Este texto clássico foi escrito por Ernest Mandel em 1970 como introdução da antologia que ele organizou, intitulada Controle ouvrier, conseils ouvrier, autogestion (Paris: Maspero, 1973). O livro foi, em seguida, editado em espanhol como Control Obrero, Consejos Obreros, Autogestión (México: Editora Era, 1974). A introdução foi, finalmente, editada em português, em separata completa, com suas onze partes, pelo Centro Pastoral Vergueiro em 1988. Esta antologia permanece, até hoje, a principal obra de referência para o tema da auto-organização dos trabalhadores e a introdução de Mandel já sistematiza muito de sua reflexão que, depois, seria incorporada na discussão sobre democracia socialista pela Quarta Internacional.
Introdução
Esta antologia pretende apresentar um panorama geral do movimento de idéias e ações que durante quase um século levaram os trabalhadores a tirar o poder do capital sobre as empresas e a substituí-lo pela organização da classe operária, nos centros de trabalho, como dirigente do processo de produção. Trata-se, portanto, de uma antologia eclética, posto que inclui tanto análises teóricas como relatos das ações revolucionárias dos trabalhadores. Na verdade, não pretende ser um trabalho completo. As origens históricas dessa ideia, de uma organização da economia baseada em conselhos de trabalhadores (produtores associados, como dizia Marx), ainda não foram estudadas. O fato de começarmos com citações de Marx e de Engels não quer dizer que a ideia de autodeterminação e autogestão não tenha tido outros precursores. A ausência de sindicalistas revolucionários nesta antologia assim se explica: as contribuições anteriores à Revolução Russa poucas vezes foram objeto de generalizações teóricas que ultrapassassem a ideia de organizar a produção socialista através de sindicatos da indústria expressa por Daniel de Leon.
Após 1917 confundem-se com a idéia de um sistema de conselhos "formados pelas bases’‛. Nos '‛Randenkommunusten" da escola de Pannekoek e de Gorter, incluídos neste livro(2), encontraremos essa idéia expressa de forma mais ampla e precisa.
Ao escolher os textos dessa antologia tínhamos presente dois objetivos: primeiro, demonstrar o caráter universal da tendência dos trabalhadores a apoderar-se das empresas e a organizar a economia e a sociedade a partir das suas necessidades de autodeterminação; e segundo, delinear a evolução da teoria dos conselhos operários de acordo com uma lógica interna movida pelas contradições dessa teoria e determinada, em última análise, pela evolução do próprio sistema capitalista, assim como, também, pela auto-critica das tentativas práticas de superação do sistema.
Para ressaltar o caráter universal do movimento incluímos, deliberadamente, textos quase desconhecidos do movimento operário europeu, referentes às experiências de conselhos e controle operário em diversos países europeus. Na realidade, estas experiências já ocorreram nos cinco continentes, e enquanto redigíamos este prefácio, recebemos informações sobre tentativas de controle operário na Austrália e no Canadá. No Ceilão, os operários e empregados administrativos da Sociedade Nacional de Pesca, depois de uma greve vitoriosa, expulsaram os diretores e eles próprios dirigiram a empresa durante várias semanas. Quem não se lembra que em 1964, durante a mais longa greve ocorrida na Argentina, aproximadamente três milhões de trabalhadores ocuparam quatro mil empresas e iniciaram a organização da produção por conta própria? Um comovente filme, ‛‛A Hora de los Hornos", foi consagrado a este ponto mais alto da luta de classe na América do Sul(3).
Por isto preferimos citar esses exemplos a enumerar todas as experiênçias européias que, algumas vezes, são apenas a imitação do que ocorre em países vizinhos. Desta maneira, esta antologia inclui experiências de conselhos e controle operário no Canadá, Estados Unidos, China, Bolívia e lndonésia, mas apenas cita as experiências austríaca, polonesa e finlandesa, porque são muito parecidas com os modelos alemão e russo do período 1918-1919.
No que concerne à evolução da doutrina do controle operário, gestão operária e poder operário, ela se expressa em toda sua plenitude e com todas as suas contradições nas páginas onde estão seus principais teóricos. Esta introdução tem como objetivo uma revisão crítica da dita evolução.
Capítulo 1
EMBRIÕES DO PODER OPERÁRIO
Toda luta conjunta dos trabalhadores que se esgota em objetivos imediatos e estreitamente corporativista coloca o problema das formas de organização da luta, problema que contém em germe um desafio ao poder capitalista.
O Ministro prussiano Von Puttkamer tinha razão quando pronunciou a famosa frase: "Toda greve esconde a hidra da revolução".
Uma greve puramente profissional tem por objetivo, simplesmente, conseguir para aqueles que vendem sua força de trabalho uma melhor repartição do novo valor criado por eles mesmos, para o patrão que os apropria. Mas, mesmo uma greve dessa, se feita com energia e combatividade, balança o poder capitalista quando impede que o patrão compre "livremente" a força de trabalho, isto é, decide impor aos trabalhadores uma concorrência mútua, quando, na verdade, estes só podem defender-se do poderio financeiro do capital ultrapassando a competição no seio da própria classe. Assim, a greve também tenta impedir que o patrão introduza quem lhe pareça melhor dentro de "sua" empresa. Esta é a condição para o êxito de toda greve. Por isso mesmo, a greve também põe em discussão o direito da burguesia coletiva - do Estado Burguês - de controlar os caminhos e a circulação.
A função dos piquetes grevistas é desempenhar o papel de "polícia de trânsito dos grevistas" nas redondezas da empresa em greve, substituindo a polícia burguesa. A greve põe em discussão inclusive a ideologia burguesa dominante (inclusive o direito burguês) ao revelar que mesmo o Estado burguês mais "liberal", ao defender princípios abstratos, tais como "liberdade de trabalho" ou "direito de circulação livre" (acesso às fábricas), longe de proclamar sua "neutralidade" ou seu papel conciliador dentro da luta de classes, intervém, ativamente, ao lado do Capital e contra o trabalho. Pois, a greve é a afirmação do direito dos trabalhadores de lutar contra a "Liberdade de Exploração" e de lutar a favor do controle sobre a mão de obra por parte da coletividade dos próprios trabalhadores. E, ainda assim, a ideologia dominante não é somente burguesa, mas é algo contraditório. Ao proclamar a liberdade de trabalho impede a maioria dos trabalhadores em greve, o direito de não trabalhar em condições que não lhes convenha, por outro lado não lhes garante a possibilidade de trabalhar permanentemente (o pleno emprego). A "liberdade de trabalho" é apenas a liberdade do capital para comprar a força de trabalho quando lhe é conveniente; a "liberdade de trabalho" é o conjunto de condições sociais jurídicas e ideológicas que obriga o trabalhador a vender sua força de trabalho dentro dos limites estabelecidos por essas condições. Todos os seus direitos são esmagados. O único "direito" que subsiste é o de não morrer de fome, submetendo-se às condições do capital.
