro de 1827 e o Governo tentou recorrer à dívida interna, aceitando em 1828 taxas muito elevadas, pois as classes dominantes locais mostraram-se muito exigentes: em 1 de junho de 1828 Manuel Lizardi concedeu um empréstimo à taxa anual de 536 %; em 23 de julho de 1828 Angel Gonzales emprestou a 232 % [19]. Note-se que a sociedade financeira Manuel Lizardi fez o papel, 9 anos mais tarde em Londres, de intermediário entre o Governo mexicano e os detentores dos títulos Goldsmith e Barclay, e à conta disso embolsou comissões consideráveis (ver mais à frente) [20].
O país embrenhou-se em negociações com os credores de Londres, que em 1829 constituíram uma comissão de detentores dos títulos mexicanos. Em 1831 as autoridades mexicanas fizeram enormes concessões aos credores. Sendo os juros em atraso para o período de outubro de 1827 a abril de 1831 na ordem dos 1,1 milhões £, aceitaram que as quantiass em falta fossem transformadas em nova dívida, no montante de 1,6 milhões £ (é a chamada capitalização dos juros, ou seja, a transformação dos juros não pagos em capital firme [N. do T.: sobre os quais devem portanto ser pagos mais juros]).
Qual era a situação depois do acordo de 1831 entre o México e os credores?
O México recebeu em 1824-1825 cerca de 2,44 milhões £, reembolsou 2 milhões £ na forma de juros e de reembolso do capital entre 1824 e 1827, não recebeu qualquer nova tranche até 1831 e viu-se a braços com uma dívida aumentada: passou de 6,4 milhões £ para 6,85 milhões £.
No caso do empréstimo Goldsmith de 1824, o México reembolsou, entre fevereiro de 1824 e julho de 1827, 1,57 milhões £, embora só tenha recebido 1,13 milhões £ ao todo [21]. Devia ter repudiado o empréstimo, tendo em conta o carácter leonino do contrato, tanto mais quanto a sociedade Goldsmith tinha ido à falência em 1826. Ora em 1831 o México aceitou um reconhecimento da dívida restante devida no montante de 2,76 milhões £, relativa ao empréstimo Goldsmith [22].
Em 1831 o México retomou os pagamentos externos durante um ano. Em 1837, apesar de não ter recebido qualquer empréstimo externo, o México assina novo acordo com os credores de Londres. A dívida volta a crescer: passa de 6,85 milhões £ para 9,3 milhões £. O México efectua pagamentos de juros e de amortizações do capital de 1842 a 1844.
Nova negociação tem lugar em 1846, durante a qual o mexicano Manuel Lizardi obtém lucros consideráveis e fraudulentos à custa do seu país e em proveito da comissão de credores. Apesar dos pagamentos efectuados em 1842-1844, a dívida mexicana passa de 9,3 milhões £ a um pouco mais de 10 milhões £, sem que haja qualquer nova entrada de créditos. Trata-se de uma habilidade escritural em que os credores saem a ganhar, simulando um alívio ilusório da situação do México. A comissão cobrada por Manuel Lizardi elevou-se a 876.000 £. Depois de embolsar essa quantia, Manuel Lizardi dissolve a sociedade financeira, a fim de escapar a problemas futuros.
Territórios perdidos pelo México para os EUA em 1848
Em 1847 os EUA declaram guerra ao México, para se apropriarem de uma enorme porção do seu território. Apoderam-se de metade do território mexicano, anexando os actuais estados do Texas, Nevada, Utah, Colorado, Novo México, Arizona e Califórnia. Ocupam momentaneamente a capital do México.
Depois da guerra, Washington paga uma compensação pelos territórios conquistados (15 milhões de pesos mexicanos, cerca de 3 milhões £). Grande parte dessa quantia serviu para reembolsar a dívida interna às classes dominantes locais e para retomar o pagmento da dívida externa de 1851 a 1853 (trata-se ainda do pagamento dos empréstimos de 1824-1825) [23].
As convenções internacionais funestas assinadas pelo México entre 1851 e 1853 com a Grã-Bretanha, a França e a Espanha
Uma convenção imposta pela Grã-Bretanha, feita sob chantagem
Em dezembro de 1851, o México concordou em assinar uma convenção internacional com a Grã-Bretanha, na qual reconheceu uma dívida à Grã-Bretanha e se declarou pronto a indemnizar pessoas e empresas britânicas que tivessem sofrido danos por parte das autoridades mexicanas no passado: tratava-se da dívida interna comprada por firmas britânicas e cujo pagamento tinha sido suspenso. Esta convenção foi imposta pela Grã-Bretanha sob chantagem: se o México quisesse emitir novos títulos em Londres, teria de assinar este tipo de tratado internacional. Se não assinasse, arriscava-se a ser confrontado com uma intervenção militar britânica com vista a obter justiça para os seus súbditos. Além de favorecer os súbditos e empresas britânicas, concedendo-lhes reembolsos perfeitamente exagerados, a convenção continha uma disposição ainda mais nociva e escandalosa, que merece uma explicação. A firma de um capitalista mexicano obteve, graças a este tratado, a promessa de pagamento de uma grande indemnização, graças ao facto de o seu proprietário Martinez del Rio ter obtido a nacionalidade britânica em 1843. Essa firma mexicana, que tinha comprado títulos da dívida mexicana, conseguiu dar um carácter internacional a essa dívida, graças à naturalização do seu patrão [24].
Nesse mesmo ano o México assinou um tratado semelhante com a Espanha. Outros dois se seguiriam ao longo dos anos 1852-1853 [25]. Entre 1851 e 1853, o México assinou três convenções semelhantes com a França [26]. Segundo J. Bazant, metade da dívida reconhecida pelo México nesses acordos internacionais era na realidade detida por capitalistas mexicanos que tinham adoptado a nacionalidade britânica ou espanhola.
Ao imporem essas convenções ao México, a Grã-Bretanha, a França e a Espanha visavam dotar-se de um instrumento internacional que lhes permitisse coagir o país. A partir do momento em que o México assinou, perdeu uma parte da sua soberania e deu às potências estrangeiras um argumento que lhes permitiria declarar a guerra em caso de não reembolso da dívida. Até essa data os tribunais mexicanos recusavam as queixas dos súbditos britânicos, espanhóis ou franceses, quando estes apresentavam reclamações referentes à dívida interna. Por idênticas razões, os tribunais estrangeiros não podiam dar seguimento às queixas dos seus cidadãos e empresas quando se tratava da dívida interna de um país soberano, como era o caso do México. Ao aceitar assinar essas convenções, o México aceitou transformar a dívida interna em dívida externa e aceitou que os estados estrangeiros substituíssem os sujeitos privados.
Além disso, conforme expliquei mais acima, o México aceitou que sujeitos mexicanos (neste caso capitalistas) que mudaram de nacionalidade pudessem fazer valer os seus interesses por intermédio de potências estrangeiras.
Concretamente, as dívidas internas foram substituídas por novos títulos soberanos mexicanos com valor internacional e devendo ser reembolsados com base nas receitas aduaneiras. A nova dívida externa herdada dessas convenções ascendia a 14,2 milhões de pesos (ou seja, pouco menos de 3 milhões £). É importante recordar que a este montante não corresponde nenhuma entrada de dinheiro vinda do estrangeiro: trata-se simplesmente, mais uma vez, de uma manigância escritural que transforma dívida interna em dívida externa. A dívida externa, que antes das convenções totalizava 52,7 milhões de pesos (pouco menos de 10 milhões £) [27], correspondentes à burla dos empréstimos Goldsmith e Barclay de 1824-1825, foi acrescida de 14,2 milhões de pesos, totalizando então 66,9 milhões de pesos [28].
É absolutamente evidente que a governação mexicana, composta por representantes das classes dominantes locais, ao assinar essas convenções, agiu contra os interesses do país e da população mexicana.
Iremos ver como as potências estrangeiras procuraram tirar partido dessas convenções na década de 1860. Dez anos mais tarde assiste-se à concretização dramática da ameaça: a partir de 1861-1862, uma parte dos capitalistas mexicanos irá apoiar a invasão francesa, britânica e espanhola e apoiará a imposição francesa de um príncipe australiano como imperador do México. Para afastar definitivamente a armadilha das convenções internacionais de reconhecimento da dívida e concomitante abandono da soberania, o Congresso mexicano aprovou em 1883 um decreto que as revogou (ver mais à frente).MÉXICO – CRONOLOGIA
1810: início da guerra de independência, conduzida pelas classes dominantes locais (criollos).
1821: vitória dos independentistas. Iturbide torna-se o novo chefe de Estado. Opta por pagar a dívida colonial e em 1824 e 1825 contrai empréstimos em Londres.
1824: empréstimo Goldsmith & Co, 16 milhões de pesos de títulos emitidos e 5,7 milhões de pesos recebidos (35 %); 40 milhões de pesos a pagar (capital + juros a 5 %).
1825: empréstimo Barclay & Co, 16 milhões de pesos de títulos emitidos e 6,5 milhões de pesos recebidos; 44,8 milhões de pesos a pagar (capital + juros a 6 %).
Os títulos Goldsmith e Barclay:
Dezembro de 1825: crise financeira em Londres.
1826: os bancos Goldsmith & Co e Barclay & Co vão à falência.
1827 (1 de outubro): o México suspende o pagamento da dívida (o mesmo sucede com outros países latino-americanos, assim como na Grécia).
1828: o México pede empréstimos às classes dominantes locais, a taxas muito elevadas: 232 %, 536 %…
1831: primeira renegociação dos títulos Goldsmith e Barclay, no seguimento de um acordo com os credores. A dívida restante passa de 6,4 milhões £ para 6,85 milhões £, sem que haja nova entrada de dinheiro no México.
1832: nova suspensão do pagamento.1837: segunda renegociação dos títulos Goldsmith e Barclay, no seguimento de novo acordo com os credores. A dívida restante passa de 6,85 milhões £ para 9,3 milhões £.
1846: terceira renegociação dos títulos Goldsmith e Barclay. A dívida passa de 9,3 milhões £ para 10 milhões £.
1847: guerra de conquista dos EUA contra o México e anexação de numerosos territórios. Os EUA pagam mais tarde uma compensação de 3 milhões £ que servirão principalmente para pagar as dívidas interna e externa.
1855: revolução de Ayutla: os liberais tomam o poder.
1858: o liberal Benito Juárez é deposto por generais conservadores. O general conservador e usurpador Zuloaga emite novos títulos para reestruturar a dívida interna: 57 milhões de pesos de títulos emitidos, 443.000 pesos recebidos (menos de 1 %).
