David N. Smith, Esquerda.net, 27 de junho de 2018.
George Orwell levava a política a sério.
Isso pode parecer óbvio, dado o cariz político disseminado no discurso “Orwelliano” e nas pedras de toque dos seus famosos romances, a revolução bolchevique em A revolução dos bichos e o controle totalitário do pensamento em 1984. Mas o nível de imersão de Orwell nas correntes da política radical tem sido quase sempre subestimado. Tanto se falou sobre a sua lendária linguagem clara e o seu pensamento livre que ele agora é, para muitos, um símbolo do pensamento não-doutrinário e mesmo anti-doutrinário.
George Orwell, cujo romance mais aclamado apresenta um panfleto de trinta páginas de um inflamado ideólogo ao estilo de Trotsky sobre “a teoria e a prática do coletivismo oligárquico”, é visto muitas vezes como um ingénuo naif para quem o socialismo era moral em vez de teórico, intuitivo em vez de intelectual. A verdade é mais complexa.
Orwell era um iconoclasta, mas no quadro da tradição socialista, não fora dele. As suas sátiras de excessos ideológicos soavam a verdadeiras porque ele conhecia de perto esses excessos — tanto ideologicamente como culturalmente e teoricamente.
Como agora sabemos, graças às suas Obras Completas publicadas entre 1986 e 1998, Orwell sentia-se em casa nos meandros da política de esquerda. Em 1945, quando ele repreendeu os escritores pró-soviéticos por exagerarem o papel de Estaline na revolução russa, foi buscar as provas a uma fonte inesperada: o homem que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros de Estaline de 1930 a 1939 e que regressara à função após ser embaixador nos EUA durante a II Guerra Mundial.
“Tenho à minha frente”, escreveu Orwell, “o que deve ser um panfleto muito raro, escrito por Maxim Litvinoff em 1918 a descrever os acontecimentos recentes na Revolução Russa. Não faz nenhuma referência a Estaline, mas faz rasgados elogios a Trotsky, e também a Zinoviev”.
Os leitores que por acaso tenham reparado, de passagem, que os personagens inspirados em Leon Trotsky são centrais tanto em 1984 (Goldstein) como em A revolução dos bichos (Bola-de-Neve), ficam muitas vezes surpreendidos ao encontrarem discussões em torno do trotsquismo nas cartas e ensaios de Orwell — trotsquismo não-filtrado, herético. No seu ensaio de 1945, “Notas sobre Nacionalismo”, Orwell apresenta um catálogo de tendências políticas, incluindo “3. Trotsquismo”, no qual afirmou que esse termo é frequentemente “usado de forma tão vaga que inclui anarquistas, socialistas democráticos e até liberais. Eu utilizo-o aqui no sentido de um marxista doutrinário” e de “hostilidade ao regime de Estaline”.
Ele avisou, para além disso, contra a confusão entre a doutrina e o seu homónimo: “O trotsquismo pode ser melhor estudado através de panfletos obscuros ou em jornais como o Socialist Appeal do que nas obras do próprio Trotsky, que não era de forma alguma um homem limitado a uma ideia”. Ele interessava-se de igual forma por muitas outras correntes, mais ou menos relevantes.
Isso não era uma excentricidade. Orwell nunca romantizou os grupos de esquerda, mesmo os de quem gostava, como o Independent Labour Party britânico ou a milícia do POUM com quem lutou na Guerra Civil espanhola. Mas ele admirava a divergência e sabia que a construção de uma força de oposição, mesmo pequena, é uma conquista. “Nunca o tinha visto com tanto entusiasmo”, viria a lembrar Arthur Koestler, sobre o momento em que decidiram trabalhar juntos para fundarem uma organização de direitos humanos em 1946.
Quando os grupos a que ele se opunha mas respeitava eram vitimados, ele juntava-se em sua defesa, tanto em privado como publicamente. Durante a guerra foi um crítico acutilante dos resistentes anarquistas, mas quando a Scotland Yard invadiu a sua tipografia em 1944, Orwell publicou uma crítica retumbante na socialista Tribuna.
