Para a Big Pharma é mais rentável e seguro abastecer prioritariamente os países ricos, já que os governos do Norte financiam antecipadamente parte da produção e não têm problemas para pagar um preço alto. E é evidente que as grandes companhias farmacêuticas deram a esses países uma prioridade absoluta.
Eric Toussaint, Esquerda.net, 18 de dezembro de 2021
Os números que indicam a distribuição geográfica do fornecimento de vacinas são eloquentes. Para a Moderna, a União Europeia e os Estados Unidos representam 84% das suas vendas totais. A Pfizer/BioNTech destinou 98% das suas vendas para países de rendimento alto e médio e a Johnson & Johnson, 79%. Apenas para o Estado sueco, a Pfizer e BioNTech destinaram nove vezes mais doses do que para todos os países de baixo rendimento juntos. [1]
O mapeamento da vacinação também indica, de forma muito clara, que uma parte do mundo foi deixada de lado. Lembremos que, em início de outubro de 2021, das 5,76 mil milhões de doses aplicadas no mundo, 0,3% foram para países de baixo rendimento, onde vivem 700 milhões de pessoas. Apenas 2,1% da população dos 27 países de baixo rendimento receberam uma dose de vacina contra a Covid-19, ao passo que mais de 60% da população dos Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental está vacinada.
Os governantes de alguns países ricos opõem-se ao fim das patentes que mais de 100 países do Sul global almejam. União Europeia, Suíça e Japão estão entre os que se opõem de forma mais acentuada. No caso dos Estados Unidos, embora o presidente Joe Biden tenha anunciado, em maio de 2021, que era a favor do fim das patentes, até agora não fez o que é necessário para convencer os governos que bloqueiam essa ação na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Com as patentes e o auxílio dos Estados, a Big Pharma recebeu uma renda ilegítima
Os preços que estas farmacêuticas pedem pelas vacinas contra a Covid são totalmente abusivos. Dois exemplos: segundo os cálculos baseados nas pesquisas do Public Citizen, a produção em grande escala da vacina Pfizer/BioNTech custa à empresa apenas 1,20 dólares por dose. Para a Moderna, a vacina custa cerca de 2,85 dólares por dose.[2] No entanto, em alguns países, a Pfizer pede até 23,50 dólares por dose e a Moderna chega a 37 dólares.
As grandes indústrias farmacêuticas privadas formaram um cartel para impor preços abusivos para as suas vacinas, para manter as patentes, para efetivar um grande aumento dos preços. Estas indústrias buscam o máximo de lucro, pagando o mínimo possível de impostos e, assim, obtendo uma renda garantida por pelo menos 20 anos.
Para justificar os preços altos das vacinas, medicamentos e tratamentos, os representantes da indústria farmacêutica alegam o alto nível dos investimentos em investigação e desenvolvimento (I&D) e em ensaios clínicos. Em geral, este argumento é fácil de refutar, mas, no caso da produção de vacinas contra a Covid, cai por si, já que os gastos em I&D e em ensaios clínicos foram financiados pelos poderes públicos com o dinheiro dos contribuintes.
Ao decidirem aplicar uma terceira dose da vacina, os governos do Norte favorecem os interesses particulares da Big Pharma, que obterá um lucro extra. Se as patentes das vacinas contra a Covid, dos testes (PCR, antígenos...) e dos medicamentos não forem revogadas ou simplesmente suprimidas, as grandes empresas que dominam o setor da farmácia acumularão, nos próximos 20 anos, receitas colossais à custa da população, dos orçamentos dos Estados e dos sistemas públicos de saúde.
Portanto, o dilema é enorme, pois sabemos que outras doses serão recomendadas ou impostas na medida em que surjam novas mutações do vírus. Vamos imaginar uma injeção anual, durante 20 anos, com uma vacina protegida por uma patente e, portanto, vendida a um preço alto... Isto gera uma receita extraordinária.
Num dossier muito bem elaborado, intitulado "The inside story of the Pfizer vaccine: a once-in-an-epoch windfall", o Financial Times explica que esta empresa norte-americana, no quadro do seu acordo com a alemã BioNTech, tornou-se líder na produção/comercialização da vacina contra a Covid, deixando para trás as suas concorrentes Moderna, AstraZeneca e Johnson & Johnson. Assim como a Moderna, a Pfizer/BioNTech deu prioridade absoluta aos mercados dos países ricos e, ao final de 2021, já domina 80% do mercado da União Europeia e 74% do mercado dos EUA.