1859: emissão de títulos por intermédio do banqueiro suíço Jecker, residente no México. 15 milhões de pesos de títulos emitidos, 618.927 pesos recebidos (4 %).
1863: Maximiliano da Áustria torna-se imperador do México, às ordens da França.
novos empréstimos em 1863, 1864 e 1865 em Paris; 560 milhões de francos em títulos emitidos, 34 milhões de francos recebidos.
1867: derrota da França. Regresso ao poder de Benito Juárez. Repúdio das dívidas externas contraídas por Maximiliano da Áustria e repúdio das dívidas internas contraídas no período 1858-1860.
Não há repúdio dos títulos Goldsmith e Barclay, mas sim suspensão do pagamento, que se arrastará até 1886.
1876: Porfirio Díaz toma o poder. É o porfiriato, regime liberal autoritário que durará até 1910.
confirmação do repúdio das dívidas decretado por Benito Juárez;
renegociação da parte das dívidas antigas que não tinham sido repudiadas;
criação de um quadro legal vinculativo para novos empréstimos, que devem respeitar a soberania nacional.
1884: novo acordo com os credores que viola o decreto de 1883.
1888 → 1910: novos empréstimos internacionais (1888, 1889, 1893, 1899, 1904 e 1910).
Entre 1888 e 1910, a dívida externa é multiplicada por 8,5.
Passa de 52,5 milhões para 441,4 milhões de pesos.
A dívida interna é multiplicada por 2.
Em 1885 a ditadura do conservador Santa Anna é derrubada pela revolução de Ayutla e o partido liberal ascende ao poder.
À direita, Juan Álvarez, nomeado pelo Plano de Ayutla como um dos três líderes das forças de libertação
A fim de favorecer o desenvolvimento de uma burguesia capitalista no México, os liberais querem expropriar as terras do clero e das comunidades indígenas [29]. As leis emitidas neste sentido são conhecidas como a Reforma e serão reafirmadas pela Constituição de 1857. O Partido Conservador, representante dos interesses do clero e dos grandes latifundiários, reage lançando a guerra da Reforma contra o poder liberal, com o apoio do papa Pio IX. O liberal Benito Juárez, que subiu à presidência em 1858, foi derrubado por generais conservadores. O general Zuloaga, que dirigia as forças militares da capital, usurpa a presidência. Benito Juárez tem de abandonar o México e organiza a resistência armada contra os usurpadores a partir do Norte do país, beneficiando de apoios em todo o território. Entre 1858 e 1 de janeiro de 1861 coexistem dois governos, o governo conservador, com sede na Cidade do México, e o dos liberais, cuja sede foi sendo deslocada ao longo da guerra.
O escândalo dos títulos Jecker emitidos pelo general Zuloaga, presidente usurpador
Em 1858 o ministro das Finanças do presidente conservador dessa época tenta realizar uma grande operação de reestruturação/conversão da dívida interna, no montante de 57 milhões de pesos. Os novos títulos emitidos começaram por ser vendidos a 5 % do seu valor facial, depois caíram e foram vendidos a 0,5 %! O México endividou-se no montante de 57 milhões de pesos mas apenas recebeu 443.000 pesos (ou seja, menos de 1 % do valor facial emitido!) e antigos títulos. Um fiasco completo para o Tesouro, mas uma bênção para os compradores de títulos, em particular para o banqueiro suíço Jean Baptiste Jecker [30], estabelecido no México a partir de 1835, grande accionista [br: acionário] das minas de prata (as minas de Taxco e do Mineral Catorze), que tinha comprado uma grande quantidade de títulos entre 0,5 e 5 % do seu valor. Um ano mais tarde, o México contraiu novo empréstimo interno, recorrendo aos serviços do banqueiro Jacker. Este adquiriu os ditos títulos por 15 milhões de pesos e em troca entregou ao Tesouro público mexicano 618.927 pesos (ou seja, cerca de 4 % do valor dos títulos) e títulos emitidos no ano anterior, no valor de 14,4 milhões de pesos e comprados por tuta-e-meia. O custo total da operação, para Jecker, foi de 1,5 milhões de pesos (ou seja, a compra de grande parte dos títulos emitidos em 1858 e a nova emissão de 15 milhões de pesos dos títulos Jecker).
Benito Juárez
Benito Juárez, a 3 de novembro de 1858, então estabelecido na cidade de Veracruz, emitiu um decreto que a imprensa clandestina revelou aos habitantes do México nos seguintes termos: «Benito Juárez, presidente constitucional interino dos Estados Unidos Mexicanos, a todos os habitantes da República fazemos saber que: Em virtude dos poderes que me foram investidos, pareceu-me conveniente decretar o seguinte: Todos quantos, directa ou indirectamente, prestem auxílio aos indivíduos que se escusam a obedecer ao governo supremo constitucional fornecendo dinheiro, víveres, munições ou cavalos, perderá por esse simples facto o valor integral das quantias ou objectos que lhes entregou, e será condenado além disso a pagar, a título de multa, o dobro do dinheiro que lhes forneceu, ou o dobro do valor dos objectos que lhes entregou. Promulgado na sede do governo geral em Veracruz, a 3 de novembro de 1858.» [31]
Jecker e os capitalistas locais que financiaram o governo usurpador estavam portanto informados dos riscos que corriam.
O repúdio da dívida interna e a suspensão do pagamento da dívida externa em 1861
Benito Juárez repudiou os empréstimos internos efectuados entre 1858 e fins de 1860 pelos usurpadores
A 1 de janeiro de 1861, Benito Juárez, depois de suas tropas terem vencido o exército dos conservadores, entrou triunfalmente na capital. Ele e seu governo repudiaram os empréstimos internos efectuados entre 1858 e fins de 1860 pelos usurpadores.
No entanto, propôs a Jecker uma indemnização equivalente ao montante que ele tinha realmente despendido, ou seja 1,5 milhões de pesos. O visado recusou e procurou o apoio da França para obter um máximo de lucros. O imperador Napoleão III procurava pretextos para realizar novas conquistas coloniais: queria apoderar-se do México (cujo território era três vezes superior ao da França) e suas minas de prata. O Governo francês exigiu ao México o reembolso dos títulos detidos por Jecker (que, recordemos, tinha nacionalidade suíça) pelo seu valor facial, assim como dos títulos mexicanos detidos por franceses. O carácter falacioso do argumento usado torna-se ainda mais evidente tendo em conta o seguinte facto: a França concedeu a nacionalidade francesa ao banqueiro J. B. Jecker em março de 1862, mas a invasão começou três meses antes, em inícios de janeiro de 1862 (ver mais adiante).Já em 1839 a França tinha agredido o México
Em setembro de 1838 a pastelaria do francês Remontel, em Tacubaya, foi saqueada. A França de Luís-Filipe reclamou por essas perdas e outras «perdas infligidas» 600.000 pesos (3 milhões de francos). Perante a recusa das autoridades mexicanas, a França enviou uma esquadra que se apoderou de San Juan d’Ulúa e destruiu o porto de Veracruz. Os Mexicanos dariam a essa intervenção o nome de «guerra de los pasteles» (guerra dos pastéis) para exprimir a desproporção entre o motivo invocado e os seus efeitos.
De facto, essa guerra acarretou consequências graves para o México: teve de reconstruir o porto de Veracruz e durante a reconstrução perdeu os rendimentos [br: a renda] aduaneiros gerados pelo porto. Teve de assinar o Tratado de Veracruz, em março de 1839, pelo qual se comprometia a pagar os 600.000 pesos reclamados, mas sobretudo viu-se obrigado a conceder vantagens comerciais à França, em particular relativamente às importações de tecidos e produtos de luxo.
Jecker declarou a falência do seu banco em 1860 e os liquidatários encontraram nos seus activos os títulos mexicanos de 1858 e 1859, num montante total de 68 milhões de pesos, o que significava que Jecker apenas tinha vendido uma ínfima parte, contrariamente a suas afirmações [32] (isto faz lembrar o que fez na mesma época o banqueiro francês Erlanger a propósito dos títulos tunisinos emitidos em Paris em 1863). É preciso ainda sublinhar que o duque de Morny, irmão ilegítimo de Napoleão III, presidente da Assembleia Nacional, adquiriu depois 30 % dos títulos de Jecker [33].
Como indiquei mais acima, Benito Juárez, depois de ter saído vencedor em finais de 1860 na luta pelo poder entre liberais e conservadores, tentou pôr em ordem as finanças do país. A Grã-Bretanha reconheceu-o como presidente em fevereiro de 1861, na esperança de que o seu governo retomasse os pagamentos da dívida relativa aos empréstimos Goldsmith (1824) e Barclay (1825), respeitasse a convenção de 1851 e assumisse as dívidas contraídas pelos sucessores [34]. Ora Benito Juárez decidiu em maio de 1861 suspender por um ano o pagamento da dívida relativa aos empréstimos Goldsmith e Barclay. Em julho de 1861 prolongou por dois anos a suspensão do pagamento. Nenhum pagamento foi efectuado relativamente à Grã-Bretanha, à França e à Espanha, que tinha apoiado os usurpadores entre 1858 e 1860.
A invasão francesa e a ocupação do México (1862-1867)
A 31 de outubro de 1861, a Grã-Bretanha, a França e a Espanha assinaram uma convenção internacional na qual as três potências coloniais se puseram de acordo em recorrer à força contra o México, a fim de obrigarem o país a pagar as suas dívidas [35]. Para justificar a agressão, invocaram as convenções assinadas pelo México entre 1851 e 1853. A presidência dos EUA tenta fazer a mediação: Washington propõe-se emprestar ao México o dinheiro necessário para retomar os pagamentos à Grã-Bretanha, França e Espanha. Mas o Senado dos EUA acaba por rejeitar esta proposta [36] e os preparativos da invasão prosseguem. Os Espanhóis desembarcam em dezembro de 1861, os Britânicos a 4 de janeiro de 1862 e os Franceses, quatro dias mais tarde. O corpo expedicionário francês era de longe o maior. Por fim, apenas a França leva por diante a invasão: a pretensão francesa de conquistar o México, abolir a República, instaurar uma monarquia e avançar com exigências totalmente desproporcionadas não é do agrado da Grã-Bretanha e da Espanha, o que leva estes dois países a se retirarem da convenção de outubro de 1861.
Os Britânicos e os Espanhóis retiram-se do México em abril de 1862. As tropas francesas levam um ano a chegar à capital e a ocupá-la para instaurarem, com o apoio de uma parte das classes dominantes locais, uma monarquia católica. O príncipe Maximiliano da Áustria é proclamado imperador. Durante o seu reinado, que durou até 1867, procurou obter o apoio popular promulgando certas reformas sociais, mas foi um falhanço.