Mas o germe que está presente em uma simples greve profissional tende a florescer à medida em que a greve se amplia. Por exemplo, quando a greve de uma empresa se estende a todo um ramo industrial de importância vital; quando uma greve, de toda uma categoria, se transforma em uma greve geral local, regional e, sobretudo, nacional; quando uma greve se transforma de uma greve com abandono do local de trabalho para uma greve com ocupação das fábricas e dos escritórios, e quando da ocupação passiva caminha para a ocupação ativa (quando os trabalhadores retornam ao trabalho, agora sob sua própria direção) e todo o potencial de luta do simples "conflito de trabalho" se desenvolve até suas consequências, ocorre, então, uma prova de força para determinar quem manda na fábrica, na economia e no Estado: a classe operária ou a classe burguesa.
É na organização dos trabalhadores, para que sua luta tenha êxito, onde aparece de maneira mais clara esse "contra-poder" embrionário que a greve evidencia. Logo que uma greve alcança certa amplitude e duração, todo comitê de greve eficiente que a dirija com suficiente combatividade será obrigado a criar em seu seio e entre os próprios grevistas comissões encarregadas de recolher e distribuir fundos de manutenção; comissões para distribuir alimentos e roupas para os grevistas e seus familiares; comissão para evitar o acesso à empresa: comissão para defender os grevistas ante a opinião pública trabalhadora; comissão para obter informação a respeito das intenções dos adversários, etc. Vemos, aqui, o embrião do poder operário que organiza o departamento de finanças de abastecimento, de grupos armados de informações e até mesmo de serviços confidenciais. É evidente que logo que a greve torna-se ativa, articula-se com esses departamentos um departamento de produção industrial, de planejamento e inclusive de comércio exterior. O futuro poder operário, mesmo que só exista de forma embrionária, manifesta já a tendência que lhe é própria: tentar associar o máximo de participantes em torno do exercício do poder, superar, na medida do possível, a divisão social do trabalho entre administradores e administrados, divisão que é própria do Estado burguês e de todos os Estados defensores dos interesses das classes exploradoras na História.
A partir do momento em que ocorre uma greve geral local, regional e nacional, estes embriões de poder operário se manifestam e se desenvolvem em todas as direções. Até mesmo sob o comando de dirigentes relativamente moderados, nada revolucionários, os comitês centrais de greve de uma grande cidade proletária são obrigados a encarregar-se da organização do abastecimento e dos serviços públicos(4). Em Liega, Bélgica, durante as greves gerais de 1950 e 1960-61, a direção da greve regulamentava o trânsito de automóveis dentro da cidade e proibia o acesso de caminhões que não tivessem o salvo-conduto do comitê de greve. A população, inclusive e burguesia, reconheceu o poder de fato. Submeteu-se e dirigiu-se aos sindicatos para obter autorizações, da mesma maneira que em tempos normais se submete à Prefeitura. Já não se trata, portanto, de um germe: o embrião se desenvolveu até um ponto no qual o nascimento é possível.
Uma greve pode ser dirigida burocraticamente por um sindicato, isto é, por funcionários desvinculados dos locais de trabalho, que só aparecem de vez em quando para avaliar seus subordinados. Também pode ser dirigida democraticamente, isto é, por meio de assembléias de grevistas sindicalizados que detêm em suas mãos as decisões referentes ao desenvolvimento da luta. Mas a forma mais democrática que se pode dar à direção da luta é, evidentemente, a de um comitê de greve eleito pelo conjunto dos grevistas, quer sejam sindicalizados ou não, e que se submeta democraticamente às decisões de assembléias gerais de grevistas convocados regularmente. Neste último caso a greve começa a tomar força porque, ao organizar a luta de maneira tão democrática, não só se garante o triunfo da greve e a realização de seus objetivos, eleitos democraticamente, como também, o trabalhador começa a se liberar das posturas passivas, submissas e obedientes dentro da vida econômica.
Com relação à vida econômica, liberta-se o trabalhador do peso das diferentes "autoridades" que diariamente o esmagam. Em consequência, inicia-se um processo de desalienação, de emancipação no sentido real da palavra. Um ser que se acha determinado pelo regime, econômico e social, pelo capital, pelas leis do mercado, pelas máquinas, pelos supervisores e tantas outras fatalidades, começa a se transformar em um ser que "se" determina a si mesmo. Por isso todos os observadores atentos sempre assinalaram as explosões de liberdade e de verdadeira "alegria de viver" que acompanham as grandes greves da história contemporânea.
Quando ocorre uma greve geral ou mesmo só local, não em uma só empresa, mas em toda cidade, e com maior razão quando ocorre em toda uma região ou em todo um país e surgem comitês de greve democraticamente eleitos e apoiados por assembléias gerais; quando estes comitês formam uma federação e constituem um organismo onde se reúnem regularmente seus delegados, nascem os conselhos operários territoriais que são a célula―base do futuro Estado operário. O primeiro Soviet de Petrogado (5) era justamente isto: um Conselho de delegados de comitês de greve das principais empresas da cidade.
Capítulo 2
CONSCIÊNCIA DE CLASSE E PODER
Mas mesmo que toda greve ampla, duradoura e combativa contenha em germe a criação de semelhante poder para destruir o poder do capital, são muitas as exigências para que esse germe se desenvolva. Em outras palavras: normalmente esse germe não terá nenhum desenvolvimento. A diferença que existe entre a contestação potencial e a contestação efetiva do regime capitalista não é só uma diferença de grau, de amplitude do movimento, do número de grevistas, do impacto que a greve produz na economia capitalista nacional; a diferença entre uma contestação potencial e uma contestação efetiva é um determinado nível de consciência dos trabalhadores. Se as decisões não são tomadas conscientemente, nenhuma greve pode pôr em discussão o regime capitalista, nenhum comitê de greve pode transformar-se em soviet.