Face aos governos do Sul Global, esta Big Pharma é extremamente exigente e impõe mudanças na legislação como condição prévia para o fornecimento das vacinas. No seu artigo, o Financial Times diz: "Antes de estabelecer o acordo, a Pfizer pede aos países que mudem leis nacionais para proteger os fabricantes da vacina de eventuais procedimentos judiciais (...). Do Líbano às Filipinas, os governos nacionais mudaram as leis para garantir o fornecimento de vacinas".[3]
Na América Latina, denuncia-se exatamente o mesmo comportamento da Pfizer.[4] O Financial Times cita Jarbas Barbosa, o diretor adjunto da Organização Pan-Americana da Saúde, que declara que as condições impostas pela Pfizer são "abusivas, em um momento em que, devido à urgência, os governos não podem se negar". [5]
O jornal financeiro londrino explica que as negociações com a África do Sul foram particularmente tensas. O governo queixa-se das "exigências excessivas" da Pfizer, assim qualificadas pelo seu ex-ministro da Saúde, Zweli Mkhize. E isto atrasou a entrega das vacinas. Segundo o Financial Times, numa etapa da negociação, a Pfizer pediu ao governo sul-africano para alocar ativos soberanos como garantia para cobrir os custos de qualquer possível compensação, algo que foi rejeitado pelo governo.
De acordo com pessoas que conhecem bem o processo, o Tesouro sul-africano rejeitou assinar este acordo com a Pfizer, conforme era solicitado pelo Ministério da Saúde, já que este passo equivalia a "uma entrega da soberania nacional".
O Financial Times acrescenta que "a Pfizer insistiu na indemnização contra ações civis e pediu ao governo que financie um fundo de indemnização". Segundo um alto funcionário, conhecedor dos esforços para conseguir as vacinas, os sul-africanos disseram: "Estes tipos apontam uma arma às nossas cabeças".[6]
A organização sul-africana Health Justice prepara-se para entrar com uma ação judicial para exigir a publicação dos contratos assinados pela Pfizer e o governo da África do Sul. "Queremos saber com que outras coisas jogaram duro", declarou Fatima Hassan, a fundadora da organização Health Justice. "Uma empresa privada não pode ter tanto poder. O contrato deveria tornar-se público. Mostraria o que Pfizer conseguiu obter de países soberanos em todo o mundo".
O comportamento escandaloso dos governos capitalistas mais industrializados, que ampliaram deliberadamente a lacuna que os separa dos povos de países de baix rendimento, fica ilustrado pela terceira dose da vacina. Até novembro de 2021, estes governos aplicaram a terceira dose da vacina em 120 milhões de habitantes dos países ricos, ao passo que o total de vacinas aplicadas nos países empobrecidos alcança apenas 60 milhões de pessoas.[7] Trata-se realmente de um apartheid na saúde pública.
Em agosto de 2021, menos de 2% do 1,3 bilhão de africanos estavam completamente vacinados, contra os mais de 60% dos habitantes da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e Canadá.
Por outro lado, a Amnistia Internacional tem razão ao denunciar AstraZeneca, BioNTech, Pfizer, Johnson & Johnson, Moderna e Novavax, pois "essas seis empresas, no comando da aplicação de vacinas contra a Covid-19, alimentam uma crise de direitos humanos sem precedentes ao se negarem abrir mão dos seus direitos de propriedade intelectual e compartilhar a sua tecnologia e, além disso, a maioria dessas indústrias farmacêuticas abstém-se de enviar vacinas a países pobres".[8]
A COVAX não é a solução
Os governos dos países do Sul terão que se endividar caso queiram ver sua população vacinada, já que as iniciativas do tipo COVAX são totalmente insuficientes e consolidam a influência do setor privado. A COVAX é codirigida por três entidades: 1. A Aliança GAVI, uma estrutura privada da qual participam empresas e Estado; 2. A Coligação de Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), que é outra estrutura privada da qual também participam empresas capitalistas e Estados; 3. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que é uma agência especializada da Organização das Nações Unidas.
De modo especial, entre as empresas que financiam e influenciam na GAVI estão a Fundação Bill & Melinda Gates, a Fundação Rockefeller, Blackberry, Coca-Cola, Google, a International Federation of Pharmaceutical Wholesalers, o banco espanhol CaixaBank, o banco UBS (principal banco suíço privado e o maior banco de gestão de fortunas no mundo), as sociedades financeiras Mastercard e Visa, a fabricante de motores para aviões Pratt & Whitney, a empresa multinacional norte-americana especializada em bens de consumo habituais (higiene geral e pessoal) Procter & Gamble, a multinacional agroalimentar holandesa-britânica Unilever, a petroleira Shell, a empresa sueca de streaming musical Spotify, a empresa chinesa TikTok, a montadora Toyota… [9]
A segunda estrutura que co-dirige a COVAX é a Coligação de Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), que foi fundada em Davos, em 2017, por ocasião de uma reunião do Fórum Económico Mundial. Entre as sociedades privadas que financiam e influenciam fortemente na CEPI, estão, novamente, a Fundação Bill & Melinda Gates, que investiu 460 milhões de dólares.