Maximilano da Áustria aparece claramente como um imperador fantoche ao serviço dos interesses da França.
Uma das suas primeiras medidas incide no reconhecimento das dívidas a Jecker, contraídas pelos presidentes conservadores de 1858-1860. Outra consiste em emitir novo empréstimo internacional em Paris e em Londres, no valor de 200 milhões de francos franceses (ou seja, 40 milhões de pesos, ou 8 milhões £) [37].
Na realidade, o empréstimo apenas teve sucesso em Paris e foi organizado através do Crédit Mobilier e do banco Fould-Oppenheim & Cie. O Crédit Mobilier fora criado em 1852 e beneficiava da protecção de Bonaparte [38]. O banco Fould-Oppenheim & Cie estava directamente ligado a Achille Fould, ministro das Finanças de Napoleão III e irmão do proprietário do banco. As condições de emissão eram semelhantes às do empréstimo Goldsmith de 1824. Embora o México contraísse uma dívida de 200 milhões de francos, o produto da venda dos títulos apenas rendeu 100 milhões de francos, dos quais uma parte nunca chegou a sair de França. Maximiliano da Áustria emitiu segundo empréstimo em Paris em abril de 1864, no valor de 110 milhões de francos (22 milhões de pesos). A totalidade desta quantia permaneceu em França [39]. Maximiliano realizou um último empréstimo no início de 1865, no montante de 250 milhões de francos (50 milhões de pesos) [40]. No total, embora o México se tenha endividado em 560 milhões de francos, apenas recebeu 34 milhões de francos [41]. Mais de metade da quantia emprestada entrou directamente nos cofres do Ministério das Finanças francês. Jecker, por seu lado, recebeu 12,6 milhões de francos.
Durante o seu curto reinado, Maximiliano conseguiu triplicar a dívida externa do México
A expedição militar internacional encomendada por Napoleão III acabou por sofrer uma estrondosa derrota e as tropas francesas retiraram-se em fevereiro de 1867 [42]. Durante o seu curto reinado, Maximiliano, totalmente instrumentalizado pela França, conseguiu triplicar a dívida externa mexicana. Quando Benito Juárez voltou a entrar no palácio presidencial do México e pôs termo ao regime de ocupação, repudiou todas as dívidas contraídas por Maximiliano da Áustria e mandou que ele fosse executado em junho de 1867. Reafirmou igualmente o repúdio da dívida interna contraída entre finais de 1857 e finais de 1860 pelos presidentes conservadores Zuloaga e Miramon.
Durante a luta contra a ocupação francesa, o governo de Benito Juárez contraiu em 1865 uma dívida para com os EUA, no montante de 3 milhões de pesos. Esta dívida foi honrada. É evidente que o regime de Benito Juárez precisava do apoio de Washington para fazer frente às outras potências coloniais. É igualmente evidente que Washington, uma vez terminada a Guerra da Secessão, voltou a desenvolver uma política imperialista em relação ao México. Como veremos mais adiante, a estratégia utilizada pelos EUA consistia em uma política de investimentos no México, nomeadamente nos caminhos-de-ferro [br: estrada de ferro]. A seguir, Washington voltou a recorrer à intervenção militar após a eclosão da revolução mexicana, a partir de 1910.
Após o seu regresso ao poder, a Grã-Bretanha voltou a pressionar Benito Juárez para que ele retomasse o pagamento da antiga dívida externa conforme a convenção de 1851. O México respondeu que essa dívida já não era válida, uma vez que entretanto Londres tinha participado numa expedição militar contra o México em 1862 e tinha de seguida reconhecido o regime de ocupação de Maximiliano da Áustria [43].
No que diz respeito ao saldo dos empréstimos Goldsmith (1824) e Barclay (1825), o México não efectuou qualquer pagamento até 1886, mas também não os repudiou.
Quanto à convenção de 1852-1853 com a França, o México considerou que ela já não era válida, tendo em conta a invasão. É muito importante sublinhar que a França acabou de facto por aceitar a posição do México, uma vez que as relações diplomáticas entre os dois países foram completamente restabelecidas em 1880, sem que a França pusesse como condição o reconhecimento das dívidas antigas. Foi uma importante vitória para o México. A França não queria perder a possibilidade de investir no México e compreendeu que, se mantivesse exigências inaceitáveis, não chegaria a lado nenhum.
Veremos de seguida que mais tarde Porfirio Díaz adoptou uma política, em relação à França e a outras potências, contrária aos interesses do país em matéria de dívida externa.
O regime de Porfirio Díaz (1876-1910) e o regresso ao endividamento massivo
Em 1867 começa um novo período da história do México, quando o general Porfirio Díaz (um liberal que serviu às ordens de Bentio Jurez) derruba pela força das armas o governo liberal de Sebastián Lerdo de Tejada, que sucedeu em 1872 a Benito Juárez. É o início do porfiriato, um regime autoritário que vai «modernizar» o país, abrindo-o muito mais aos capitais estrangeiros, favorecendo a acumulação de capital de uma burguesia nacional, com a ajuda da espoliação e do desenvolvimento acelerado das relações de produção capitalista, sem no entanto pôr fim definitivo às formas de exploração preexistentes ao capitalismo.
O porfiriato aprofundou com métodos ainda mais autoritários [44] as reformas liberais encetadas por Benito Juárez. Deste ponto de vista, encontramos uma continuidade [45]. Em contrapartida, enquanto Benito Juárez e o México tinham defrontado os credores da dívida pública interna e externa, Porfirio Díaz adoptou uma política muito favorável aos credores. O seu governo reconheceu antigas dívidas, incluindo algumas das que tinham sido repudiadas pelo Congresso e pelo governo de Benito Juárez.
O México em 1880
Entre 1880 e 1884, Díaz confia o poder ao general Manuel González, um dos seus fiéis. Durante esse período realiza-se uma grande reestruturação da dívida que leva a um novo ciclo de endividamento massivo. O porfiriato prolongou-se até à revolução mexicana de 1910. Entre 1888 (data do primeiro empréstimo internacional contraído durante o porfiriato) e 1910, a dívida pública externa do México foi multiplicada por 8,5, passando de 52,5 milhões de pesos para 441,4 milhões de pesos, e a dívida pública interna foi multiplicada por 2.
Um cálculo esclarecedor: em 1883, quando o Congresso mexicano aprovou a lei que fixava os termos da dívida a renegociar com os credores, o seu montante elevava-se a cerca de 100 milhões de pesos. Entre 1888 e 1911, o México pagou cerca de 200 milhões de pesos em juros e em reembolso do capital e a sua dívida total (externa e interna) totalizava 578 milhões de pesos [46]. Em resumo, o México reembolsou o dobro do que devia e viu-se seis vezes mais endividado. O montanto realmente recebido pelo México foi extremamente baixo, pois o aumento da dívida resultou essencialmente dos jogos escriturais aquando das sucessivas reestruturações. Além disso, o fraco montante recebido foi muito mal gasto, geralmente sob a forma de subsídios aos capitalistas proprietários dos caminhos-de-ferro [br: ferrovias] (ver mais à frente).
Apesar deste balanço desastroso, vários autores de referência em matéria de dívida saudaram o porfiriato. W. Wynn escreveu: «Em 1877 a chegada ao poder do Presidente Díaz marcou o início de uma era de paz e de governação forte, e em 1885-86, foi aplicada uma regulação definitiva e realizável dos antigos empréstimos através de um plano abrangente de reajustamento orçamental [br: orçamentário]. Feito isto, começou a ser escrito um novo capítulo da história da dívida externa do país, afectando toda a vida económica e social da nação. Vários empréstimos foram sucessivamente contraídos, contribuindo em particular para a construção de ferrovias e obras públicas, ao mesmo tempo que grandes investimentos estrangeiros foram canalizados para a exploração privada dos abundantes recursos naturais» (p. 3-4) [47].
J. Bazant escreve assim na conclusão da sua obra sobre o México: «Durante o porfiriato, o progresso material não podia ser alcançado por meios diferentes dos que foram utilizados, meios que consistiram em um grande crescimento da dívida externa e dos investimentos estrangeiros, como noutros países» (p. 240) [48].
Estas duas citações mostram claramente de que lado se encontram os dois autores. Não hesitam em embelezar o porfiriato e as políticas de endividamento que, sob esse regime, foram na realidade nefastas para o país e respectiva população.
O regresso da engrenagem da dívida
No que diz respeito à dívida externa, o México interrompeu os pagamentos em 1861 com a chegada de Benito Juárez e assim se manteve até 1888 [49]. Note-se que o governo de Benito Juárez, no final dos anos 1860, teve a boa ideia de recomprar a 10 % do seu valor uma grande parte dos títulos abrangidos pelas convenções assinadas com a Grã-Bretanha no início dos anos 1850 [50]. Por um lado, o custo da recompra foi baixo; por outro, através dessa operação que retirou os títulos da circulação, o país poupou o pagamento dos juros e evitou eventuais reclamações.
Porfirio Díaz em 1902
Após a tomada de poder, o general Porfirio Díaz procurou reestruturar as antigas dívidas, a fim de enriquecer os capitalistas mexicanos que detinham uma grande parte delas e melhorar as suas relações com as grandes potências estrangeiras. Conseguiu alcançar esse objectivo em 1888.
Uma vez que a Constituição mexicana não lhe permitia ser reeleito indefinidamente, colocou o general Manuel González na presidência do país entre 1880 e 1884. Foi este general que fez avançar as renegociações com os credores. Em 1883 conseguiu convencer o Congresso a mandatar o Governo para negociar novos empréstimos e ao mesmo tempo reconhecer uma parte da antiga dívida externa, nomeadamente a respeitante aos empréstimos Goldsmith (1824) e Barclay (1825). O decreto aprovado pelo Congresso a 14 de junho de 1883 [51] repudiava claramente as seguintes dívidas: todas as dívidas contraídas pelos governos ilegítimos (usurpadores), as contraídas pelo general Zuloaga e seu sucessor, Miramon, entre 17 de dezembro de 1857 e 24 de dezembro de 1860, as contraídas ou renegociadas por Maximiliano da Áustria [52].
Uma disposição muito importante do decreto: fosse qual fosse a origem dos créditos e a nacionalidade dos credores, toda a dívida pública deveria conservar o seu carácter mexicano, não podendo ser-lhe dada dimensão internacional nem afectar certos recursos do Estado ao seu reembolso. O Congresso procurava assim retirar às potências estrangeiras a possibilidade de se apoderarem do México com o pretexto de fazerem cumprir uma convenção internacional que envolvesse as dívidas externas. Declarar que a dívida deve permanecer mexicana significa que em caso de litígio com os credores, sejam eles estrangeiros ou não, a única jurisdição competente é a do México. Dizer que certas receitas do Estado não podem ser aplicadas no reembolso da dívida é salvaguardar o direito do México a não reembolsar a dívida se não tiver meios para isso.
