As eleições deste 3/11 acontecem num encruzilhada de crises sem precedentes e em clima de tensão inédito
As próximas eleições norte-americanas não são apenas mais umas eleições. Não só porque, por mais que o resultado fosse dado como certo, nenhumas presidenciais na superpotência o serão e porque estas em particular, sendo disputadas, podem ter efeitos em importantes escolhas de política internacional, decidindo sobre as tonalidades do protecionismo econômico ou do intervencionismo político-militar dos EUA. Mas sobretudo porque acontecem numa encruzilhada de crises sem precedentes e num clima de alta tensão.
Algumas destas crises estão amadurecendo há algum tempo. Nos EUA, a crise ambiental causa já fenômenos extremos e desastres de dimensão sem paralelo: secas, ondas de calor, cheias, incêndios. Apesar do fracking (método de extração de sobras de petróleo nas rochas geradoras, com ajuda de água sob alta pressão) e ter sido tema de campanha, a crise ambiental terá sido a grande ausente desta eleições.
A crise de legitimidade e de funcionamento de um sistema político que nos é explicado por Jorge Martins também não é de hoje. O seu bipartidarismo anquilosado alimenta-se diretamente do dinheiro dos mais ricos nas campanhas e está estruturalmente construído desde o início com intuitos classistas. Ao mesmo tempo, a direita deste sistema esforça-se denodadamente por afastar os mais pobres até do direito de votar.
Num país altamente desigual e com a ausência de um Estado Social, a crise social era também já uma realidade gritante. Assim como a violência policial estrutural e a discriminação racista sistemática de que Francisco Louçã nos traça a história. Foi jogando com esse racismo e com o medo, aliás, que Trump conseguiu vencer a eleição de 2016 e é ele que continua a ser um dos seus trunfos em 2020.
Mas também há circunstâncias absolutamente excepcionais que envolvem estas eleições, a começar pela resposta a este racismo dada pela revolta do Black Lives Matter 2.0 que as precedeu e que irrompeu pelo próprio período de campanha. Do outro lado do espetro político, a agressividade da extrema-direita armada também se reforça. Alicia Garza, uma das co-fundadoras do Black Lives Matter conta-nos o que é ser ameaçado pelas milícias e analisa-as.
Igualmente absolutamente excepcional e determinante para o desfecho eleitoral é a crise sanitária provocada pandemia da covid-19. Trump geriu desastrosamente o surto, desvalorizou-o e mentiu. E a sua administração revelou uma incompetência desmesurada. A prioridade não eram as vidas mas “a economia”. Agora, é também com a defesa de manter a economia aberta que tenta minimizar perdas, insistindo que ele o irá fazer e apresentar uma vacina a curtíssimo prazo, ao passo que o seu rival iria fechar a economia e atrasar a vacina.
Outro fato absolutamente excepcional é a existência de um presidente em funções que ameaça não aceitar a derrota eleitoral e manter-se no poder através de um golpe eleitoral: podendo ter maioria na contagem de votos presenciais, o que é provável porque a sua base de apoio desconfia, desconfiança para a qual ele foi uma peça central, dos votos antecipados e por correspondência, tentaria declarar-se vencedor e procuraria anular o máximo de votos não presenciais por serem tardios ou não cumprirem certos requisitos. Anne E. Deysine detalha os vários cenários que se poderão seguir a uma noite eleitoral complicada.
Damos ainda palavra à esquerda norte-americana através de uma entrevista de Miguel Heleno ao sociólogo Michael Burawoy e da análise de Ashley Smith e Dan La Botz (matérias abaixo), que argumentam as suas posições diferentes sobre o que fazer nas eleições e qual o futuro da esquerda no país.
Este artigo foi escrito a três semanas das eleições presidenciais, quando o país assistia a um agravamento da pandemia, uma crise económica contínua, ameaças de violência armada da direita e a um presidente cada vez mais errático.
Donald Trump parece cada vez mais ver-se como um super-homem, por causa da sua experiência com o coronavírus e talvez devido a efeitos secundários do seu tratamento com esteroides. Nancy Pelosi, presidente democrata da Câmara dos Representantes, anunciou que o órgão a que preside criaria uma comissão inquirir sobre a sua destituição devido à 25ª emenda à Constituição, uma vez que ele está num “estado modificado” e poderia ser incapaz de cumprir com as suas funções.
Ela e outros legisladores creem aparentemente que o presidente está a ficar louco devido às suas declarações segundo as quais tinha sobrevivido à Covid porque é “um espécime físico perfeito”, atacando os seus aliados mais próximos, entre os quais ministros por si nomeados e prevendo retomar a estrada para fazer campanha antes do fim dos seus dez dias de isolamento.
