Sarah Fernandes, De Olho nos Ruralistas, 15 de setembro de 2020
No dia em que foi indicado como vice-presidente na chapa de Bolsonaro, Hamilton Mourão prometeu “um governo austero, honesto, sem corrupção, com eficiência gerencial, relacionamento republicano com os demais poderes, ou seja, sem balcão de negócios”. Não precisou de muito tempo no cargo para mostrar que a gestão viria na contramão da promessa. Ainda assim, Mourão esquivou-se dos tropeços de Bolsonaro e em alguns momentos assumiu o papel de uma figura mais ponderada que a do presidente, poupada de críticas.
Nem o aumento exponencial dos casos de Covid-19 ao longo do primeiro semestre atingiu o vice, apesar de ele ter assumido o Conselho Nacional da Amazônia Legal e não ter posto em prática nenhuma ação para conter a disseminação do vírus entre povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, grupos em que a letalidade da doença é maior que no restante da população.
No fim de junho, a taxa de mortalidade por Covid-19 entre populações indígenas na Amazônia Legal era 150% maior que a média nacional, segundo pesquisa feita pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pelo Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam). Até esta terça-feira (15), já são 31.707 indígenas contaminados pela doença, com 806 óbitos, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Sobre esse cenário, Mourão se limitou a dizer que não são garimpeiros que estão levando o vírus para as terras indígenas: “Não é por que têm elementos estranhos lá dentro que a pandemia chegou”, disse a jornalistas em 11 de julho. “As senhoras e os senhores têm que entender, na realidade amazônica, que o indígena sai de dentro da sua terra para ir até a cidade, seja para receber algum benefício, da nossa Lei Orgânica da Assistência Social, seja porque ele tem que comprar alguma coisa”.
Antes disso, Mourão tentou minimizar o mal-estar causado por Bolsonaro ao vetar dezesseis artigos do Projeto de Lei (PL) nº 1142/2020 que previa medidas urgentes de apoio aos indígenas e povos tradicionais na pandemia do novo coronavírus, como garantir que indígenas tenham acesso a leitos de UTI, produtos de higiene, alimentos e água potável.
O vice-presidente afirmou que o indígena não precisa de água potável já que “se abastece da água dos rios que estão na sua região”. A declaração gerou reações imediatas em movimento sociais do campo. De Olho nos Ruralistas fez um levantamento sobre contaminação em rios: “Conheça dez rios em terras indígenas onde Mourão não se banharia: estão contaminados“.
"Mais polido e inteligente, mas a ideologia é a mesma"
Na visão de Ana Penido, que é pós-doutoranda do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e estuda a atuação dos militares no Brasil, os planos do governo para a Amazônia são exatamente os mesmos daqueles da ditadura: garantir uma suposta integração nacional a partir de grandes obras, da aproximação com o agronegócio e do entendimento que a Amazônia é um vazio populacional.
“A novidade é a grande quantidade de militares no governo, por que mesmo na ditadura não havia tantos como no governo Bolsonaro”, diz a pesquisadora. “Na época existia uma tentativa de dar uma cara de legalidade ao governo.”
Até dois meses antes do primeiro turno das eleições de 2018 ainda pairava um mistério sobre quem seria o candidato a vice. Os nomes mais cotados eram o da advogada Janaina Paschoal, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e o do “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança. Após algumas negociações frustradas, Bolsonaro aceitou a última opção: o general da reserva Hamilton Mourão, ligado ao PRTB.
“No momento, eu deixo de ser capitão, o general Mourão deixa de ser general, nós passamos a ser a partir de agora soldados do nosso Brasil”, disse Bolsonaro durante o anúncio do seu vice, feito em uma convenção do PSL, ao qual era filiado, em São Paulo. Causou estranheza o fato de um general de quatro estrelas, um dos postos mais altos do Exército, aceitar ser vice de um capitão reformado.
Mourão elogiou Ustra, o torturador, ao sair do exército
“Não é uma coisa natural nem para Mourão nem para outros ministros militares”, diz a pesquisadora Ana Penido. “Sem dúvida, Mourão tem mais qualificação intelectual que Bolsonaro, só pelo que estudou na sua carreira. Ele é mais polido, fala melhor e tem uma visão geopolítica mais ampla, mas a ideologia dele é a mesma de Bolsonaro. Não existem alas em disputa no governo, estão todos alinhados”.