As limitações fixadas na lei indicam claramente que para a maioria dos congressistas e da opinião pública mexicana era inconcebível retomar o reembolso de certas dívidas consideradas ilegítimas ou impuras, para retomar os termos usados nos debates públicos pelos principais protagonistas da época.
Em suma, o decreto de 14 de junho de 1883 significa duas coisas: por um lado, autoriza o governo de Manuel González a renegociar a antiga dívida com o estrangeiro; por outro lado, o poder legislativo fixa um quadro que restringe e limita as concessões que o Governo pode fazer em relação às exigências dos credores.
A 1 de janeiro de 1884 o governo de Manuel González viola o decreto de 14 de junho de 1883 ao assinar um acordo com os credores internacionais que contempla o reembolso das dívidas ligadas às convenções assinadas no início dos anos 1850 com a Grã-Bretanha [53].
Finalmente, o acordo com os credores foi submetido a ratificação em novembro de 1884 pelo Congresso. Isto provocou um grande alvoroço entre os parlamentares e nas ruas [54]. Os parlamentares que se opunham ao acordo que o Governo propunha exigiram uma auditoria prévia das dívidas, a fim de determinar a sua validade e legitimidade e de decidirem o que era preciso repudiar. Por fim, quando o Governo quis obrigar o Congresso à aprovação, isso gerou grandes protestos. Os estudantes puseram-se à cabeça das manifestações e a repressão fez um morto. Os debates no Congresso foram suspensos, mas isso não impediu o governo de Manuel González, e depois o de Porfirio Díaz, de fazerem passar o acordo com os credores da convenção de Londres, ao indemnizá-los a uma taxa que lhes era muito favorável e com prazos muito curtos [55]. E no entanto, como já vimos, pelo menos metade da dívida a Londres era detida por capitalistas mexicanos. É provável que 30 a 50 % dos títulos de Londres fossem detidos por Manuel González em pessoa ou pelo seu cunhado, Ramon Fernandez, embaixador do México em França [56].
As dificuldades encontradas por Manuel González no Parlamento no final do seu mandato e as manifestações de rua indicam claramente que o tema da dívida constituía um elemento central do debate nacional e que a orientação adoptada pelo Governo nessa matéria era rejeitada por grande parte da população. Disso testemunha a imprensa da época.
Depois destes importantes incidentes, Porfirio Díaz começou, a 1 de dezembro de 1884, o seu segundo mandato e reforçou ainda mais a política orçamental visando o reembolso da dívida e a realização de novos empréstimos.
Por fim, o México realizou novo pedido de empréstimo ao estrangeiro em 1888, do qual dois terços serviram para reembolsar o remanescente da dívida Goldsmith e Barclay ao cabo de mais de 60 anos.
Recordemos que em 1824 e 1825 o México recebeu, graças aos empréstimos Goldsmith e Barclay, 2,7 milhões £ (ou seja cerca de 13,5 milhões de pesos). Reembolsou 5,1 milhões £ (ou seja, perto do dobro do montante realmente recebido), dos quais 4 milhões £ à conta do pagamento de juros e 1,1 milhões £ para reembolso do capital.
Um acto que foi contra o interesse da nação e que serviu estritamente os interesses dos capitalistas mexicanos
Em 1888 o México gastou 5,4 milhões £ (27 milhões de pesos) para pagar o saldo da dívida Goldsmith e Barclay. Uma verdadeira fraude. Um acto que ia contra o interesse da nação e que serviu estritamente os interesses dos capitalistas mexicanos que detinham uma parte dos antigos títulos Goldsmith e Barclay [57]. É claro que os detentores estrangeiros de títulos foram igualmente favorecidos. Tudo isto à custa do Tesouro público mexicano.
Segundo autores de referência como J. Bazant, o empréstimo de 1888 acabou com as antigas dívidas de 1824-1825. Na realidade, porém, a antiga dívida foi substituída por uma nova dívida de 34 milhões de pesos [58] que o México teve de reembolsar até 1910 e cujo pagamento fez parte da renegociação da dívida que ocorreu de 1922 a 1942.
É impossível concordar com o parecer emitido por J. Bazant: «Com o empréstimo de 1888 a história dos empréstimos de 1824 e 1825 ficou encerrada. (…) Podemos concluir que, apesar das numerosas complicações que estes empréstimos acarretaram para o país, feitas as contas, constituíram uma boa operação.» [59]
Os empréstimos de 1824-1825 reestruturados pela última vez em 1888 (recordemos que já tinham sido reestruturados quatro vezes entre 1830 e 1850 [60]) tornaram-se uma pesada grilheta para o povo mexicano.
Balanço da política de endividamento do porfiriato
Durante o porfiriato, o Governo impôs um reajustamento orçamental com o fim de libertar uma margem financeira suficiente para assegurar o reembolso da dívida.
As medidas de austeridade consistiram na redução dos salários na função pública, no aumento dos impostos e na recusa de realizar despesas sociais.
Ao longo do porfiriato, foram emitidos sete empréstimos. O primeiro, em 1888, serviu essencialmente para reembolsar as velhas dívidas, como vimos. Os de 1899 e 1910 serviram de novo para pagar dívidas. O de 1893 serviu para despesas correntes do Governo. Os de 1889, 1890 e 1904 serviram para subsidiar os capitalistas mexicanos e estrangeiros que investissem no desenvolvimento da rede ferroviária.
Ao olharmos para os nomes e as nacionalidades dos bancos estrangeiros que intervieram nos empréstimos do porfiriato e os lugares onde foram emitidos, conseguimos seguir a evolução do grande capital e a ascensão de novos centros financeiros internacionais. Enquanto os empréstimos de 1824-1825 foram emitidos em Londres por bancos ingleses e os da ocupação francesa foram emitidos em Paris por bancos franceses, os empréstimos de 1888, 1893, 1899 foram emitidos por intermédio de bancos alemães (Bleichroeder, Deutsche Bank, Dresdner Bank) e as negociações tiveram lugar em Berlim. A partir de 1899 entraram em cena os bancos dos EUA, nomeadamente o JP Morgan (que era o maior banco norte-americano [br: estadunidense] em 2017) e, em 1910, voltaram em força os bancos franceses, particularmente o Banque de Paris et des Pays-Bas [61] (que em 2017 se tornou o banco francês mais importante, com o nome de BNP Paribas).
Igualmente notável é o facto de o regresso do México às praças financeiras europeias como tomador de empréstimos a partir de 1888 coincidir com um regresso massivo dos empréstimos concedidos por bancos europeus aos países da América Latina. As praças financeiras europeias tinham passado por uma grande crise a partir de 1873, a qual levou ao aperto da torneira do crédito. Começaram a recuperar o apetite pela concessão de crédito aos países da periferia e em particular aos países da América Latina durante o ano de 1880, coincidentemente com a febre especulativa do investimento em ferrovias: na Argentina, no Uruguai, no Brasil ou no México.
Regressemos ao México. O endividamento forneceu rendimentos [br: rendas] regulares e abundantes aos capitalistas estrangeiros e mexicanos, que compraram títulos da dívida mexicana e serviram-se deles para prebendar as grandes sociedades privadas das ferrovias, como veremos de seguida. Estas sociedades, após terem fornecido proveitos rápidos aos seus proprietários privados, foram nacionalizadas a pedido daqueles e com grandes custos para o Estado. Para as comprar, o Estado teve de se endividar.
Contrariamente aos autores que afirmam que foi muito positivo endividar o país no estrangeiro, por assim abrir a economia e dotá-la de infraestruturas, podemos ter a certeza de que teria sido possível financiar um desenvolvimento verdadeiramente útil à população sem recorrer a um endividamento tão oneroso e recheado de irregularidades, fraudes e desvios. Dever-se-ia ter anulado as dívidas ilegítimas passadas (o que teria poupado o país à realização dos dois primeiros empréstimos e dos dois últimos, que serviram para prosseguir o reembolso dos dois primeiros). Não se deveria ter subsidiado os capitalistas que desenvolveram a rede ferroviária. Dever-se-ia ter desenvolvido a rede de caminhos-de-ferro [br: estrada de ferro] no âmbito de um serviço público e concebê-lo segundo outras prioridades, diversas das que consistiam em exportar matérias-primas e importar produtos manufacturados na Europa e nos EUA. Dever-se-ia ter aumentado os impostos sobre o património e os rendimentos [br: renda] dos mais ricos, sobre os lucros das empresas extractivas, a fim de dispensar o recurso à dívida externa (ou de minimizar tanto quanto possível o seu papel). Dever-se-ia ter organizado uma reforma agrária, promovido a indústria local, reforçado o mercado interno e desenvolvido o sistema de educação.
Sob o porfiriato, institucionalizou-se o açambarcamento de terras pertencentes aos pequenos camponeses, às aldeias e às comunidades indígenas, sob a forma de «empresas de prospecção» encarregadas de delimitar as terras virgens, que o Governo oferece em contrapartida às empresas de prospecção e vende à burguesia. Ora essas terras raramente eram virgens; geralmente eram exploradas como propriedade colectiva. A burguesia lança uma guerra feroz contra os camponeses, com a ajuda do aparelho repressivo do Estado e milícias privadas. Feroz, porque o campo dos grandes proprietários agrários dispunha de meios mais pesados que os camponeses, e estes, apenas possuindo as suas terras e o seu aprovisionamento de água, resistem até ao fim. As revoltas camponesas são abafadas pelo poder e as fazendas dos grandes proprietários estendem-se por territórios cada vez mais vastos, graças aos contínuos assaltos que lançam contra as aldeias. Este processo não só elimina progressivamente a propriedade fundiária colectiva, mas também cria uma classe de camponeses que apenas dispõe da sua força de trabalho, o que cedo os obriga a venderem-na aos capitalistas para sobreviverem. [62]
Adolfo Gilly escreveu a propósito das espoliações violentas: «este processo acelerado de acumulação à custa de formas económicas pré-capitalistas combina-se com uma fase de expansão mundial do capitalismo, diferente do processo clássico de acumulação primitiva [br: acumulação original]. Desse ponto de vista, o fenómeno apresenta similitudes tanto com a exterminação dos índios nos EUA, como com as guerras coloniais dos países imperialistas; mas neste caso trata-se antes de uma guerra colonial levada a cabo por um governo burguês no seu próprio país e contra o seu próprio povo» [63].