Ao mesmo tempo, Trump parece estar em vias de perder as suas eleições após o seu desempenho desastroso no debate presidencial nacional com Biden, seguido pela sua infeção com Covid e a sua hospitalização.
A queda de Trump nas sondagens começou com o primeiro debate presidencial, a 29 de setembro, que degenerou no caos quando o moderador perdeu o controlo e Trump interrompeu em várias ocasiões Biden. Enquanto este fez do coronavírus o problema central, o comportamento de intimidação de Trump impediu os candidatos de ter uma discussão. Face ao assédio de Trump, Biden respondeu-lhe tratando-o por “palhaço” e dizendo-lhe para se “calar”.
Regra geral, os debates têm pouco impacto nas sondagens, mas neste caso o debate foi seguido por um recuo do apoio a Trump.
O candidato do Partido Democrata, Joseph Biden, passou a estar à frente nas sondagens, mesmo em Estados incertos como o Michigan, o Wisconsin, a Pensilvânia e a Florida. No total, Biden leva cerca de dez pontos de avanço. Numerosos eleitores idosos, eleitores brancos da classe operário sem licenciatura e mulheres dos subúrbios mudaram o voto de Trump para Biden.
O perigo da extrema-direita e a possibilidade de violências no dia do escrutínio tornaram-se evidente a 8 de outubro com a prisão pelo FBI de 13 homens, membros de uma milícia armada ilegal, acusados de ter planificado o rapto da governadora do Michigan, Gretchen Whitmer e o derrube violento do governo deste estado.
Whitmer é uma democrata que enfrentou repetidas manifestações armadas que a qualificavam de “tirana” por ter imposto restrições sanitárias devido à pandemia. Ela agradeceu ao FBI pela sua ação mas culpou Trump por ter encorajado tais grupos de direita e supremacistas brancos, o que levou Trump a atacá-la como ingrata.
A conspiração do Michigan aumenta o medo que o presidente utilize agentes federais ou outros polícias ou tropas e mobilize os seus apoiantes armados para promover a violência e talvez mesmo tentar manter-se no poder contestando os resultados. Um pouco por todo o país, há grupos que se organizam para tentar manter a segurança das eleições, proteger os boletins de voto e a sua contagem e resistir a um golpe.
A incapacidade de Trump gerir o vírus
A principal causa do declínio do apoio a Trump é a sua gestão desastrosa da pandemia do coronavírus. Ele supervisionou a pior crise sanitária da história dos Estados Unidos e a pior gestão da pandemia do mundo desenvolvido: 215.000 pessoas morreram e estão a morrer ainda a um ritmo de entre 900 a mil por dia; há cerca de 50.000 novos casos cada dia e 7,7 milhões de pessoas contraíram a doença que continua a propagar-se.
O governo americanos ainda não tem um plano acabado para fazer testes, investigar contactos, decretar isolamentos e quarentenas. Trump criou um grupo de trabalho sobre o coronavírus mas contradiz constantemente os peritos em saúde pública, fornece falsas informações, sugere remédios ilusórios e ignora de maneira flagrante as boas práticas sanitárias. E estamos agora à beira de uma segunda vaga.
Para além de tudo isto, Trump – que recusou colocar máscara e desprezou quem o fez – organizou uma série de iniciativas sem máscaras, sem distanciamento físico; alguns destes eventos tiveram lugar em espaços interiores, foram super-propagadores levando à infeção do próprio Trump, de cerca de vinte conselheiros da Casa Branca, de um almirante e de três senadores. No total, desde março, vinte senadores e representantes ficaram doentes com coronavírus, assim como 123 funcionários do Capitólio. A violação flagrante pela parte de Trump das normas sanitárias da sua própria administração levou à sua própria infeção e a uma breve hospitalização.
Depois da sua breve hospitalização de três dias, ainda doente com Covid e tratado com remdesivir, o cocktail antiviral da Regeneron e o esteroide dexaméthasone, Trump voltou à Casa Branca. Surgiu ostensivamente à varanda entre bandeiras americanas e, ainda sem fôlego, tirou a máscara. Recusou ficar em quarentena nos seus aposentos da Casa Branca e foi para a sala oval para trabalhar com os seus conselheiros. Tweetou: “sinto-me verdadeiramente bem! Não tenha medo da Covid. Não a deixem dominar a vossa vida. Desenvolvemos, na administração Trump, medicamentos muito bons e conhecimento. Sinto-me melhor que há vinte anos!”