Nos defrontamos, então, com uma das características fundamentais das revoluções socialistas e proletárias. No passado todas as revoluções sociais deram o poder às classes que já tinham em suas mãos as principais riquezas do país e, portanto, não fizeram outra coisa que sancionar uma situação de fato. A classe operária, ao contrário, é a primeira classe da história que só pode tomar em suas mãos os meios de produção e a riqueza nacional no momento em que se emancipar e conquistar o poder. Sem derrubar o poder burguês do Estado a classe operária não pode apoderar—se de maneira duradoura das empresas, como também não pode eliminar duradouramente o poder estatal do capital sem tirar—lhe o domínio dos meios de produção material.
Na verdade, para derrubar o poder estatal da burguesia é indispensável uma ação política deliberada e centralizada; organizar uma economia planificada e socializada exige, por sua vez, medidas conscientes, articuladas e coerentes. Resumindo, a revolução socialista, longe de limitar-se a um movimento impetuoso, elementar e espontâneo, movimento que, obviamente, se encontra presente em toda revolução popular, e sem o qual seria inconcebível uma verdadeira revolução social, constitui um conjunto de ações conscientes que vão se ligando umas com as outras, e no qual a ausência de um só elo condena à derrota todo o empreendimento(6).
De maneira mais geral, a revolução socialista, cuia missão é transformar a imensa maioria dos trabalhadores de explorados e oprimidos, de objetos da história em sujeitos da história, de seres alienados em seres que forjam seu próprio destino, não pode ser concebida sem uma participação consciente da massa que se propõe a realizar essa tarefa. Esta revolução não pode acontecer sem a participação daqueles que estão interessados nela, da mesma maneira que não se pode aplicar um plano econômico sem a participação daqueles que dirigem a economia.
Mas, para que o germe do duplo poder, que se acha presente em toda greve importante, duradoura e combativa, se transforme em realidade plenamente desenvolvida, é necessário que se reúna toda uma série de condições favoráveis que tornem possível que a consciência de classe do proletariado experimente uma brusca mudança e dê um ’‛grande salto qualitativo". Estas condições são as que criam as situações pré-revolucionárias: crise objetiva do modo de produção (reforçadas ou não por crises conjunturais de super-produção denominadas atualmente "recessão"), crise do poder do Estado e crise nos principais domínios de superestrutura; divisões no seio da classe governante e no seio do governo; descontentamento generalizado das camadas médias; descontentamento acumulado durante muito tempo e aspirações insatisfeitas dentro da classe revolucionária; confiança crescente dos trabalhadores em suas próprias forças e, portanto, crescente combatividade, a qual modifica as relações sociais de força em favor dos trabalhadores e às custas das classes dominantes; lutas anteriores que, em várias ocasiões, não tenham terminado em derrota; consolidação de uma vanguarda (que nessa etapa pré-revolucionária não tem necessariamente que tomar a forma de um partido revolucionário que já goze de influência nas massas) (7).
Quando estiver dada a maior parte dessas condições, qualquer pretexto pode provocar uma explosão. As greves, em vez de se limitarem às lutas tradicionais e a objetivos imediatos e somente profissionais, chegam ao limite da dualidade do poder. Que esse limite seja ultrapassado ou não, depende essencialmente do nível de consciência dos trabalhadores de vanguarda. Outros fatores, por sua vez, interferem nesse nível de consciência, desempenhando um importante papel, entre eles, a existência de uma organização revolucionária e uma educação sistemática que a vanguarda possa ter realizado entre a massa em um período anterior. Isso aconteceu na Russia em 1905, na Espanha em 1936, mas faltou na Itália em 1948 e na França em 1968.
A manipulação da consciência (e inclusive do inconsciente) dos trabalhadores pelos capitalistas e pelo Estado, que controlam os meios massivos de comunicação, já se converteu em assunto da moda. Mas os marxistas não precisam esperar as revelações de Marcuse para saber que a ideologia dominante, em cada época, é a ideologia da classe dominante. No passado foi assim, da mesma forma que na atualidade. O regime capitalista não duraria nem uma semana se o conjunto dos trabalhadores fosse liberado totalmente da influência da ideologia burguesa e pequeno burguesa. Estaríamos tratando o sistema capitalista de "bonzinho" ao afirmar que os trabalhadores podem se emancipar totalmente da influência dessa ideologia se estão sob o domínio do capital. Este domínio não significa somente domínio da educação, da imprensa, do rádio e TV, cinema, mas também, e sobretudo o domínio da economia do mercado, o domínio da coisificação universal, a submissão da trabalho assalariado, que é um trabalho forçado e alienado e pelo trabalho temporário; ambos só podem produzir nas massas uma consciência falsa da realidade social.
O que caracteriza o domínio do capital é que ele não se exerce cotidianamente por meio de relações exteriores de dominação, de relações violentas e de dominação política. Só em períodos de crise aguda do regime a burguesia recorre a meios de repressão massiva para manter o seu domínio. Normalmente, essa dominação se exerce por meio das relações mercantis cotidianas que todo mundo aceita (inclusive os proletários) como evidentes e inevitáveis. Todo mundo compra o pão, os sapatos, paga juros e impostos e para isso deve vender sua "força de trabalho" (exceto quando se é proprietário de um capital). Mesmo os trabalhadores, que através dos estudos, da reflexão, da educação política, e por sua capacidade de tirar conclusões generalizadas das experiências de lutas parciais, compreenderam que essas relações mercantis capitalistas não são, de maneira alguma, "evidentes" e "naturais" , que são a fonte de todos os males dentro da sociedade burguesa e que, portanto, devem ser substituídas por outras relações de produção, inclusive, esses trabalhadores são obrigados, no dia-a-dia, a tolerar, a sofrer e reproduzir as relações capitalistas, se não quiserem ser condenados à margem da sociedade(8).