Numa sociedade ainda maioritariamente agrária, o capitalismo mexicano começa a se desenvolver a partir das fazendas, vastas propriedades agrícolas formadas à volta de um núcleo central protegido por muros e composto pela villa do proprietário, pelos alojamentos dos empregados e outros edifícios necessários ao funcionamento do domínio (administração, celeiros, igreja, etc.). Embora o modelo da hacienda tenha sido introduzido pela colonização espanhola, ele evolui sob o porfiriato. Segundo Adolfo Gilly, graças à sua capacidade de utilizar e apropriar as terras circundantes, a fazenda dispõe «de uma assinalável elasticidade face às variações do mercado de produtos e mão-de-obra, podendo virar-se tanto para o autoconsumo, como expandir-se para produzir mais para o mercado, consoante os ciclos económicos» [64]. Emprega diversos tipos de trabalhadores, entre eles os peons (camponeses), cuja força de trabalho é fixada à fazenda graças a relações de dependência servil por endividamento, e trabalhadores temporários, contratados segundo as necessidades do mercado. A esta combinação de diversas relações de produção acresce o facto de as fazendas serem geralmente o lugar do poder político detido pela classe dominante, que completa no plano local o poder central do porfiriato.
Atendendo aos interesses da população no seu conjunto, um indicador evidencia o carácter catastrófico da política agrária do porfiriato: em 1891-1892 o México teve de importar massivamente milho dos EUA para evitar a fome [65], embora o milho fosse o cereal de base dos Mexicanos e o seu campesinato saiba muito bem como produzi-lo. Contudo, a política de desenvolvimento dos grandes proprietários fundiários favorecia outras utilizações das terras: a pecuária extensiva, as plantações de cana-de-açúcar, de café, de tabaco, do sisal…
Um historiador mexicano do século XIX, Francisco Bulnes, denunciou os «28 favoritos do regime», aos quais o Governo vendeu por tuta-e-meia cerca de 50 milhões de hectares de terras, que eles depois cederam a empresas estrangeiras. Bulnes afirma que o regime vendeu por um prato de lentilhas metade do estado da Baixa Califórnia a um capitalista alemão que adquiriu a nacionalidade norte-americana [br: estadunidense]. Tal como cedeu três milhões de hectares de excelentes terras no estado de Chihuahua a um certo Hearst. Os Rockefeller e Aldrich também receberam enorme quantidade de terras no estado de Cohuila [66].
Em 1910 a concentração fundiária era extremamente elevada. Embora o México tivesse uma população de pouco mais de 15 milhões de habitantes, num território de mais de 197 milhões de hectares, 834 grandes proprietários possuíam sozinhos cerca de 168 milhões de hectares. [67]
A rede ferroviária
Durante um banquete em Boston o general Ulysses S. Grant, ex-presidente dos EUA e concessionário de uma ferrovia em construção da capital a Oaxaca, fez a seguinte declaração: «Não tenho dúvida de que com a construção dos caminhos-de-ferro [br: ferrovias] poderíamos adquirir ao México os seguintes produtos: açúcar, café, tabaco. Em vez de os procurarmos em países antidemocráticos, esclavagistas [br: escravistas] e que exigem tarifas aduaneiras excessivas, poderíamos obtê-los de um país republicano, onde os direitos de exportação são inferiores. E isto em troca de quê? Não em troca do nosso dinheiro, mas sim em troca dos nossos produtos: máquinas, ferramentas, toda a espécie de bens manufacturados» [68].
Entre a força e a fraqueza, conservemos o deserto
Antes de ser derrubado pelo liberal Porfirio Díaz em 1876, o seu predecessor Sebastián Lerdo de Tejada, também ele liberal, estava muito reticente quanto à vontade de Washington de estender a sua rede ferroviária ao México e de aí penetrar em profundidade. Referindo-se às regiões semidesérticas que separam o México dos EUA, declarou ele: «Entre a força e a fraqueza, conservemos o deserto» [69]. Mais tarde Porfirio Díaz abriria as portas do México aos interesses do seu vizinho setentrional.
A primeira linha foi inaugurada em 1873, mas só a partir de 1880 os caminhos-de-ferro se desenvolveram verdadeiramente, até ao fim do porfiriato, em 1910. De 1086 km em 1880, a rede passa a 9558 km em 1890, quase 14.000 em 1900 e 19.205 km em 1910 [70]. A construção e a exploração das ferrovias foram confiadas a empresas norte-americanas [br: estadunidenses] e britânicas, que beneficiaram de numerosas vantagens: abundantes subsídios do Estado, cedência gratuita de terrenos, mão-de-obra requisitada e muito mal paga, isenção de impostos e de direitos aduaneiros e até a organização de uma polícia privada.
Um quarto das receitas do Estado foi desviado para subvenções às firmas privadas de caminhos-de-ferro [71]. Em 1890 metade da dívida interna serviu para financiar os subsídios aos capitalistas proprietários das ferrovias (37 milhões de pesos, sendo a dívida interna total de 74 milhões de pesos) [72].Karl Marx em 1879 acerca dos caminhos-de-ferro
Segundo Karl Marx, «não resta portanto a mínima dúvida nos Estados (coloniais ou semicoloniais), a criação de caminhos-de-ferro acelerou a desintegração social e política, tal como nos Estados mais avançados, o desenvolvimento final, e portanto a mudança final, da produção capitalista foi mais rápida. Em todos os Estados, à excepção da Inglaterra, os governos enriqueceram e patrocinaram as ferrovias à custa do tesouro público. Nos Estados Unidos receberam como presente, em seu proveito, uma grande parte dos terrenos públicos, não apenas os terrenos necessários à construção das vias, mas muitos km2 de terras de um lado e do outro das vias (…). Tornaram-se assim os maiores proprietários de terras, num momento em que os pequenos agricultores imigrantes preferiam evidentemente terras situadas em pontos onde os seus produtos estivessem ao alcance dos meios de transporte. (…) De maneira geral os caminhos-de-ferro deram evidentemente um impulso imenso ao desenvolvimento do comércio externo; mas o comércio nos países que exportam principalmente matérias-primas aumenta a miséria das massas. (…) o novo endividamento, contraído pelos governos em nome dos caminhos-de-ferro, aumenta a massa de impostos que pesa sobre eles...» (Carta de Karl Marx a Daniel em 1879, citada por A. Gilly, p. 281)
A parte das subvenções no custo real da construção atingiu por regra a metade ou dois terços. Por cada quilómetro a construir, era concedida uma subvenção.
As ferrovias tinham à partida o fito de favorecer as rotas comerciais e por isso estão ligadas à rede norte-americana [br: estadunidense]. Integram na economia capitalista nascente todas as regiões que atravessam, aumentando o valor da propriedade fundiária e favorecendo assim o processo de espoliação das comunidades camponesas indígenas a que já nos referimos, ao mesmo tempo que desintegram os modos de vida pré-capitalistas. Politicamente os caminhos-de-ferro permitem também fortalecer a autoridade do poder central, que dessa forma pode reprimir mais rapidamente qualquer contestação no território [73].
No início dos anos 1900, as duas principais redes ferroviárias pertenciam a sociedades privadas norte-americanas [74]. Em 1904 o México recomprou ao banco Speyer uma das duas redes controladas por esse banco. Antes disso, o México tinha se endividado para subvencionar a rede controlada por esse banco. O México recomprou a rede ao banco Speyer por 9 milhões de dólares. A seguir, endividou-se nesse mesmo banco no montante de 40 milhões de dólares, dos quais apenas 16 milhões chegaram aos cofres do Tesouro público. Essa dívida de 40 milhões deveria ser reembolsada a uma taxa de juros de 5 %, num período de 50 anos, devendo o último pagamento ocorrer em 1954 [75]. Em 1909 o México financiou a recompra de outra rede controlada por firmas dos EUA, recorrendo a um empréstimo concedido por bancos norte-americanos, geralmente ligados directamente aos proprietários da rede.
A compra da rede permitiu ao Estado mexicano controlar 13.744 km de vias férreas, ou seja dois terços da rede. De facto, os capitalistas mexicanos e norte-americanos queriam desembaraçar-se das suas acções nos caminhos-de-ferro, pois tinham deixado de ser rentáveis [76]. Tinham sido muito lucrativos enquanto o Estado os subsidiou massivamente. O Estado comprou por altos preços às empresas privadas, geralmente bancos, e endividou-se junto delas para financiar a operação.
Escreve Adolfo Gilly: «Considerados no seu conjunto, os processos de formação do mercado interno, de integração da economia no novo mercado mundial e de desenvolvimento da produção capitalista sob o porfiriato representam um único e uno fenómeno cujo dinamismo notável é demonstrado por múltiplos indicadores. Com a ferrovia, todo o sistema de comunicações progride: o telégrafo, que acompanha as ferrovias; as estradas (…), os portos, os correios. Nas grandes cidades é inaugurada a rede de iluminação eléctrica e de água potável.» [77]
Investimentos estrangeiros
A industrialização do país passa nomeadamente pelo afluxo de capitais estrangeiros: «Por volta de 1884 os investimentos estrangeiros no país ascendiam a cerca de 110 milhões de pesos. Em 1911 chegaram aos 3400 milhões de pesos (…). Estes investimentos repartiam-se em 1911 entre os seguinte sectores: caminhos-de-ferro, 33,2 %; indústria extractiva, 27,1 % (mineração e metalurgia, 24 %; petróleo, 3,1 %); dívida pública, 14,6 %; comércio e banca, 8,5 % (bancos, 4,9 %; comércio, 3,6 %); electricidade e serviços públicos, 7 %; agricultura, pecuária e floresta, 5,7 %; indústrias transformadoras, 3,9 %. Do total de investimentos estrangeiros, 62 % tinham origem europeia (inglesa e francesa em 90 %) e 38 % tinha origem norte-americana. Mas o México apenas absorvia 5,5 % do total dos investimentos europeus no estrangeiro, enquanto recebia 45,5 % dos investimentos estrangeiros norte-americanos» [78]. Note-se que no fim do porfiriato o petróleo descoberto em 1901 começou a ser explorado e a ser objecto de investimentos provenientes dos EUA e da Grã-Bretanha.