Quando Vernon Richards e outros foram presos por serem contra a guerra, Orwell aceitou o seu convite para ser o vice presidente do Comité em Defesa da Liberdade. Após a sua libertação, ajudou Richards e Marie Louise Berneri a estabelecerem-se como fotógrafos. Ele acabava de conhecer a fama enquanto autor de A revolução dos bichos e as fotos que tiraram (do autor reticente e do seu filho Richard) tinham valor comercial. E também continuam a ser as melhores fotos de Orwell.
Organização implica esforço e coragem, e Orwell não tinha vergonha de começar por baixo. Ele recolheu panfletos até dos grupos mais pequenos, e levou-os a sério. O inventário de 214 páginas da sua coleção de 2.700 artigos inclui panfletos do All-India Congress Socialist Party, People’s National Party (Jamaica), Polish Labour Underground Press, Leninist League, Groupe Syndical Français, Workers’ Friend, Freedom Press, Russia Today, Meerut Trade Union Defence Committee, Anglican Pacifist Fellowship, e tantos outros.
Não é desta forma que Orwell é geralmente conhecido. Os seus editores e os seus críticos capitalizaram a sua morte prematura para promover o estereótipo do firme profeta anti-intelectual, cujas fábulas distópicas nasceram ou do bom senso comum ou da lamentável idiossincrasia.
Nenhum destes estereótipos é útil. Orwell escreveu com lucidez, desprezou as ninharias casuísticas, mas estava longe de ser ingénuo ou anti-intelectual. Mesmo nos anos finais marcados pela tuberculose, com a energia a desfalecer enquanto acabava o 1984, ele lia prolificamente.
Isto foi uma realidade por muitos anos, mas fiquei impressionado qiando descobri no capítulo final das Obras Completas, que Orwell conhecera Ruth Fischer na primavera e verão de 1949. Fischer, que tinha sido por pouco tempo a secretária-geral do Partido Comunista Alemão — antes de cindir com a Rússia em 1926 — acabara de publicar um enorme estudo, Estaline e o Comunismo Alemão, publicado em 1948.
Em Abril de 1949, Orwell escreveu a Fischer: “Certamente já recebeu muitos parabéns, mas gostava de lhe dizer o quanto apreciei ler o seu livro Estaline e o Comunismo Alemão”. Fischer respondeu pouco depois, agradecendo as “palavras motivadoras” e dizendo que esperava “arranjar tempo” para o visitar no Sanatório Cotswold durante a sua próxima visita a Inglaterra. Ela acabara de reler a “muito estimulante” Homenagem à Catalunha de Orwell e esperava poder discuti-la com ele em pessoa.
A 23 de maio, ela voltou a escrever, agradecendo a Orwell por lhe mandar uma cópia de 1984 duas semanas antes de ser publicada. Um mês depois, logo após a visita de Fischer, Orwell escreveu ao seu amigo Tosco Fyvel, que lhe tinha mandado o livro de Fischer: “foi engraçado encontrar alguém que tinha conhecido de perto Radek, Bukarine e outros”.
Em julho, Orwell e Fischer trocaram prendas (Burmese Days de Orwell, chocolates de Fischer) e Orwell pediu o conselho de Fischer acerca de um pedido que recebera de um jornal, POSSEV, acabado de fundar por russos refugiados em Frankfurt. (Fischer também esteve em Frankfurt por pouco tempo).
“Suponho”, perguntava Orwell a Fischer, “que os editores deste jornal são pessoas de boa fé e também não Brancos?” (referindo-se às forças da reação na Rússia revolucionária). Noutra carta, ao seu agente, Orwell indicou que pedira a Fischer para contactar o POSSEV.
Tudo isto aguçou a minha curiosidade. Ruth Fischer é agora uma desconhecida para a maior parte dos estudiosos de Orwell e também ignorada por muitos dos atuais especialistas no comunismo. Mas ela foi formidável, chamada pelo romancista Arthur Koestler de “provavelmente a mulher mais brilhante na história do Comunismo”. Fischer era próxima de vários amigos de Orwell, para além de Koestler, Dwight Macdonald e Franz Borkenau.
Borkenau e Orwell eram há muito próximos politicamente. A primeira vez que Orwell usou a frase “coletivismo oligárquico” foi numa recensão crítica a um dos livros de Borkenau, e viria depois a escrever críticas de outros dos seus livros, incluindo a história crítica da Internacional Comunista em 1938. Em março de 1949, quando David Astor pediu a Orwell que sugerisse um académico que pudesse escrever enquanto especialista sobre a Guerra Civil espanhola, ele propôs Borkenau, por considerar The Spanish Cockpit o melhor livro sobre a guerra espanhola logo em 1938. Quando, no mês seguinte, Celia Paget lhe pediu alguém que fosse de confiança para defender a democracia contra o estalinismo, ele voltou a escolher Borkenau.