Desta maneira, só raras vezes a lenta acumulação de ressentimentos, de preocupações, de inquietudes, de indignação, de experiências parciais e de novas idéias pode produzir reviravolta na consciência das massas trabalhadoras (ou pelo menos, na consciência de uma vanguarda bastante ampla e influente que tem condições de atingir os principais setores). De repente, as massas sentem, de maneira instintiva, que não é "normal" nem "inevitável" que seja o patrão que mande; que as máquinas e as fábricas pertençam a alguém que não seja um daqueles que no dia-a-dia as põem em movimento; que a força de trabalho, fonte de todas as riquezas, esteja na condição de simples mercadoria que se compra da mesma maneira que se compra qualquer objeto inanimado; que, periodicamente, os trabalhadores percam seus salários e seu trabalho, não porque a sociedade produza muito pouco, mas sim, porque produz demais.
É assim, então, que as massas procuram instintivamente, modificar as coisas a fundo, isto é, a estrutura da sociedade, o modo de produção. E quando percebem, quando tomam consciência do seu enorme poder, que é produto não só da quantidade de trabalhadores, da sua coesão e de sua força coletiva, que gera a sua união, mas também, sobretudo do poder que adquirem quando, estando só nas fábricas, quando o poder econômico está em poder deles, então "aquilo" que está presente em toda greve ampla e combativa se afirma de maneira consciente.
Os trabalhadores constituem de fato um contra-poder: os conselhos de trabalhadores se arrogam as prerrogativas do poder; intervém em todos os problemas políticos, econômicos, militares, culturais e internacionais do seu país e confrontam suas soluções de classe a todas as soluções da burguesia. É nessa ocasião que uma verdadeira dualidade de poderes vem à tona, como aconteceu na Rússia, entre a revolução de fevereiro e a revolução de outubro. É quando, então, os conselhos operários atuam como orgãos de um novo poder estatal. É quando, então o enfrenamento final ― a insurreição no sentido político do termo, cujo grau de violência dependerá da resistência do inimigo — decidirá quem será vitorioso: o velho Estado burguês, condenado pela história a morrer, ou o jovem Estado operário nascente. Mas o velho Estado burguês pode sobreviver se a energia e lucidez dos trabalhadores falham no momento decisivo, se não têm uma direção revolucionária adequada.
Capítulo 3
OBJETIVOS IMEDIATOS E OBJETIVOS FINAIS
Toda greve importante contém o germe da luta de classe levada às suas últimas consequências: põe em discussão o poder do capitalista na empresa, da classe capitalista na sociedade e no Estado. Para que possa desenvolver toda sua lógica é necessário uma relação de força favorável. Mas os marxistas não são simples analistas da vida sócio- política, que se conformam em registrar as relações de força como uma coisa dada e imutável, ou em calcular simplesmente as oportunidades para futuras modificações. Os marxistas atuam em um sentido exato: tentam modificar as relações de força entre o capital e o trabalho, aumentando a confiança dos trabalhadores em suas próprias forças, elevando sua consciência de classe, ampliando seu horizonte político, fortalecendo seu grau de organização e coesão e forjando uma vanguarda revolucionária capaz de dirigi-los a combates vitoriosos.
Mas isto não quer dizer que os marxistas desconheçam os limites impostos pelas condições objetivas desfavoráveis à transformação dos organismos de autogestão e auto -defesa em organismos de dualidade de poder sob determinadas circunstâncias. Foi comovedor constatar que, depois de mais de vinte e cinco anos de fascismo e ditadura militar servil, os trabalhadores espanhóis redescobriram instintivamente as formas de organização nos centros de trabalho, que estão ligados às melhores tradições da revolução espanhola: as comissões operárias(9). As direções moderadas e oportunistas do movimento operário espanhol clandestino (inclsive a do PC espanhol) procuram transformar e legalizar essas comissões em simples sindicatos, tarefa que, além do mais, estava de acordo com os propósitos e preocupações do patronato espanhol. Os trabalhadores espanhóis, por instinto, compreenderam que, nas condições da ditadura direta do capital, limitar as atividades destas comissões a reivindicações e ações puramente econômicas era inoperante. As comissões operárias lutaram tanto pelas reivindicações democráticas como pelas reivindicações materiais; tanto em favor das vitimas da repressão e da justiça de classe como pelo reconhecimento de seu direito a negociar em nome de todos os seus companheiros de trabalho.
Mas não podiam converter-se em orgãos de dualidade de poder porque a ditadura não se achava a ponto de ser derrubada por poderosa ascensão revolucionária das massas.
A vanguarda marxista revolucionária não pode "provocar" as situações pré-revolucionárias e muito menos as revoluções. Estas são resultado da concordância de um grande número de mudanças "moleculares" e "subterrâneas", entre as quais somente algumas podem ser influenciadas pela ação consciente; outras podem ser previstas e outras que não podem ser previstas, pelo menos no estado atual do nosso saber. Mas o que a vanguarda revolucionária pode e deve fazer é preparar as condições propícias para que os trabalhadores possam abrir uma brecha em direção ao socialismo conquistando a dualidade de poder depois de um período pré-revolucionário e conduzir o período revolucionário até a conquista do poder.
Esta preparação deve ser a articulação de quatro fatores principais. Primeiro, a difusão no seio de classe operária(10) de temas programáticos que a preparem para reagir em determinado sentido, obietivamente revolucionário, no momento em que estale uma luta generalizada. O segundo fator, a educação, nas empresas, de militantes de vanguarda que encarnem este programa e obtenham reconhecimento e autoridade entre seus companheiros de trabalho para poder empreender a luta pela direção das massas quando estoure um combate generalizado. O terceiro fator é a reunião destes militantes dentro de uma organização nacional e internacional, onde se encontre interagindo trabalhadores manuais e intelectuais, os estudantes, os camponeses pobres, revolucionários de outras fábricas, regiões e países. Assim, será possível superar o horizonte limitado que é inevitável em todo trabalhador que só tem uma experiência de luta limitada. Só assim será possível neutralizar os efeitos da divisão de trabalho e da consciência incompleta e falsa que lhe é própria e levar, por meio de uma práxis revolucionária universal, a uma teoria que capte os problemas do imperialismo e da revolução socialista no seu conjunto e, em consequência, possa aperfeiçoar a prática e elevá-la a um nível de coordenação e eficácia muito mais alto. Por último, a capacidade dessa organização de vanguarda (ou pelo menos de alguns de seus setores) em superar a etapa de propaganda e crítica literária e ser capaz de realizar ações exemplares que mostrem de maneira prática aos trabalhadores qual é o sentido da estratégia socialista revolucionária que os marxistas opõem ao reformismo e neo-reformismo das organizações burocratizadas, tradicionais do movimento operário.