A composição da iniciativa COVAX diz-nos muito sobre a renúncia dos Estados e da OMS em se responsabilizar pela luta contra a pandemia, em especial, e em relação à saúde pública em geral. Isto ocorre no contexto da onda de neoliberalismo que inunda o planeta desde os anos 1980.
O Secretário-Geral das Nações Unidas e as direções das agências especializadas do sistema da ONU (por exemplo, a OMS, responsável pela saúde, e a FAO, responsável pela agricultura e alimentação) sofreram uma forte evolução, na direção errada, durante os últimos trinta ou quarenta anos. Desde então, cada vez se remetem mais à iniciativa privada dirigida por um número restrito de grandes empresas de ação planetária.
Os chefes de Estado e de governo foram pelo mesmo caminho. Podemos dizer que foram os governos que tomaram a iniciativa, mas, com isso, aceitaram que essas grandes empresas se vejam associadas às decisões e saiam favorecidas pelas opções escolhidas. [10]
Lembremos que há mais de 20 anos investigadores e movimentos sociais, especializados no campo da saúde, propuseram que as administrações públicas investissem dinheiro suficiente para produzir medicamentos eficazes e vacinas contra os diferentes vírus de "nova geração" ligados ao aumento das zoonoses. A grande maioria dos Estados preferiu encaminhar este problema para o setor privado, permitindo-lhe ter acesso aos resultados de investigações realizadas por órgãos públicos, quando, na verdade, era preciso ter investido diretamente na produção de vacinas e tratamentos no quadro de um serviço público de saúde.
Já vimos: a iniciativa COVAX não constitui em absoluto uma solução. A COVAX tinha prometido fornecer, antes do final de 2021, 2 mil milhões de doses aos países do Sul que as solicitassem e estivessem associados à iniciativa. Na verdade, constatou-se que em início de setembro de 2021, somente 243 milhões de doses foram enviadas ao Sul [11]. Sendo assim, consequentemente, o objetivo dos 2 mil milhões de doses é adiado para o primeiro semestre de 2022.
Nenhuma das grandes potências do Norte cumpriu as promessas feitas. Por exemplo: A União Europeia tinha-se comprometido a entregar 200 milhões de doses aos países mais pobres, antes do final de 2021, mas até agora só enviaram cerca de 20 milhões, conforme reconheceu na terça-feira, 7 de setembro de 2021, Clément Beaune, secretário de Estado responsável pelos Assuntos europeus dentro do governo francês. [12]
Segundo um balanço oficial realizado em dezembro de 2021, até ao momento, a COVAX entregou apenas 600 milhões de doses a 114 países ou territórios, muito longe do objetivo inicial de 2 mil milhões para o ano de 2021. Atualmente, são aplicadas 9 doses para cada 100 habitantes nos países de baixo rendimento (segundo o Banco Mundial). Em comparação, a média mundial chega a 104 doses para cada 100 habitantes. Este número chega a 149 doses para cada 100 habitantes nos países de alto rendimento.
A África é o continente menos vacinado, com 18 doses para cada 100 habitantes. [13]
C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool) é outra iniciativa dececionante assumida pela OMS. O mecanismo C-TAP inclui os mesmos protagonistas da COVAX. Foi criado para colocar em comum a propriedade intelectual, os dados e os procedimentos de fabricação, estimulando as empresas farmacêuticas detentoras de patentes a conceder a outras empresas o direito de produzir vacinas, medicamentos e tratamentos, facilitando a transferência de tecnologia. Até hoje, nenhum fabricante privado de vacinas compartilhou as suas patentes ou os seus conhecimentos por meio do C-TAP. [14]
Face ao fracasso desses mecanismos, os e as assinantes do manifesto "Acabemos com o sistema privado de patentes!", lançado pelo CADTM, em maio de 2021, têm razão em afirmar que "Iniciativas como a COVAX e o C-TAP lamentavelmente fracassaram, não só pela falta de adequação, mas, sobretudo, porque correspondem ao fracasso do sistema atual de governação mundial, pelas iniciativas em que os países ricos e as multinacionais, muitas vezes sob a forma de fundações, buscam remodelar a ordem mundial ao seu gosto. A filantropia e as iniciativas público-privadas que estão em pleno auge não são a solução. E menos ainda diante dos desafios planetários atuais, num mundo dominado pelos Estados e indústrias guiadas somente pela lei do mercado e o lucro máximo".[15]
Os assinantes do Manifesto avançam em 8 exigências principais:
1. A suspensão das patentes privadas de todas as tecnologias, conhecimentos, tratamentos e vacinas ligadas à Covid-19;
2. A eliminação dos segredos comerciais e a publicação da informação sobre os custos de produção e os investimentos públicos utilizados, de maneira clara e acessível para toda a população;
3. A transparência e o controlo público em todas as etapas de desenvolvimento da vacina;
4. O acesso universal, livre e gratuito à vacinação e aos tratamentos;
5. A expropriação e a socialização, sob o controle cidadão, da indústria farmacêutica privada, como base de um sistema público e universal de saúde que favoreça a produção de tratamentos e medicamentos genéricos;
6. O aumento dos investimentos e dos orçamentos públicos dedicados às políticas públicas de saúde e de atendimento de proximidade que inclua um aumento da contratação, dos salários e uma melhoria nas condições de trabalho dos profissionais desses setores;
7. A introdução de impostos sobre a riqueza (património e rendimento do 1% mais rico) para financiar a luta contra a pandemia e garantir uma saída socialmente justa e ecologicamente duradoura das diferentes crises do capital mundial;
8. A suspensão do pagamento das dívidas, durante a pandemia e a anulação das dívidas ilegítimas e das contraídas para financiar a luta contra o vírus.