Em agosto de 1949, Ruth Fischer e Franz Borkenau encontraram-se com Melvin Lasky, cuja revista em alemão e apoiada pelos EUA Der Monat publicava A revolução dos bichos em fascículos. Esse encontro num hotel alemão é considerado o cadinho no qual se criou a ideia do Congresso para a Liberdade Cultural. Mais tarde, Fischer escreveu a Lasky desde Paris: “Estou a tratar do projeto para o Congresso de Berlim e encontro apoio em todo o lado. Por exemplo, de Koestler, com quem estive ontem”.
Dois dias depois, Koestler enviou a Fischer uma proposta escrita para uma liga dos direitos humanos “que há uns anos queria fundar com Russell e Orwell. Está desatualizada e foi escrita com um objetivo diferente, mas uma ou outra formulação pode ter alguma utilidade”.
A esse texto, que encontrei no ano passado num arquivo esquecido, chamo “Manifesto de Orwell”. Escrito por Orwell no início de 1946 em diálogo com Koestler e o filósofo Bertrand Russell, este manifesto apela à criação de um novo tipo de grupo pelos direitos humanos, que iria lutar para promover “igualdade de oportunidades” para cada “cidadão recém-nascido”, aprofundar e alargar a democracia, e opor-se à exploração económica. Orwell também esperava promover o “desarmamento psicológico” entre as nações.
Eram objetivos ambiciosos, que apenas foram expostos neste manifesto. Mas eram característicos do Orwell político, cuja orientação era sempre prática, bem como literária.
As crescentes tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética depressa abriram uma clivagem entre Orwell e os seus antigos co-autores, com Koestler e Russell a tornarem-se militantemente russofóbicos. Orwell acreditava que a melhor forma de evitar o perigo de uma terceira e atómica guerra mundial era pressionar para uma livre troca de notícias e opiniões sem fronteiras. Mas os seus antigos colaboradores assumiram uma posição distinta e mais beligerante.
Orwell morreu em janeiro de 1950, pouco antes do encontro fundador do Congresso para a Liberdade Cultural em Berlim. As opiniões divergem sobre se ele se juntaria a Koestler, Russell e Borkenau nessa organização firmemente anti-soviética, que não só alinhou sem pejo com o Ocidente na Guerra Fria, mas também (como se veio depois a descobrir) foi financiada clandestinamente pela CIA.
Koestler duvida que Orwell se teria juntado a eles, dizendo no seu obituário de Orwell que o seu querido amigo George era demasiado idealista para dissolver o seu socialismo ou calar as suas críticas ao capitalismo e ao Ocidente. Essa teimosia, dizia Koestler pesarosamente, era lamentável, pois ele teria gostado de ver Orwell juntar-se a ele no campo dos EUA. Mas, acrescentou, num tom de um tio mais velho e mais sábio, esse idealismo era encantadoramente típico. George era George e pronto.
Koestler retomou desta forma o que se tornou a escolha padrão para tantos dos críticos políticos de Orwell: a acusação de ingenuidade. Em vez de levar Orwell a sério, ele simplesmente caluniou-o enquanto um peculiar inocente, um excêntrico adorável.
Felizmente, o vasto público leitor de Orwell leva-o bem mais a sério. E entre aqueles leitores que vão mais fundo — lendo os seus ensaios menos conhecidos e as suas recensões críticas, bem como os seus romances proféticos — depressa aprendem que a sua ficção tem raízes na familiaridade com a política do mundo real que não é menos especialista por ser despretensiosa.
Nestes tempos de desinformação, a clareza política e a integridade são raras e valiosas.
Orwell foi, e continua a ser, um modelo de lucidez, de verdade e de genuíno discernimento. Que ele encontre um público ainda maior.
David N. Smith é professor de sociologia na Universidade do Kansas. É o autor do recém lançado livro George Orwell Illustrated, bem como de muitas outras publicações, incluindo Marx’s Capital Illustrated,. Artigo publicado no portal Jacobin e traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.