Esta estratégia de reivindicações transitórias - conhecida na Bélgica com o nome de "reformas de estrutura anticapitalistas"- tem por objetivo tirar das ações dos trabalhadores uma contradição que é inerente ao movimento operário, pelo menos nos países imperialistas, desde que existam organizações de massa. Por força das circunstâncias, as ações dos trabalhadores sempre estão orientadas para objetivos imediatos (reivindicações materiais, legislação social, conquista de direitos políticos, luta contra as repressões ou golpes de Estado reacionários, etc.). A atividade das organizações que se proclamam do movimento operário, sempre se concentraram em torno de objetivos imediatos, acompanhados ou não de propaganda abstrata em favor do "socialismo" (ou da "revolução socialista" ou da "ditadura do proletariado", etc.).
O fim histórico a ser alcançado pelo movimento operário sempre foi separado das lutas práticas cotidianas. lsto é válido para os reformistas de velho e novo cunho (para quem, parafraseando a famosa expressão de Bernstein, os objetivos imediatos são tudo e o objetivo final não é nada), como os "extremistas de esquerda" mais radicais que negam com desprezo toda luta por objetivos imediatos - só aceitam como válida a luta que tem como objetivo "a conquista do poder" (ou "a conquista das empresas", ou "a destruição do Estado", etc.). Na prática, estas duas atitudes se vinculam: ambas têm como consequência a separação radical entre a luta cotidiana real dos trabalhadores e o objetivo de derrota do capitalismo.
A estratégia das reivindicações transitórias tenta superar esta separação. Para isso, parte da seguinte constatação que permitiu até agora a sobrevivência do regime capitalista: as reivindicações imediatas, mesmo as mais radicais, podem ser integradas perfeitamente pelo sistema; podem realizar-se sem "impregnar" globalmente o modo de produção, posto que não põem em discussão a questão fundamental: o domínio do capital sobre as máquinas e o trabalho.
Na verdade, a resistência do capitalismo, a conceder aumento de salários, a permitir o livre exercício do direito de greve, a livre negociação, etc., dependerá da conjuntura econômica, da gravidade da crise estrutural que em determinado momento esteja afetando o capitalismo em decadência. Mas, por mais grave que sejam as suas contradições internas, de maneira geral essas reivindicações podem ser assimiladas pelo regime capitalista sem que isso lhe seja mortal. Será preferível fazer concessões do que enfrentar um movimento cuja amplitude pode arrancar-lhe o poder. Na verdade, se o capitalismo conserva o poder, existem mil maneiras de neutralizar a natureza explosiva destas conquistas através da economia.
Mas, se partindo de preocupações imediatas dos trabalhadores, forem formuladas reivindicações que não podem ser integradas ao regime e, ao mesmo tempo, os trabalhadores estejam absolutamente convencidos da necessidade de lutar por estas reivindicações, ocorre uma fusão entre a luta por objetivos imediatos e a luta pela derrubada do capital, porque, nestas condições, a luta por reivindicações transitórias converte-se, por sua própria lógica, em uma luta que põe em discussão os próprios fundamentos do capital. Ora, nessas circunstâncias, a única altenativa do sistema é opor uma resistência feroz. Um exemplo típico de uma luta por reivindicações transitórias é a luta pelo controle operário.
Capítulo 4
PARTICIPAÇÃO, COGESTÃO E CONTROLE OPERÁRIO
Por muito tempo a luta cotidiana de classes girava em torno dos problemas de repartição, entre o capital e o trabalho, do novo valor criado pelo trabalho. As reivindicações políticas que se incluíam nessas lutas (por exemplo, a luta pelo sufrágio universal) tinham por objetivo proporcionar instrumentos suplementares que possibilitassem uma repartição mais favorável ao trabalhador desse valor (arrancando uma "legislaçāo social", etc.).
Só nos períodos de crise aguda era colocado em discussão o problema da "socialização" de certos setores da indústria (por exemplo, no final da Primeira Guerra Mundial) mais por razões que resultavam da experiência dos trabalhadores, no que se refere ao funcionamento ou não dos ditos setores industriais, do que por considerações políticas gerais.
No decorrer das últimas décadas o eixo da luta de classes deslocou-se, progressivamente, em outra direção, graças à evolução do próprio modo de produção capitalista, sem nenhuma contribuição da agitação ou da conspiração maligna dos marxistas. Por um lado, a terceira revolução industrial implica numa redução do ciclo de reprodução do capital fixo e uma aceleração no ritmo de inovação tecnológica. Disto resulta, para os trustes monopolistas, a necessidade de planificar, de maneira precisa, a amortização do capital fixo e a acumulação de novo capital fixo, isto é, um planejamento dos custos (incluindo os custos salariais) e a tendência a realizar uma "programação econômica" nacional e mesmo internacional. Por outro lado, o regime capitalista em escala
mundial, que depois da Segunda Guerra debilitou-se, ainda mais que, no pós-guerra de 1914 já não pode permitir-se ao luxo de presenciar passivamente as catastróficas crises de superprodução do tipo da ocorrida entre 1929-1932. Em consequência, vê-se obrigado a intervir com inúmeras técnicas anti-crises, baseadas essencialmente na inflação do papel moeda e do crédito.