Entre os signatários estão Noam Chomsky e Nancy Fraser, dos Estados Unidos, Naomi Klein, do Canadá, Arundhati Roy e Tithi Bhattacharya, da Índia, Silvia Federici e Cinzia Arruzza, da Itália, líderes sindicais, líderes de associações, mais de 80 deputados (da Alemanha, Bolívia, Brasil, Colômbia, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Portugal, República Tcheca...), incluindo o presidente do Senado boliviano e 22 membros do Parlamento Europeu. [16] Mais de 350 personalidades de todo o mundo dão o seu apoio ao Manifesto. Mais de 250 organizações também assinaram o Manifesto, ao nível internacional.
Reportagem de Eric Toussaint, porta-voz internacional do Comité pela Abolição das Dívidas Ilegítimas, publicada por Contrainformación, 15-12-2021. Tradução de Cepat. Edição de Rui Viana Pereira para o CADTM. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
Notas
[1] Os números foram retirados do Relatório da Amnistia Internacional: «Una doble dosis de desigualdade(link is external)».
[2] Public Citizen, Peter Maybarduk (diretor), «Statement: Moderna Vaccine Belongs to the People(link is external)», publicado em 16 de novembro de 2020. Também: Public Citizen, «How to Make Enough Vaccine for the World in One Year(link is external)», publicado em 26 de maio de 2021.
[3] Financial Times, «The inside story of the Pfizer vaccine: «a once-in-an-epoch windfall»»(link is external), 1º de dezembro de 2021. «Before deals could be agreed, Pfizer demanded countries change national laws to protect vaccine makers from lawsuits (…). From Lebanon to the Philippines, national governments changed laws to guarantee their supply of vaccines.» Financial Times, 1º dezembro de 2021.
[4] Na América Latina, o comportamento da Pfizer é o mesmo: «Activos soberanos como garantía de compra: las insólitas exigencias que Pfizer habría puesto a los Gobiernos de América Latina para venderles vacunas(link is external)».
[5] Financial Times, 1º de dezembro de 2021.
[6] Financial Times, 1º de dezembro de 2021.
[7] Cálculos do Financial Times, no artigo já citado.
[8] Relatório da Amnistia Internacional(link is external) de 22 de setembro de 2021 sobre a indústria farmacêutica e a vacinação contra a Covid.
[9] GAVI, Donors profiles(link is external).
[10] Em setembro 2021, durante uma Cimeira da Alimentação, convocada pelas Nações Unidas, as grandes empresas agroalimentares foram convidadas. Elas tiveram um papel importante, sendo que fazem parte da causa do problema e não da solução à crise alimentar e ecológica, o que é denunciado por uma série de movimentos. Ver CCFD-Terre Solidaire, «Food system Summit: alerte sur un sommet coopté par le secteur (link is external)(…)». Ver também em inglês: The Guardian, ««Corporate colonization»: small producers boycott UN food summit»(link is external). Podem ver também a transmissão televisiva que Democracynow.org(link is external), de Nova York, fez.
[11] Ver a página 5 do relatório da Amnistia Internacional(link is external).
[13] Ler notícia(link is external).
[14] Idem. Nota 10.
[14] Extrato do Manifesto «Acabemos com o sistema privado de patentes!»(link is external)
[16] Lista das assinaturas de pessoas que apoiam o Manifesto «Acabemos com o sistema privado de patentes!»(link is external), #FREECOVIDPATENTS.