O fim do porfiriato e o início da revolução em dezembro de 1910
«Durante uma geração inteira Porfirio Díaz dirigiu o México com mão de ferro. Ao longo desse período, transformou esse país vitimado pela desordem e assolado pelo banditismo num país respeitador da lei, no qual o direito à vida e o direito à propriedade eram garantidos» [79]. Para o jurista William Wynne, autor desta opinião, na realidade o direito que o Estado deve fazer prevalecer é o de os capitalistas usarem e abusarem dos recursos de um país e do seu povo. Uma ditadura como a de Porfirio Díaz assim o permite e por isso merece a sua aprovação. Aos olhos deste jurista, é fundamental que o país se endivide e que os credores sejam reembolsados, sem que se possa pôr em causa a legitimidade ou a legalidade dos contratos. Do seu ponto de vista, o balanço do porfiriato é positivo. Na realidade, o processo de espoliação e de exploração tinha atingido tais proporções, que fez amadurecer uma revolução social, que não tardaria a rebentar. Começou pela rejeição do autoritarismo do presidente Porfirio Díaz, mas desde o seu início continha uma dimensão social e identitária. As comunidades camponesas indígenas espoliadas queriam que lhes fosse feita justiça. Queriam que as terra que lhes tinham sido roubadas voltassem a ser-lhes entregues, para poderem viver com dignidade. Os trabalhadores assalariados exigiam uma melhoria dos seus direitos sociais e políticos. Outros sectores sociais vítimas do desenvolvimento capitalista sob o porfiriato apresentavam reivindicações e iriam participar na revolução que marcou o México na década de 1910.
Quando o general Porfirio Díaz, no poder desde 1876, foi reeleito aos 80 anos de idade, em dezembro de 1910, a sua impopularidade era tal que o apelo a resistir contra ele acabou por desencadear uma revolução. Este apelo foi lançado nomeadamente por Francisco I. Madero, filho de uma família capitalista opulenta [80], que em 1909 criou o Partido Nacional Anti-Reeleicionista.
Emiliano Zapata
Após um início difícil, o levantamento, que teve os seus primeiros sucessos no Norte do país, alastrou a outras regiões, nomeadamente a Morelos (a sul da capital), onde o dirigente camponês indígena Emiliano Zapata e seus companheiros lutavam pela restituição das terras comunais espoliadas pelos grandes proprietários.
O curso dos acontecimentos levou o ditador Porfirio Díaz a demitir-se em maio de 1911 e a partir para o exílio na Europa [81].
Depois de ser eleito presidente nas eleições de outubro de 1911, Madero tentou canalizar a revolução em curso. Opôs-se às reivindicações agrárias radicais defendidas por Emiliano Zapata [82] e seus partidários, mas afastou-se dos conservadores e dos EUA. Em fevereiro de 1913 foi assassinado, após um golpe de estado militar orquestrado pelo general Victoriano Huerta, a quem ele tinha confiado um comando militar estratégico. O general putschista Victoriano Huerta tinha recebido sinal verde da embaixada dos EUA para derrubar Madero. Nessa época, o republicano William H. Taft era presidente dos EUA [83]. Taft tinha interesses directos nos negócios de vários grandes grupos privados norte-americanos activos no México [84].
Victoriano Huerta
Em 1911-1912, o México contraiu dois empréstimos internacionais no montante total de 20 milhões de dólares junto do banco Speyer de Nova Iorque [br: Nova York], que, como já vimos, tinha concedido créditos ao regime de Porfirio Díaz em 1904 e 1909. O empréstimo de 1912 serviu em parte para pagar os juros do primeiro, sabendo de resto que era preciso reembolsar o capital em tempo recorde, em 1913. Após o assassínio do presidente Madero, o usurpador Huerta conseguiu emitir em Paris, em junho de 1913, um empréstimo equivalente a 58 milhões de pesos. É evidente que os bancos norte-americanos tinham começado a dar-se conta da dimensão do processo revolucionário em curso e sentiam-se inseguros. Pelo contrário, os bancos europeus, que viviam na euforia financeira que precedeu a Primeira Guerra Mundial, correram a propor os seus préstimos ao ditador. Os bancos franceses (Banque de Paris et des Pays Bas, Société Générale principalmente) subscreveram 45 % do montante total, os bancos alemães (incluindo o Deutsche Bank) 19 % e um banco inglês outros 19 %. Os bancos nova-iorquinos JP Morgan e Kuhn Loeb apenas entraram com 12 %. O banco Speyer, que não participou neste empréstimo, via-o com bons olhos, pois uma grande parte do empréstimo devia servir para reembolsar a quantia que tinha emprestado em 1911-1912.
Em janeiro de 1914, Huerta, financeiramente sufocado, suspendeu o pagamento da dívida [85]. O México só retomaria os pagamentos mais de 30 anos mais tarde, depois de ter obtido uma enorme vitória sobre os seus credores (como veremos mais à frente).
O México só voltaria a recorrer ao financiamento através dos bancos privados estrangeiros (essencialmente bancos norte-americanos) depois da segunda metade dos anos 1950.
A revolução mexicana de 1910-1920
A revolução mexicana foi profunda. Do lado popular, o actor principal foi o campesinato indígena (que constituía a maioria da população), embora o movimento operário tenha desempenhado um papel real, mas secundário [86]. No entanto, a repressão dos mineiros de Cananea no estado de Sonora e dos operários de Río Banco, em Veracruz, em 1906, exacerbou o descontentamento popular e contribuiu para criar as condições favoráveis ao desencadeamento da revolução.
Pancho Villa e sua escolta, 1911
O movimento dirigido por Emiliano Zapata foi o mais avançado ao nível popular. Era muito massivo no estado de Morelos e ficou conhecido como a Comuna de Morelos. Emiliano Zapata e o seu movimento puseram em andamento, a partir de novembro de 1911, o plano de Ayala, que ia muito além do programa do presidente Madero, conhecido como Plano de San Luis de Potosi.
Enquanto Madero se limitava a prometer rever os julgamentos que permitiram ao porfiriato espoliar enormes superfícies de terras à custa das comunidades camponesas indígenas e de pequenos agricultores independentes, o plano de Ayala apelava às armas para pôr fim aos latifúndios. Emiliano Zapata e seu plano apelavam à repartição das terras, à sua atribuição a quem as trabalhasse, a devolver as terras às comunidades que tinham sido despojadas pelas leis liberais que datavam de 1856 e que foram agressivamente aplicadas sob o porfiriato. O slogan do plano de Ayala era «Reforma, Liberdade, Justiça e Lei».
Madero organizou a repressão contra o movimento zapatista, procurando destruí-lo, assim como contra as organizações socialistas e anarquistas, designadamente no Norte do país. A eliminação de Madero pelo general Huerta em 1913 foi saudada pela antiga classe dirigente porfirista, pela igreja católica e pelos militares. A repressão contra o movimento popular intensificou-se.
Venustiano Carranza
Venustiano Carranza, dirigente liberal, admirador de Benito Juárez, apela então ao derrube do general Huerta; para isso faz uma aliança momentânea com o exército de libertação do Sul de Emiliano Zapata e com Pancho Villa [87], que criou, perto da fronteira com os EUA, a Divisão do Norte. Carranza repudia a dívida contraída por Huerta aquando do seu último endividamento em 1913. Entretanto, nos EUA, o democrata Woodrow Wilson, que sucedeu a Taft na presidência, adopta uma política diferente do seu antecessor no que diz respeito a Huerta: considera-o usurpador e aguarda para ver como evolui a situação antes de decidir quem os EUA devem reconhecer. Para ganhar peso sobre os acontecimentos, envia 44 vasos de guerra para bloquear e ocupar o porto de Veracruz em abril de 1914, com o pretexto de impedir a entrega de armas provenientes da Alemanha e destinadas a Huerta.
Embora as ideias e objectivos de Pancho Villa fossem menos avançados no plano social [88] que os do movimento de Zapata, eles conseguem estabelecer acordos para influenciar o processo em curso. Os dois exércitos de libertação encontram-se em finais de novembro de 1914 e os dois dirigentes reúnem-se no palácio presidencial a 6 de dezembro de 1914. Ambos se opõem a Venustiano Carranza.
Finalmente, depois numerosas peripécias, Carranza consegue impor-se após uma série de batalhas que opõem as suas forças armadas tanto a Huerta como a Pancho Villa, que representam campos opostos entre si. Huerta foi obrigado a exilar-se em julho de 1914 e Washington reconheceu Carranza como presidente de facto.
A partir desse momento, os EUA intervêm directamente para acabar com Pancho Villa e Emiliano Zapata, cujas reivindicações ameaçam os interesses das empresas privadas norte-americanas (plantações, minas, petróleo, …).
A fim de ajudar Carranza a destruir a base social de Zapata e a assassiná-lo, Washington fornece-lhe 53.000 espingardas em 1915. Carranza lança-se numa tentativa de extermínio da resistência zapatista: execuções e deportações em massa, destruição de aldeias, construção de uma trincheira de 100 km para proteger o México de uma ofensiva zapatista, utilização de armas químicas fornecidas por Washington … [89] Apesar da vastidão das atrocidades cometidas, foi um fracasso evidente. O exército zapatista reconstituiu-se em menos de um ano.
Perante isto, os EUA enviaram em 15 de março de 1916 um exército de 12.000 soldados (alguns autores falam de 5.000 soldados) para o estado de Chihuahua, para eliminar Pancho Villa. O general Pershing dirigia este exército e entre os seus oficiais figuravam os futuros generais Patton (o da Batalha das Ardenas no inverno de 1944), que propunha nessa época a anexação do México, e Eisenhower, futuro presidente dos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Esta invasão militar foi um fiasco – a guerrilha de Pancho Villa conseguiu resistir.
O fracasso da tentativa de esmagamento das forças de Pancho Villa e do movimento zapatista indica muito claramente que eles beneficiavam de enorme apoio popular. A repressão encarniçada não conseguiu ser bem sucedida enquanto subsistiu o ímpeto revolucionário da população, ou seja até 1918-1919.
Para consolidar o seu poder, Carranza aplicou medidas de justiça social tanto ao nível rural como ao nível urbano. Compreendeu que, para lutar contra a influência zapatista, tinha de satisfazer parcialmente as exigências dos sectores populares.
Quando a capital foi tomada sem combate, após a partida voluntária das tropas zapatistas e villistas em finais de dezembro de 1914 (Zapata e Villa nunca tiveram a intenção de tomar o poder, de ocupar ou tomar a capital), Carranza tomou medidas concretas em relação aos sectores populares urbanos e estabeleceu acordos com os sindicatos, incluindo ajuda humanitária. Apoiou o sindicato dos electricistas contra o patronato. Prendeu comerciantes e 180 párocos. Os dirigentes da Casa Operária Mundial (sindicatos anarquistas) assinaram um acordo com Carranza e o general Obregón, que tinha um papel chave, segundo o qual se comprometiam a participar na guerra contra Pancho Villa; em troca obtiveram concessões [90]. A 6 de janeiro de 1915 Carranza promulga uma lei de reforma agrária. O seu alcance era limitado mas visava alienar uma parte da base camponesa de Zapata e de Villa.