Estas duas tendências modificam profundamente as condições nas quais se desenvolvem as tradicionais batalhas entre o capital e o trabalho, dentro do quadro da democracia burguesa parlamentar. Os trustes monopolistas tentam evitar as greves a todo custo. Para isso, buscam integrar os aparelhos sindicais dentro dos organismos estatais, cuja função é "planificar" os salários, da mesma maneira que "planificam" o crescimento econômico (política da receita, planejamento social, política "direcionada" em matéria de salários). Quando a autoridade dos aparelhos sindicais está minada pela aplicação, a longo prazo, dessas práticas, é indispensável sancionar as "greves loucas" (greves selvagens) para manter a eficácia momentânea do sistema(11). Além disso, quando existe um clima econômico geral de inflação que coincida com transformações tecnológicas aceleradas, a atenção dos trabalhadores se desloca inevitavelmente para os problemas da organização do trabalho, das formas de remuneração, do ritmo do trabalho, da estabilidade de emprego. Nessas ocasiões tem-se a impressão (nem sempre de maneira justificada) de que, numa conjuntura de pleno emprego, ou quase pleno emprego, as reivindicações salariais serão satisfeitas de todas as maneiras. Este deslocamento é maior na medida em que a terceira revolução industrial faz surgir uma contradição a mais do capitalismo: a tendência de reduzir, cada vez mais, o trabalho não qualificado e puramente repetitivo no processo de produção. Em consequência, exige uma força de trabalho mais qualificada, com um nível de ensino mais elevado do que antes (mesmo que esse ensino seja parcelizado e inferior às possibilidades e necessidades objetivas da ciência contemporânea). Mas, os trabalhadores, produto dessa formação superior, de repente se encontram numa empresa na qual todas as técnicas refinadas de "relações humanas", "delegações de poder", e de formação de associações de comunicações "informais" não podem mascarar o fato de que as relações capital-trabalho são relações hierarquizadas ao extremo, relações entre os que mandam e os que obedecem.
Sendo assim, o centro de gravidade da luta de classe se desloca dos problemas de distribuição de renda nacional para o problema da organização do trabalho e da produção, isto é, para o problema da própria relação de produção capitalista. Na verdade, trata-se de disputar com o patrão, seja o direito de fixar o ritmo da produção ou o direito de escolher o local para a istalação de uma nova fábrica, ou discutir o tipo de produtos que se fabricam na empresa, ou a substituição dos supervisores ou chefes designados pelo patrão, por companheiros eleitos pelos trabalhadores, ou impedir por parte dos trabalhadores todo tipo de dispensa ou redução do nível de emprego numa região, ou calcular as flutuações do custo de vida; todos os esforços desembocam, em última análise, em uma só e única conclusão(12): o trabalho já não aceita a lógica da economia capitalista, que é a lógica do lucro. O trabalho trata de reorganizar a economia baseando-se em outros princípios: os princípios socialistas que correspondem aos seus próprios interesses.
Os segmentos mais inteligentes da burguesia estão perfeitamente conscientes do perigo que implica, para o regime, em seu conjunto, esta rebeldia instintiva dos trabalhadores contra as relações de produção capitalista(13). Sabem que esta rebeldia ameaça fundir-se com a propaganda, a agitação e a ação da vanguarda revolucionária em favor do controle operário e que essa fusão ameaça explodir o regime. Por isso esforçam-se para canalizar e desviar essa rebeldia (com a ajuda de aparelhos sindicais) para a colaboração e não a contestação de classe. Este é o sentido de toda propaganda que se faz em favor das idéias de "participação", "de Mitbestimmung", de "cogestão", que atualmente lançam importantes setores da burguesia européia (e futuramente serão lançadas por japoneses e norte-americanos). De maneira geral, as fórmulas que utilizam já são suficientemente claras para permitir a diferença entre elas e as reivindicações transitórias. A confusão só aparece quando a ala esquerda dos aparelhos sindicais se apropria do conceito de controle operário para dar-lhe um conteúdo diferente do que o dado pelos marxistas revolucionários.
A diferença fundamental entre idéias de "participação" e "cogestão", por um lado, e o conceito de controle operário, por outro lado, pode resumir-se da seguinte maneira: o controle operário rechaça toda responsabilidade da parte dos sindicatos e/ou dos representantes dos trabalhadores na gestão das empresas; exige para os trabalhadores o direito de veto em toda uma série de domínios que se referem à sua existência cotidiana na empresa ou na duração do seu emprego. O controle operário rechaça todo tipo de segredo, toda "leitura da contabilidade" por um grupo de burocratas sindicais escolhidos cuidadosamente e exige, ao contrário, a maior e mais completa difusão de todos os segredos que os trabalhadores possam descobrir não somente ao examinar a contabilidade patronal e as operações bancárias das empresas, mas também, e sobretudo,
confrontá-las com a realidade econômica que encobre. O controle operário rechaça toda institucionalização(14), toda idéia de converter-se, mesmo que seja só por um período transitório, em uma "parte integrante" do sistema porque compreende que sua integração implica, necessariamente, na sua degeneração, em instrumento de conciliação entre as partes.
Não se trata de uma posição dogmática que dependa de atitudes passionais e irracionais; trata-se, ao contrário, de uma posição lógica que decorre de análises das tendências profundas do capitalismo contemporaneo examinadas do ponto de vista da luta
de classes.
O capitalismo contemporâneo procura, antes de mais nada, controlar todos os elementos indispensáveis para uma reprodução mais ampla e continuada do capital. Este é o conteúdo profundo da fórmula "planificação econômica", "o plano ou o anti- plano" e outro slogans que expressam, à sua maneira, as novas exigências que para o capital decorrem da redução do ciclo de reprodução do capital fixo. Em consequência, ao capital pouco importa que certos grupos de trabalhadores aumentem seus "direitos" numa ou noutra fase do processo da produção, desde que o controle do capital sobre o processo de reprodução, no seu conjunto, se mantenha, se consolide e se reforce.
Em outras palavras, quando setores determinados da classe trabalhadora aceitam associar-se à gestão de "sua" fábrica particular, inclusive com voto paritário e com "participação nos lucros" a única coisa que fazem é assumir os interesses da empresa diante dos concorrentes, isto é, aceitam que a competição capitalista penetre no seio da classe operária e, portanto, aceitam também desarmar-se diante dos efeitos objetivos da competição quando esta afeta a empresa em particular.
Na etapa atual do capitalismo, isto só serve aos interesses da classe capitalista, inclusive se isso implica no abandono de "princípios" que a burguesia não estava antes disposta a abandonar quando a solidez geral do sistema e a relação global de forças lhes eram mais favoráveis e não era necessário e nem útil tais "sacrifícios".