Antonio Hamilton Martins Mourão, de 66 anos, ingressou no Exército em 1972 pela Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro. Ele comandou a 6ª Divisão do Exército, o Comando Militar do Sul e chegou a ser instrutor na academia onde se formou. Além disso foi adido militar do Brasil na Venezuela e cumpriu missão de paz em Angola. Antes de seguir para a reserva, Mourão era secretário de Economia e Finanças do Comando do Exército.
No seu discurso de despedida do exército, em 2018, Mourão elogiou o torturador Carlos Alberto Bilhante Ustra e chegou a chama-lo de “herói”. Bolsonaro havia elogiado o carrasco de Dilma Rousseff durante a votação do impeachment da presidente na Câmara, em abril de 2016. Ustra foi chefe do DOi-Codi entre 1970 e 1974, período em que houve 45 mortes e desaparecimentos de presos políticos naquela instituição, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Em 2017, Mourão já havia chocado a opinião pública ao defender uma possível intervenção militar no Brasil caso as instituições não resolvessem “o problema político do país”. A declaração foi dada durante uma palestra promovida pela maçonaria, em Brasília, grupo do qual o vice-presidente é bastante próximo.
Após assumir o cargo, Mourão ganhou algum destaque ao adotar posturas contrárias à do presidente, chegando a afirmar que não queria ser um “vice decorativo”, em alusão à carta enviada pelo ex-presidente Michel Temer a Dilma Rousseff, meses antes do impeachment. Enquanto Bolsonaro criava conflitos com a imprensa, Mourão se mostrava mais solícito; enquanto o presidente fazia declarações tempestuosas no Palácio do Planalto, o general tentava pôr panos quentes e acalmar os ânimos do mercado.
Além disso, ele declarou publicamente que não era positiva para a democracia a saída do país do ex-deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), um dos grandes adversários políticos de Bolsonaro. Ele também causou incomodo na base aliada do presidente ao afirmar que o aborto devia ser uma “escolha da mulher”, conquistando até a simpatia de alguns críticos a Bolsonaro.
Vice foi enquadrado por Carlos Bolsonaro e Olavo
A situação começou a mudar após um conflito público com o filho do presidente, vereador fluminense Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), e com o filósofo mentor do governo, Olavo de Carvalho, que se incomodaram com a postura do vice. Carlos chegou a compartilhar um vídeo chamando Mourão de “traidor”. O general linha-dura decidiu pela conciliação e, desde então, tem adotado uma postura mais discreta no governo, apesar de manter uma agenda intensa de reuniões com investidores e maçons e de, vez ou outra, vir a público colocar panos quentes em declarações polêmicas de Bolsonaro.
“Na trajetória de vice do Mourão há duas coisas que se destacam: em um primeiro momento ele tinha uma postura mais ativa, dava muitas entrevistas, sentava com o PIB nacional e conversava com a imprensa”, analisa Ana Penido. “Depois de desencontros parece ter se recolhido, mas quem acompanha a agenda dele percebe que ele continua recebendo muitas delegações do exterior. Aí fica a dúvida: quem de fato faz a política externa do Brasil?”.
Os holofotes se voltaram novamente para o vice-presidente apenas em fevereiro, quando ele assumiu o Conselho Nacional da Amazônia Legal, por meio de decreto presidencial que transferiu o órgão do Ministério do Meio Ambiente para a vice-presidência. Assim, sem expertise na área, o general passou a ser o responsável pelas políticas de controle de queimadas e de desmatamento no bioma.
As últimas discordâncias do vice com o Bolsonaro foram justamente durante a pandemia, quando Mourão se posicionou a favor do isolamento social, política amplamente criticada por Bolsonaro que, questionado pelo discurso duplo do governo, afirmou: “O presidente sou eu, pô!”. Alguns dias depois, em entrevista ao vivo dada ao jornalista José Luiz Datena, Bolsonaro afirmou que Mourão poderia se sentir à vontade para dar declarações por ser “o único que não é demissível no governo”.
Greenpeace vê "maquiagem verde" no conselho da Amazônia
Hamilton Mourão passou a comandar o Conselho Nacional da Amazônia Legal ao lado de catorze ministros, reunindo pastas como Justiça, Defesa e Comunicações. Os governadores dos nove estados da Amazônia Legal foram excluídos do órgão, assim como qualquer instituição que representasse a sociedade civil e os povos da floresta.