Os médicos e as autoridades de saúde pública ficaram consternadas que ele tenha deixado entender que a doença não era algo a temer. Muitos criticaram o presidente por não ter mencionado os seus apoiantes infetados e os 200.000 mortos. É exatamente este género de comportamento que faz agora Trump descer nas sondagens.
Os Estados Unidos parecem agora à beira de uma segunda vaga do coronavírus, uma vez que os casos registados em numerosos estados assemelham-se à situação de março passado. Espera-se que o fim do outono e os meses de inverno levem a mais casos de Covid já que mais atividades se desenvolvem no interior. O coronavírus coincidirá igualmente com a gripe sazonal que causa cerca de 34.000 mortes cada ano. Nenhuma vacina é esperada antes do próximo ano e a sua distribuição pode levar cerca de seis meses, de forma que o alívio não pode chegar antes do próximo Verão.
A crise econômica americana
A incapacidade de Trump gerir eficazmente o coronavírus aprofundou a crise económica nos Estados Unidos que se tornou tão grave quanto a Grande Depressão dos anos 1930. Desde 15 de março, 62 milhões de pessoas no total enviaram pedidos de subsídio de desemprego federal e cerca de 900.000 continuam a pedi-lo a cada semana. Algumas pessoas voltaram ao trabalho mas o departamento americano do Trabalho reportou em setembro que 13,6 milhões (8,4 % dos cidadãos ativos) continuam sem emprego. Na verdade, a taxa real de desemprego poderá ultrapassar 11%.
A pandemia tocou os trabalhadores de forma muito desigual. Numerosos trabalhadores de colarinho branco podem trabalhar a partir de casa com o seu computador. Os trabalhadores das atividades essenciais – hospitais, creches, agricultura, transformação de alimentos, comercialização de alimentos, de água, gestão de lixo, energia, transportes e alguns outros setores – foram mais expostos e sofreram mais a doença e registaram mais mortes.
Muitos destes trabalhadores são mulheres, negros, latinos e migrantes com ou sem papéis. A crise económica provocou igualmente uma crise fiscal levando a cortes orçamentais nos estados e cidades, uma redução de serviços e despedimentos de funcionários.
A 27 de março, o Congresso tinha adotada a lei CARES, um projeto de lei de estímulo económico de 2.200 mil milhões de dólares que deu apoio financeiro às empresas, aos governos dos estados e cidades, bem como aos trabalhadores. A lei CARES previa um pagamento único de 1.200 dólares a cada desempregado e as famílias receberiam mais 500 por criança. Seriam igualmente feitos pagamentos semanais suplementares (ou seja somando-se aos subsídios de desemprego pagos pelos estados) de 600 dólares aos desempregados mas estes terminaram a 31 de julho.
Os subsídios de desemprego pagos pelos estados variam consideravelmente, da Florida, que paga apenas 275 dólares por semana, ao Massachusetts que paga 803. Os direitos de alguns desempregados vão esgotar-se e alguns trabalhadores que eram pagos por debaixo da mesa não receberam nunca tais prestações. Tal como numerosos trabalhadores sem papéis nada receberam.
E a recessão continua: a United Airlines e a American Airlines despediram 30.000 trabalhadores, a Walt Disney despede 28.000 nos seus parques temáticos e a Allstate Insurance 3.800.
Congresso debate outro projeto de lei semelhante à lei Cares mas está bloqueado
A pandemia e a depressão atingiram o povo americano. Dezenas de milhares de pessoas foram confrontadas com despejos, mas uma lei federal temporária, depois uma ordem dos
Centers for Disease Control (a administração sanitária) e certas leis estaduais impediram muitos despejos. Contudo, os senhorios despejaram muitos inquilinos e, em qualquer caso, as rendas devidas continuam a acumular-se. Quando a pandemia acabar e as moratórias às rendas forem levantadas, dezenas de milhões de pessoas deverão dezenas de milhares de dólares em rendas.
Os seguros de saúde, que nos EUA são geralmente assumidos por intermédio do empregador, são igualmente um problema. Quando os trabalhadores são despedidos, perdem o seu seguro de saúde. Segundo uma estimativa preliminar, até 27 milhões de pessoas perderam os seus seguros de saúde. Muitas pessoas não têm mais meios para ir ao médico ou ao dentista.
A insegurança alimentar é um problema crescente. Com a Covid, estima-se que uma família em cada quatro não tenha alimentação adequada e uma família com crianças em cada três tenha muito poucos alimentos. A insegurança alimentar é mais importante nos lares negros e latinos: antes mesmo da Covid, ele atingia respetivamente 19 % e 17 %, contra 7 % nos lares brancos. As organizações de solidariedade social fornecem agora alimentação a milhões de pessoas.