A classe operária não pode aceitar, a menos que corra o risco de uma capitulação crescente, que rapidamente conduziria à paralisia total, que o principio de competição seja transplantado do mercado capitalista e da sociedade burguesa para o seio da sua própria organização e consciência de classe. A classe operária deve reverter a evolução econômica no seu sentido contrário: levar ao seio da organização econômica os princípios de associação, de cooperação e de solidariedade que tenha experimentado em suas próprias organizações. Longe de aceitar a cogestão que a condena à fragmentação de suas forças, a classe operária opõe o principio do "controle operário", onde o argumento da rentabilidade individual das empresas é negado em nome do princípio da solidariedade coletiva. Independentemente da "rentabilidade" dessa ou daquela fábrica, nós rechaçamos as dispensas e o desemprego. Independentemente dos interesses da racionalização, nós rechaçamos a aceleração do ritmo de produção. Independentemente da "necessidade" de aumentar a produtividade, nós rechaçamos a atomização dos trabalhadores no seio da empresa, o que implicaria na introdução de novos sistemas de remuneraçāo. Este é o espírito do controle operário que é necessário difundir no seio das massas trabalhadoras. É nesse sentido que se deve opôr a propaganda do controle operário às armadilhas e aos cantos de sereia da "cogestão".
Trata-se de uma atitude "irracional" do ponto de vista econômico? Não. Na verdade, trata-se do seguinte: a base materialista desta atitude é a convicção - confirmada pela teoria econômica — de que a rentabilidade global da economia nacional ou internacional é superior à soma das "rentabilidades individuais", mesmo que o sistema de planificação democraticamente centralizado funcione com um mínimo de eficácia.
É utópico esperar que semelhante orientação seja adotada por massas trabalhadoras cada vez mais amplas, "à margem de crises revolucionárias"? Esta objeção encobre uma concepção não dialética do desenvolvimento desigual da consciência operária. Pressupõe-se uma correspondência mecânica entre as convicções e as ações das massas trabalhadoras. Na realidade, para que amplas massas operárias sejam capazes de lutar imediatamente pelo controle operário numa grande explosão de lutas, é necessário que anteriormente estejam familiarizadas com esta palavra de ordem. E esta preparação nunca será adequada se só se limitar à propaganda literária e não procurar pelo menos ocasionalmente, passar da propaganda à agitação e à tentativa de transmitir essa palavra de ordem dentro do conjunto dos objetivos fixados nos combates parciais que empreendam os setores da vanguarda. A experiência prática que extraímos destes combates, seu efeito pedagógico entre as mais amplas massas, a capacitação para o domínio desta orientação totalmente nova, constitui uma etapa indispensável para o amadurecimento da consciência da classe revolucionária.
É evidente que isso não significa que num período de "calma" a agitação e a ação possam ser lançadas de uma maneira inconsistente em torno desta explosiva palavra de ordem. O problema consiste em que uma vanguarda revolucionária, digna deste nome, deve acompanhar com a maior atenção o impacto de sua propaganda em favor do controle operário sobre os setores avançados da classe operária, e a partir do momento que o apelo é atendido e que um número crescente de trabalhadores começa a atuar nesse sentido, seu dever não é retroceder, mas pelo contrário, buscar uma experiência parcial de ação e agitação. Além disso, a "diferença" entre um período de "calma" e uma fase pré-revolucionária, por acaso não poderia ser superada justamente através da repercussão que provoca a luta pelo controle operário em uma fábrica, importante em uma cidade ou em uma região?
Capítulo 5
AUTOGESTÃO NO CAPITALISMO
Durante muito tempo os reformistas acreditaram sinceramente que os governos de coalizāo com a burguesia constituíam "uma etapa" em direção aos governos "puramente socialistas". A experiência tem demonstrado que estes governos, ao funcionar dentro do contexto do Estado burguês e não poder questionar os próprios fundamentos do regime capitalista, só podiam defender os interesses de classe fundamentais do capital. Na verdade, os governos de coalização, longe de se constituir em uma etapa para a "conquista do Estado burguês" pela classe operária, constituiam etapas para a integração dos "partidos operários" dentro do Estado burguês. E o que é correto em relação ao Estado é mil vezes mais correto em relação à economia. A economia capitalista só pode funcionar tendo por base a busca do lucro máximo. Toda participação por parte dos representantes dos trabalhadores, na gestão da economia, dentro deste contexto, obriga-os a "participar" de um esforço contínuo de racionalização, o que implica particularmente, na redução periódica do volume de empregos. Esta participação, longe de se constituir numa etapa para a "conquista das empresas", representa simplesmente uma última etapa de integração dos sindicatos dentro do Estado burguês; uma etapa última em sua transformação de instrumento de defesa dos interesses dos trabalhadores frente à burguesia, em instrumento de defesa dos interesses da sociedade burguesa diante dos trabalhadores.
A idéia de conquistar gradualmente a "democracia econômica" sem destruir previamente o poder do Estado burguês e sem a prévia expropriação do grande capital é tão velha quanto o próprio reformismo social-democrata. Encontramos suas raízes em Bernstein, no fim do século passado. Depois da Primeira Guerra Mundial o próprio Bernstein podia ufanar-se de que a prática da social-democracia internacional inspirava-se na sua teoria e não na de Kautsky e Bebel, os quais se opuseram a ele na grande controvérsia a respeito do "revisionismo"(15).