Um ano depois do pacto assinado com os dirigentes da Casa Operária Mundial, Carranza acabou com as concessões, pois já não necessitava deles, na medida em que a Divisão do Norte tinha sido destruída. Começou então a repressão anti-operária e anti-sindical. Em resposta, a 31 de julho de 1916, foi desencadeada uma greve geral no México contra a política de Carranza; a greve começou de forma massiva mas foi derrotada pela repressão [91]. Em julho-agosto de 1916, no mesmo momento em que Carranza reprimia e «esmagava» o movimento operário no México, tinha lugar uma ofensiva massiva contra os zapatistas em Morelos.
Apesar das suas acções trágicas e antipopulares, Carranza, em janeiro de 1917, para consolidar o seu poder e dar-lhe legitimidade, fez aprovar a constituição mais avançada ao nível social dessa época em todo o mundo. Essa constituição retomava alguns elementos do Plano de Ayala; afirmava que a nação deve poder dispor das suas riquezas naturais, que o campesinato deve poder dispor da terra, e instituía numerosos direitos sociais; anunciava uma reforma agrária e leis sociais (jornada de trabalho de 8 horas, direito de associação em sindicatos, direito à greve, salário mínimo, limitação do trabalho das mulheres e das crianças).Carta de Emilano Zapata sobre a revolução russa, datada de 14 de fevereiro de 1918
Seria um erro pensar que Emiliano Zapata limitou o alcance do seu combate ao território mexicano e às massas camponesas. Estas passagens da sua carta sobre a revolução russa mostram à evidência a importância que ele atribuía, por um lado, à solidariedade entre as duas grandes revoluções em curso e, por outro, a necessidade de aliança entre os operários e os camponeses.
«Teríamos muito a ganhar, a humanidade e a justiça ganhariam muito, se todos os povos da América e todas as nações da velha Europa compreendessem que a causa do México revolucionário e a causa da Rússia encarnam e representam a causa da humanidade, o interesse supremo de todos os povos oprimidos (…)
«Aqui como lá existem grandes senhores desumanos, cúpidos e cruéis que de geração em geração exploram até à tortura grandes massas camponesas. Aqui como lá, os homens reduzidos à escravatura, os homens de consciência adormecida, começam a despertar, a rugir, a estrebuchar, a golpear.«Por isso não espanta que o proletariado mundial aplauda e admire a Revolução russa, e que conceda inteiramente a sua adesão, a sua simpatia e o seu apoio à nossa Revolução mexicana, assim que entenda os objectivos que ela persegue (…)
«Por isso o trabalho de difusão e de propaganda que vocês fazem para defender a verdade é tão interessante; por isso devem dirigir-se a todas as associações e centros operários do mundo para fazerem sentir a necessidade imperiosa de educar o operário para a luta e formar a consciência do camponês. É preciso não esquecer que em virtude da solidariedade dos proletários, a emancipação do operário não pode ser alcançada se ao mesmo tempo não for realizada a libertação do camponês. Caso contrário, a burguesia poderá sempre opor essas duas forças e aproveitar-se, por exemplo, da ignorância dos camponeses para combater e refrear as justas cóleras dos trabalhadores, ou servir-se dos trabalhadores pouco conscientes e lançá-los contra os seus irmãos camponeses.» [92]
Esta carta permite-nos compreender melhor por que razão as classes dominantes mexicanas e o governo dos EUA queriam acabar com Emiliano Zapata.
Em abril de 1919, por meio de artimanhas, Carranza conseguiu mandar assassinar Emiliano Zapata.
Em 1920 Carranza foi finalmente derrubado pelo general Obregón, personagem chave do seu séquito a que já aludimos. Alguns meses após o derrube de Carranza, o general Álvaro Obregón foi eleito com mais de um milhão de votos nas eleições de setembro. No dia 1 de dezembro de 1920 tomou oficialmente posse do cargo de presidente. Era apoiado por dirigentes sindicais, nomeadamente os da Confederacion Regional Obrera Mexicana (CROM), fundada em 1918. Em 1920 Obregón conseguiu convencer Pancho Villa a depor as armas e desmobilizar as últimas tropas que ainda lhe eram fiéis, propondo-lhe em troca uma pensão vitalícia e o reconhecimento da sua graduação de general de divisão do exército federal. Mandou que o assassinassem em 1923.
A partir de 1918-1919 a chama revolucionária apagou-se. Os elementos mais revolucionários e visionários como Emiliano Zapata e seus partidários ou foram eliminados ou absorvidos pelo sistema.
O país viu-se dotado de uma constituição muito avançada mas que só muito parcialmente foi posta em prática. Mais tarde as classes dominantes locais tentaram voltar atrás nas concessões importantes que tiveram de aceitar durante a revolução.
Os governantes que se seguiram enterraram progressivamente as grandes conquistas sociais dos anos 1911-1917, mas estas voltaram a emergir a partir de 1934 (ver mais adiante). Os governos tentaram também chegar a compromissos com os credores da dívida externa a partir de 1921.
As negociações da dívida a partir de 1921
Entre 1922 e 1942 (20 anos!) decorreram longas negociações com um consórcio de credores dirigido por um dos directores do banco JPMorgan dos EUA.
Em fevereiro de 1919, sob a designação International Committee of Bankers on Mexico (Comité Internacional de Banqueiros sobre o México), constituiu-se um cartel de credores do México. Era presidido pot T. W. Lamont, representante do JPMorgan de Nova Iorque, e agrupava bancos dos EUA, da Grã-Bretanha, de França, dos Países Baixos, da Bélgica, da Suíça e da Alemanha.
Em 1921 o presidente A. Obregón convidou T. W. Lamont a visitar o México, a fim de entabular negociações que concluíram em junho de 1922 num acordo [93]. Trata-se de um acordo funesto para o país e que mostra claramente o rumo político do governo. Aproximava-se da política do porfiriato em matéria de endividamento, ou seja, mantinha a submissão aos interesses das classes dominantes locais e aos bancos internacionais detentores da dívida externa e interna.
Segundo esse acordo, o presidente Obregón e seu governo reconheciam uma dívida pública que ascendia a 550 milhões de dólares, enquanto em 1910 ela era de 220 milhões de dólares e os empréstimos suplementares realizados após essa data, designadamente os contraídos pelo usurpador Huerta entre 1911 e 1913, representavam um saldo de 30 milhões de dólares (de facto, os 20 milhões emprestados pelo banco Speyer já tinham sido reembolsados, graças ao empréstimo realizado em Paris em 1913). O presidente Obregón aceitou portanto reconhecer um montante da dívida que era o dobro do total devido [94]. Além disso aceitava acrescentar 200 milhões em juros de mora [95]. Foi uma verdadeira traição aos interesses do país e do povo mexicano. Tanto mais quanto a dívida contraída pelo ditador Porfirio Díaz (220 milhões de dólares), assim como os empréstimos realizados pelo usurpador Huerta (30 milhões de dólares) correspondiam claramente a uma dívida odiosa, pois tinham sido acumulados contra o interesse da população e os bancos credores estavam disso conscientes. [96]
O Congresso mexicano, controlado pelo presidente, ratificou este acordo e o México iniciou o reembolso em 1923, mas as quantias a pagar eram de tal forma elevadas e o défice orçamental tão grave, que em 30 de junho de 1924 Obregón suspendeu o pagamento da dívida.
O México retomou as negociações com Lamont da JPMorgan, negociações essas que conduziram a novo acordo em 1925 e que o Congresso ratificou de novo. A fim de retomar os pagamentos, o novo presidente mexicano, Plutarco Ellias Calles (presidente de dezembro de 1924 a novembro de 1928), negociou uma linha de crédito com o Comité de Banqueiros. Foram feitos alguns pagamentos em 1926, mas em 1927 o México voltou a suspender os reembolsos.
O Comité de Banqueiros enviou em 1928 uma comissão de peritos, a fim de analisar a situação. No seu relatório, os peritos criticam o governo por ter feito demasiadas despesas sociais, em particular na educação pública. Considera ainda que o México tinha feito demasiados investimentos no sistema de irrigação e na montagem de um sistema de crédito público aos camponeses. Reconhecia que, para evitar nova revolução, era preciso efectuar algumas despesas públicas, mas as que o Governo tinha feito eram, segundo eles, exageradas [97].
Foram retomadas as negociações entre o Governo e o Comité dos Banqueiros. Novo acordo foi aprovado em 1930 mas, pela primeira vez desde 1922, um número considerável de parlamentares opôs-se à ratificação. Além disso, quatro deputados do estado de Chihuahua apresentaram um projecto de lei para declarar uma moratória de 10 anos sobre o reembolso da dívida e utilizar as quantias assim poupadas em despesas úteis à sociedade [98]. O Governo decidiu não se arriscar a ficar em minoria perante o Congresso e não ousou submeter a votação o acordo assinado com o Comité de Banqueiros.
Entretanto, os efeitos da crise de Wall Street de outubro de 1929 fizeram-se sentir fortemente nas receitas de exportação e o projecto de retomar o pagamento da dívida tornou-se cada vez mais impopular. Em janeiro de 1932 o Congresso aprovou uma lei que anulava o último acordo assinado pelo Governo com o Comité de Banqueiros. Por fim, a 1 de setembro de 1933, o presidente Abelardo Rodriguez anunciou que o México não retomaria o pagamento da dívida externa.
A presidência de L. Cárdenas em 1934-1940 prepara a vitória de 1942 contra os credores
Em dezembro de 1934 Lázaro Cárdenas iniciou um mandato presidencial que se prolongaria até dezembro de 1940. Durante esse período de 6 anos, Cárdenas realizou grandes reformas de esquerda, entre elas algumas que permitiram pela primeira vez pôr em prática uma parte das aspirações revolucionárias de 1910-1917 e da Constituição de 1917.
Lázaro Cárdenas iniciou o seu mandato num contexto de lutas sociais, nomeadamente de greves operárias. Adoptou uma orientação em ruptura com a que tinha dominado a política desde 1920. Opôs-se ao seu antecessor Plutarco Ellias Calles. Recusou retomar as negociações com o Comité Internacional de Banqueiros.
Lázaro Cárdenas
Uma das primeiras medidas de Cárdenas teve a ver com a reforma da educação pública. A reforma do artigo 3º da Constituição entrou em vigor em dezembro de 1934 e dizia: «A educação estatal será socialista e, além de excluir a doutrina religiosa, combaterá o fanatismo e o preconceito. A escola organizará o seu ensino e actividade de maneira a criar na juventude um conceito racional e exacto do universo e da vida social». Lê-se na explicação dos fundamentos do projecto de lei apresentado à Câmara de deputados: «A instauração do ensino socialista na República em virtude da aprovação da reforma do artigo 3º não significa a transformação económica imediata do regime no qual vivemos; significa a preparação do material humano de que necessita a revolução para continuar a consolidar a sua obra. O futuro do país pertence à infância e à juventude socialista que se orienta e se cultiva agora nos estabelecimentos de ensino. Compete-lhe a ela realizar definitivamente as aspirações do proletariado e das classes oprimidas do México». Embora a aplicação destes princípios tenha sido limitada pela inércia do sistema, eles marcaram a sociedade mexicana durante décadas.