A crise climática
As alterações climáticas têm tido igualmente um impacto desastroso nos EUA com enormes incêndios na floresta da Califórnia, no Oregon e em outros estados do oeste e furacões e tempestades tropicais nos estados do golfo do México. No sul da Califórnia, as temperaturas atingiram os 51 graus e o calor fez-se acompanhar de ventos violentos. Nestas condições, os incêndios, principalmente causados por relâmpagos, queimaram mais de dois milhões de hectares, destruíram milhares de casas e fizeram 34 mortes. Os incêndios também levaram a uma qualidade do ar perigosa para milhões de pessoas na costa oeste.
Tivemos duas dezenas de tempestades tropicais este anos; das quais oito foram furacões. Houve pelo menos 16.000 milhões de dólares de estragos materiais, numerosas casas e empresas ficaram em ruínas e perderam-se 125 vidas. Milhões de pessoas tiveram de ser evacuadas devido a incêndios e inundações e as atividades económicas foram perturbadas. Tudo isto contribui para o sentimento de catástrofe nacional.
As lutas sociais e a esquerda
A pandemia de coronavírus e a crise económica que a acompanha fecharam lugares de trabalho e escolas, tornando possível o maior movimento de protesto social contra o racismo da história americana. Entre 15 a 26 milhões de pessoas participaram nos protestos devido ao assassinato de George Floyd em Minneapolis a 25 de maio. O assassinato de Breonna Taylor pela polícia em Louisville e vários outros casos alimentaram igualmente a indignação.
Sob a palavra de ordem Black Lives Matter, as manifestações dirigidas pelos negros implicaram principalmente jovens de todas as “raças” e religiões. Os participantes usavam geralmente máscara e, por isso, não transmitiram novos surtos de Covid.
A polícia trouxe violência às manifestações através da sua utilização abusiva de bastões, de gás lacrimogéneo e gás pimenta e granadas “flash” (que cegam e ensurdecem temporariamente). Em resposta, alguns na multidão lançaram garrafas de água em plástico ou mandaram de volta o gás lacrimogéneo e alguns “esquerdistas” destruíram bens.
Houve também infiltrações de militantes nacionalistas brancos nas multidões, encorajando a
violência na esperança de gerar uma guerra racial. Onde houve mortes, como em Kenosha e Portland, foi onde os manifestantes de direita ou mais raramente de esquerda estavam armados. Contudo, apesar das provocações policiais, 90% das manifestações foram pacíficas.
Ainda que as manifestações antirracistas tenham sido enormes e combativos, o seu impacto foi limitado.
As manifestações despertaram a consciência do racismo na América. Os jornais publicaram artigos educativos, a televisão e a rádios e as redes sociais difundiram vídeos sobre a situação dos negros. As universidades, as agências governamentais e mesmo empresas privadas organizaram discussões sobre o racionais. Mas o movimento não tinha nem organização nacional nem partido político para falar em seu nome e as suas reivindicações políticas muitas vezes eram ou limitadas ou irrealistas.
A reivindicação mais importante do movimento era “cortar o financiamento da polícia”, uma exigência que alguns compreendem como uma redução do orçamento da polícia e a transferência destes fundos para serviços sociais, enquanto outros a interpretam como um apelo a abolir a polícia.
Ainda que as pessoas queiram acabar com o racismo e a violência policial, poucos querem a abolição da polícia, em particular nos bairros negros, latinos e brancos mais pobres nos quais as taxas de criminalidade são mais elevadas. Apenas a extrema-esquerda apela à abolição da polícia com pouco eco na sociedade em geral. Algumas cidades, pouco numerosas, reduziram o orçamento policial ou reafetaram créditos para serviços sociais, mas não muitos.
Houve ainda manifestações de trabalhadores, em particular trabalhadores da saúde, mas também dos transportes públicos, empregados de hotel e restaurantes e outros. Os sindicatos de enfermeiros convocaram ações de protesto em hospitais, clínicas e lares de terceira idade.
Numerosos trabalhadores de diversas indústrias fizeram curtas interrupções de trabalho ou greves. Contudo, os dirigentes da maior parte dos sindicatos nacionais não apoiaram estes movimentos; não defenderam a organização de protestos ou de greves. Os dirigentes sindicais contam com a eleição de um presidente e de um congresso democratas mais do que na mobilização dos seus aderentes.
Apesar de numerosas ações locais não houve resposta nacional da classe operária às crises sanitária e econômica
A esquerda política cresceu. A mais visível e mais quantificável é a expansão dos Democratas Socialistas da América, DSA, que conta doravante com 70.000 membros. Outros grupos de esquerda – socialistas e anarquistas – cresceram igualmente e produziram novas páginas de internet, jornais e vídeos.