É verdade que a transformação dos conselhos de empresa, de embriões do poder operário em instrumentos para a colaboração de classes no seio da empresa capitalista, constitui-se em uma das mais importantes "conquistas" da social-democracia internacional durante os anos vinte. Mas nesta época tratava-se, como sinceramente acreditava Otto Bauer, de dar "um primeiro passo em direção à forma socialista de produção"(16). Sem dúvida, "quando as relações de força se deterioraram esses conselhos operários só puderam desemprenhar um papel defensivo". Sob o efeito da crise econômica de 1929-1933, sua integração "na comunidade da empresa" se fez mais clara. De instrumentos de luta de classe se converteram em instrumentos para a divisão da classe operária.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, como as relações de força se modificaram uma vez mais em detrimento da burguesia, a idéia de "cogestão" podia renascer das cinzas e aumentar a influência do movimento operário no âmbito do capitalismo monopolista de Estado graças às "nacionalizações democráticas"(17). Na realidade, as práticas de colaboração de classes impostas nesta ocasião, não só pela burocracia social-democrata, como também pelos partidos comunistas, atuaram, uma vez mais, em favor do grande capital, cujo poder vacilante pôde consolidar-se e cujos lucros foram assegurados. A idéia de exercer um "controle público" sobre a economia através do governo, do parlamento, dos municípios, dos organismos paritários etc., é apenas uma ilusão, enquanto o poder do Estado e o poder econômico real estiverem nas mãos da burguesia. Os reformistas e os neo-reformistas justificam sua participação no govemo, nas coalizões com a burguesia, referindo-se às "vitórias", que examinadas com atenção mostram-se mais limitadas e miseráveis que as obtidas pela social-democracia alemã nos inícios da República de Weimar.
Um social-democrata austríaco de esquerda, Eduard Marz, que se considera marxista e continua defendendo Marx, representa, atualmente, a última sobrevivência da tradição centrista austro-marxista da época dos anos 1920 e 30. Para ele, a "cogestão" não é mais que uma etapa em direção à gestão operária, do mesmo modo que a participação nos Ministérios não é mais que uma etapa da conquista do poder. Para manter uma orientação adequada não é suficiente limitar-se a uma "cogestão na cúpula" mas também, é necessário pressionar a favor de uma "cogestão na base" e, consequentemente, "revalorizar a assembléia geral dos sindicatos nos centros de trabalho" ou a "assembléia geral de pessoas" e levá-la a executar um número crescente de funções de controle e cogestão(18). A ala esquerda dos sindicatos da Alemanha Ocidental e da social- democracia tenta orientar no mesmo sentido os projetos que atualmente estão sujeitos à discussão na República Federal em relação à cogestão generalizada na indústria.
É óbvio que os marxistas revolucionários não têm nenhum interesse em perder tempo em querelas semânticas. Se a fórmula "Cogestão na base" (Mitbestimmung am Arbeitsplatz) tem exatamente o mesmo sentido que damos ao controle operário, sem acrescentar nenhum traço de co-responsabilidade na gestão de empresas capitalistas ou na economia capitalista no seu conjunto, então a discussão não tem nenhum sentido.
Mas quando se articula a dita "cogestão na base" com o funcionamento de qualquer tipo de organismo e mecanismo de "representação" dos trabalhadores junto aos representantes do grande capital, a discussão é indispensável. A lógica do regime capitalista faz com que esses organismos inevitavelmente se transformem em órgãos de colaboração de classes, isto é, em orgãos que reforçam o capital e enfraquecem e dividem os trabalhadores. Mas, inclusive os representantes mais avançados dos social-democratas de esquerda ou centristas, jamais excluem esta combinação. Estamos, portanto, na presença de uma reprodução pura e simples das ilusões gradualistas do passado e não de uma luta por um "controle operário novo e diferente".
Uma das formas mais estritas, embora muito antiga, da deturpação da palavra de ordem de controle operário tem sido recentemente objeto de honrarias no seio do PSU- Partido Socialista Unificado. Gilles Martinet dedica-se particularmente a isso, em um livro que tem por título o próprio conceito de reformismo: A Conquista dos Poderes (La Conquête des Pouvoirs). A partir da inegável constatação de que todo poder da classe dominante e forçosamente da classe capitalista é sempre um fato social que se estende a todos os domínios da sociedade, os neo-reformistas tiram a conclusão de que é necessário conquistar o poder em todos os domínios. Mas esquecem que esses "poderes" estão articulados, de maneira exata, em torno de duas estruturas privilegiadas: o modo de produção e o Estado burguês. O modo de produção significa o direito do grande capital de dispor das principais forças produtivas graças às instituições que perpetuam a economia capitalista: a propriedade privada, o salário, a economia de mercado, a integração dentro do mercado capitalista internacional, etc. A ilusão gradualista da liquidação progressiva dos "poderes" capitalistas é tão infundada como a ilusão de mudar a natureza de um exército "conquistando" batalhão por batalhão.
Encontramos a mesma concepção gradualista e irrealista na elaboração da CFDT, que se nutre de algumas das experiências mais avançadas da "greve ativa" de maio de 1968 (referimo-nos à maioria da CFDT e não à tendência minoritária encabeçada por Krummov, que defende posições mais próximas das nossas). Trata-se de uma "autogestão de empresas" que pressupõe o desaparecimento da propriedade privada mesmo que não seja, de maneira nenhuma "em todas as empresas". Esta "autogestão" apresenta-se "o melhor modelo de democratização da empresa", como a possibilidade que tem os trabalhadores de ascender ao poder de decisão econômica".
Mas o problema do "poder de decisão" separa-se do problema do poder puro e simples, isto é, do poder do Estado e do poder econômico. O "plano democrático" aparece (ou subsiste) como uma coisa exterior à autogestão; o parlamento subsiste, também, como uma coisa diferente do Congresso dos Conselhos Operários. A própria autogestão não se exerce através de um conselho operário, mas sim, por uma "instância de direção eleita pelos trabalhadores".
Ao que parece, não compreendem que semelhante "autogestão", sem a derrubada prévia do Estado burguês, é uma utopia total. No caso de desmoronamento do poder estatal burguês, a dualidade entre as "instâncias de direção" econômica que atuam ao nível das empresas e dos "dirigentes politicos", que funcionam dentro do contexto de uma democracia representativa que perpetua a separação dos cidadãos em governantes e governados, só pode acelerar o processo de burocratização que além de tudo, os militantes da CFDT afirmam querer evitar.
Resumindo, a confusão entre o "controle operário" que se deve exigir no seio do regime capitalista, a "autogestão operária" que se deve pôr em prática depois da derrocada do domínio do capital e o poder operário que deve ser um poder tanto político como econômico e articular-se politicamente sobre a base dos conselhos (soviets), da mesma maneira que o faz nas empresas, esta confusão desemboca em uma concepção equivocada na qual subsiste a maior parte das ilusões reformistas, particularmente a da conquista gradual da autogestão no próprio seio do regime capitalista.