Reforma agrária
Cárdenas redistribuiu as terras em benefício das comunidades agrárias indígenas
Ao abrigo do disposto no artigo 27º da Constituição de 1917, que previa a possibilidade de expropriar as terras para as devolver aos ejidos [99], L. Cárdenas expropria 18 milhões de hectares pertencentes a grandes proprietários de terras mexicanas e a firmas estrangeiras. Redistribui as terras em benefício das comunidades agrárias indígenas, sob a forma de propriedades colectivas tradicionais conhecidas pelo nome de ejidos. Por conseguinte as terras não eram atribuídas a proprietários privados. O objectivo, além de ir ao encontro da reivindicação fundamental expressa por Emiliano Zapata e pelo Plano Ayala, era o de devolver às comunidades o que lhes tinha sido roubado e, além disso, favorecer o desenvolvimento de uma agricultura auto-sustentada capaz de satisfazer as necessidades locais. As comunidades camponesas que recebiam as terras podiam tirar proveito delas conforme entendessem, mas não podiam vendê-las. As comunidades dos ejidas dispunham de estruturas de decisão para administrar as terras. O governo de L. Cárdenas criou um banco público, o Banco Nacional de Crédito Ejidal (Banjidal – banco nacional de crédito ejidal). O Governo financiou também a formação de técnicos para melhorar o aproveitamento das terras. A reforma agrária cardenista diferia das políticas aplicadas pelos governos anteriores, na medida em que estes se limitaram a entregar as terras (aliás em quantidades muito limitadas) a proprietários individuais privados.
Nacionalização dos caminhos-de-ferro e do petróleo
A greve dos trabalhadores ferroviários abriu caminho à nacionalização dos caminhos-de-ferro [br: ferrovias].
Em 1938 teve lugar a nacionalização do petróleo, num contexto de greve dos operários desse sector. A exploração petrolífera que tinha começado em finais do porfiriato estava totalmente nas mãos de firmas britânicas e norte-americanas [br: estadunidenses]. O parágrafo 4º do artigo 27º da Constituição de 1917 declarava que as reservas dos campos petrolíferos era propriedade da nação. Em 1937 os trabalhadores do petróleo entraram num conflito muito duro com os proprietários das empresas petrolíferas, que recusavam conceder os aumentos salariais exigidos pelos grevistas. A 18 de março de 1938, L. Cárdenas anunciou ao país que iria intervir para pôr fim ao conflito, expropriando as empresas petrolíferas. Especificou que no prazo de 10 anos os seus proprietários estrangeiros receberiam uma indemnização [br: indenização]. Isto enfureceu os capitalistas estrangeiros e a Grã-Bretanha rompeu as relações diplomáticas com o México, para exercer pressão sobre o Governo [100]. L. Cárdenas não cedeu. Criou a empresa pública Petróleos Mexicanos (Pemex). A decisão de Cárdenas suscitou um enorme entusiasmo na população. Note-se que a Pemex foi privatizada 65 anos mais tarde, em 2013, no âmbito de um aprofundamento das políticas neoliberais.
Política internacional
Em matéria de política internacional de Cárdenas, há que mencionar que o seu governo foi um dos poucos que forneceu armas aos republicanos espanhóis, opondo-se assim ao bloqueio a que os governos britânico e francês sujeitaram os republicanos. Churchill denunciou violentamente a política do México. Além disso o governo de Cárdenas acolheu e apoiou financeiramente 40.000 republicanos espanhóis depois da derrota às mãos de Franco, que fora massivamente armado pela Alemanha nazi e pela Itália fascista. Cárdenas acolheu também Trotsky [br: Trótski], revolucionário russo perseguido por Estaline [br: Stalin] a quem nenhum governo europeu quis conceder visto nem direito de estadia [101]. Cárdenas manteve aliás relações amigáveis com o exilado russo, o que não impediu um dos agentes de Estaline de assassinar Trotsky no México em agosto de 1940.
Cárdenas alcançou grande popularidade, pois, a partir do momento em que subiu à presidência, baixou para metade a sua remuneração, abandonou o tradicional palácio (o castelo Chapultepec, antiga residência dos vice-reis da Nova Espanha), instalou-se em Los Pinos, menos ostensivo, e transformou o antigo castelo em museu nacional de história do México. No final do seu mandato os seus concidadãos puderam verificar que ele não se tinha enriquecido.
Concluindo, podemos afirmar que, embora Cárdenas não tenha tentado romper com o capitalismo, realizou reformas estruturais que melhoraram a situação do povo, concretizaram parcialmente as reivindicações fundamentais expressas durante a revolução de 1910-1917 e reforçaram o exercício da soberania do país sobre os seus recursos naturais. Além disso teve uma política internacional anti-imperialista e de solidariedade entre os povos.
A vitória de 1942 contra os credores
A recusa de L. Cárdenas a retomar o pagamento da dívida e as negociações com o Comité Internacional de Banqueiros concluiu com uma vitória. A Cárdenas sucedeu na presidência o seu antigo ministro das Defesa, Manuel Ávila Camacho, e Cárdenas tornou-se por seu turno ministro da Defesa.
A partir de 1941, para melhorar as relações com o México, o presidente dos EUA Franklin Delano Roosevelt exerceu pressão sobre os banqueiros do seu país, a começar pelo JPMorgan, para que capitulassem perante o governo mexicano. Washington iria envolver-se na Segunda Guerra Mundial a partir de dezembro de 1941 e necessitava que o seu vizinho mexicano (assim como o Brasil, que também se encontrava em suspensão de pagamento) se tornasse um aliado sólido.
O acordo que pôs fim ao conflito entre o Comité Internacional de Banqueiros e o México constitui um verdadeiro acto de capitulação dos bancos.
Enquanto o Comité Internacional exigia o pagamento de uma dívida avaliada em 510 milhões de dólares (incluindo capital e juros), o acordo final previa o pagamento de pouco menos de 50 milhões de dólares: uma redução de mais de 90 %. Igualmente notável é a taxa aplicada como compensação dos juros em atraso: 1/1000 para os atrasos anteriores a 1923, 1/100 para o período 1923-1943 [102]. Ora em numerosos acordos de reestruturação da dívida datados do século XIX e da primeira metade do século XX, os juros de mora eram inteiramente transformados em capital devido. Recordemos que o acordo assinado em 1922 entre Obregón e o Comité Internacional de Banqueiros implicava o reconhecimento pelo México de uma dívida de 500 milhões de dólares! Ora 20 anos tinham já passado. Ao aceitar reembolsar uma dívida de 50 milhões (incluindo capital e juros), o México obteve uma vitória estrondosa.
E não é tudo: os detentores dos títulos foram obrigados a apresentar os seus títulos e a registá-los e selá-los junto das autoridades mexicanas, antes de poderem reclamar uma compensação! O banqueiros tiveram de registar os títulos junto do governo mexicano, coisa que nunca tinha acontecido. Repare-se que os bancos alemães que faziam parte do Comité Internacional de Banqueiros não estavam autorizados a apresentar os seus títulos, por serem considerados cúmplices de uma potência inimiga.
Acrescentemos que Washington, a partir de 1940, procurou comprar o petróleo mexicano, quando até esse momento ainda não tinha sido prestada pelo México qualquer indemnização às empresas petrolíferas expropriadas. A sociedade petrolífera Sinclair começou a comprar petróleo à empresa pública Pemex. A Sinclair, que tinha exigido uma indemnização de 32 milhões de dólares, aceitou por fim uma compensação de 8 milhões que seria satisfeita parcialmente pelos dólares pagos pela Sinclair à Pemex na compra de 20 milhões de barris de petróleo ao longo de um período de 4 anos. Finalmente chegou-se a um acordo geral e o México prometeu pagar 23 milhões de dólares para indemnizar o conjunto das sociedades petrolíferas norte-americanas expropriadas em 1938 [103].
Graças ao acordo sobre a dívida, aos outros aspectos da política seguida durante o mandato de Cárdenas e ao contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, o México pôde enveredar por uma política de desenvolvimento económico acompanhada de medidas proteccionistas rigorosas até aos anos 1950. No final dos anos 1950 recomeçou a pedir empréstimos aos bancos privados.
Conclusões e reflexões finais
O México é o único país ex-colonizado que, no século XIX e na primeira metade do século XX, conseguiu pelos seus próprios meios impor duras derrotas aos seus credores. Repudiou em 1861 uma grande parte da dívida que lhe era reclamada e obteve uma vitória total em 1867. A seguir, pouco menos de 20 anos mais tarde, as classes dominantes e o ditador Porfirio Díaz conseguiram que o México fizesse marcha-atrás. É típico da cumplicidade e da cegueira das classes dominantes de um país dominado, que constantemente se submetem às potências imperialistas europeias ou norte-americanas.
Quando finalmente Porfirio Díaz foi deposto e eclodiu uma autêntica revolução popular, o México voltou a suspender o pagamento da sua dívida. A suspensão durou mais de 30 anos (de 1914 até ao fim da Segunda Guerra Mundial) e foi combinada com profundas reformas económicas e sociais. A vitória face aos credores foi completa, o que não significa definitiva.
Tudo o que aqui foi exposto mostra o interesse de conhecer o que se passou no México entre a independência de 1821 e o fim da Segunda Guerra Mundial. O outro país que repudiou vitoriosamente a sua dívida foi a Rússia soviética de 1918. O ponto comum com o México é o facto de ter havido coincidência entre o processo revolucionário e o repúdio das dívidas. Diferenças: 1. o governo bolchevique pura e simplesmente repudiou toda a dívida czarista; 2. a Rússia era no momento da revolução de 1917 uma potência imperialista, embora em declínio, enquanto o México era uma antiga colónia espanhola cobiçada pelos imperialismos europeus e norte-americano. Os outros países que repudiaram vitoriosamente dívidas pertencem à categoria das grandes potências – é o caso dos EUA [104] – ou eram directamente protegidos por uma delas – caso da Costa Rica, que era protegida dos EUA face à Grã-Bretanha no início dos anos 1920 [105]. Por tudo isto a experiência mexicana é excepcional e deve ser conhecida [106]. Ora existem muito poucos escritos a este propósito. Interessa ao pensamento dominante dissimular a história real do México. Do lado da esquerda existe uma grande lacuna que este artigo pretende ajudar a preencher.