“É uma maquiagem verde que cai bem a Mourão”, avalia a coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace, Mariana Mota. “O conselho não tem metas, estratégias, transparência e nem propõe medidas concretas para reduzir o desmatamento. É uma soma de zeros. Uma estratégia apenas de propaganda”.
Para ela, o conselho foi “desenterrado” na intenção de dar uma resposta a entidades ambientalistas e governos internacionais sobre a controversa política ambiental de Bolsonaro. A pressão veio após casos de queimadas, exploração ilegal de recursos naturais em terras indígenas e alertas de desmatamento.
Estes aumentaram consideravelmente no governo Bolsonaro. Em 2019 foram derrubados 9.166 quilômetros quadrados de mata nativa da Amazônia, contra 4.946 quilômetros quadrados em 2018, segundo o sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A tendência continuou a mesma em 2020, mesmo com Mourão a frente do Conselho.
Em junho, durante escalada da pandemia do novo coronavirus no país, 1.034,4 km² da Amazônia estavam sob alerta de desmatamento, um recorde para o mês desde 2015. Durante todo o semestre, o aumento de áreas desmatadas no bioma foi 25% maior que no mesmo período do ano anterior. Mourão justificou o aumento dizendo que as medidas do governo para conter o desmatamento começaram “tarde” e admitiu que a derrubada “ultrapassou o limite”.
Ainda assim, o vice não pôs em prática nenhuma medida efetiva para conter o desmatamento nem a disseminação da Covid-19 na Amazônia, mesmo a região tendo enfrentado um aumento exponencial do número de casos nos primeiros meses da pandemia. Especialistas temem que o desmatamento na Amazônia aumente ainda mais durante a pandemia, já que as ações de controle tendem a diminuir e que grileiros e madeireiros não cumprem isolamento social.
Na última quarta-feira (09), Mourão compartilhou no Twitter um vídeo da Associação dos Criadores do Pará (Acripará), cujo presidente foi flagrado em 2018 por explorar trabalhadores em condições análogas à de escravos. “De que lado você está?”, perguntou o militar. “De quem preserva de verdade ou de quem manipula seus sentimentos?”
Mariana avalia que a proteção da floresta se faz com inteligência, fiscalização, punição e autonomia de servidores especialistas. “Quem tem estrutura para isso é o Ibama”, afirma, referindo-se ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. “Mas o órgão vem sendo cada dia mais enfraquecido e com servidores cada vez mais oprimidos. O projeto do governo Bolsonaro é enfraquecer o Estado na área de proteção ambiental. O resultado é o aumento do desmatamento, das queimadas e o reflexo disso para o mundo. O governo tenta uma ação marqueteira para mudar a imagem, mas sem mudar a realidade”.
Na intenção de sustentar essa imagem de que algo está sendo feito, Mourão pediu a Bolsonaro que promulgasse, em abril, uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que enviaria militares para áreas desmatadas da Amazônia. O vice-presidente já declarou que os oficiais podem permanecer na região até dezembro de 2022. “Essa postura de uso da força armada, que vai na floresta sem inteligência, tem um custo alto e não garante o fim da derrubada, pois na hora em que saírem de lá o desmatamento volta”, diz Mariana.
Escalada militar no governo ameaça democracia
Para Ana Penido, não foi Bolsonaro quem levou os militares ao governo, mas sim os militares que o levaram a se eleger, já que já havia uma escalada política desse setor antes mesmo das eleições:
— Os militares tinham convicção que iam conseguir controlar Bolsonaro e colocar rédeas no ‘cavalão’, como era chamado na escola militar. O que se viu, no entanto, é que é difícil de controlá-lo. Ao longo do ano passado, alguns começaram a aproveitar esse jeito do presidente, pois enquanto ele falava bobagens que chamavam a atenção da opinião pública o campo estaria aberto para passar o que quisessem.
Isso tem, no entanto, um impacto grave para o país: a morte da democracia.
“As forças armadas são uma corporação formada por pessoas que têm a mesma cabeça, que estudaram nos mesmos lugares, que trabalharam nos mesmos lugares e que compartilham os mesmos valores”, avalia Ana. “É muito diferente do que se fossem grupos de médicos ou advogados no governo porque eles têm hierarquia, disciplina e, sobretudo, armas. Isso os torna capazes de impor a própria vontade”.