Apesar da esquerda se ter desenvolvido, continua muito pequena para ter uma influência significativa nos grandes acontecimentos políticos e sociais que se desenrolam. Os seus militantes participaram nas manifestações anti-racistas massivas, mas tiveram pouco impacto nelas. Alguns grupos de esquerda estão presentes nos sindicatos mas a maior parte são demasiado fracos para tomar iniciativas significativas. Globalmente, o nível da luta de classes permanece baixo e a esquerda pequena.
O Partido Verde continua a ser o mais importante à esquerda e o seu candidato presidenciais Howie Hawkins e a sua companheira de corrida eleitoral são ambos abertamente socialistas. Mas o partido nunca teve mais de 2% dos votos. O DSA, o maior grupo socialista, mostra pouca confiança no Partido Verde e não apoia os seus candidatos. A verdadeira confrontação política este ano é entre Trump e Biden.
Uma vez que há o risco de que a eleição seja roubada, grupos como o Protect the Results (protejamos os resultados), Defend Democracy (defender a democracia), Fight Back Table (ripostar), Working Families Party (partido das famílias trabalhadoras), Movement for Black Lives (movimento pelas vidas negras) e Majority Rising (a maioria levanta-se) trabalham para proteger o processo de voto e a contagem. Deverão talvez ter de ajudar a travar um golpe de força. Trump poderia, por exemplo, enviar agentes federais para ficar com os boletins de voto e reivindicar a vitória. O período entre as eleições de 3 de novembro e a instalação do presidente a 20 de janeiro poderá ser caótico, violento e decisivo para o sistema político norte-americano.
Dan La Botz é sindicalista, professor e escritor. É co-editor da New Politics.
Artigo publicado na Revista L’Anticapitalist(link is external)e de outubro. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.
Smith: pandemia, polarização e resistência nos EUA
Joseph Daher: Quais foram os efeitos da Covid-19 sobre a situação sócio-econômica dos Estados Unidos?
Estamos no meio de uma catástrofe humanitárias com as características próprias do Estados Unidos. Mais de sete milhões de pessoas foram infetadas pelo vírus, mais de 200.000 pessoas morreram e os peritos preveem que não menos de 400.000 pessoas poderão perder a vida daqui até ao fim do ano. A grande maioria de quem morre são pessoas idosas em lares da terceira idade, pessoas de cor e trabalhadores essenciais obrigados a trabalhar durante a eclosão da pandemia.
Claro que nenhum Estado-nação foi poupado pela devastação da pandemia. Todos foram obrigados pela lógica do capitalismo a reabrir as suas economias para acumular novos ganhos. Mas os Estados Unidos, tal como outros Estados igualmente dirigidos por governos de direita como os da Grã-Bretanha, Índia e Brasil, foram particularmente implacáveis colocando os interesses das empresas acima da salvaguarda de vidas humanas.
Nos Estados Unidos, como revelou o novo livro de Bob Woodward, Rage document, o presidente Donald Trump deliberadamente escondeu a gravidade da crise e chegou mesmo ao ponto de bloquear um plano elaborado pelos Correios para distribuir gratuitamente máscaras por via postal.
Trump colocou os lucros, a sua campanha de reeleição e francamente o seu ego em primeiro lugar, enquanto a vida dos trabalhadores e dos oprimidos foi relegada para último lugar.
Desde o início, este reticente no apoio a qualquer confinamento e rapidamente fez pressão sobre os estados para que reabrissem o mais rapidamente possível. Porquê? Porque a expansão económica sob sua direção era a única possibilidade de conseguir a reeleição.
Estes interesses económicos e políticas pessoais sujas levaram-no a negar e depois a gerir mal a crise e a rejeitar a culpa da catástrofe, lançando-a sobre todo o mundo, da China ao Partido Democrata. Orientou o seu discurso para a negação de factos científicos, as posturas machistas tóxicas contra a utilização de máscaras como sinal de fraqueza e um velho desprezo misantrópico pela classe trabalhadora e em particular as pessoas de cor para justificar a sua má conduta criminosa. Durante este tempo, os corpos acumulavam-se nas morgues de todo o país.
JD: Qual é a situação sócio-econômica dos Estados Unidos?
É importante compreender que a economia mundial se dirigia para uma recessão ainda mesmo de ser atingida pela pandemia. As suas três potências – a China, os Estados Unidos e a União Europeia – mostravam já todos os sinais de uma crise iminente.
A Covid-19 foi portanto o detonador e não a causa da recessão mundial. A pandemia exacerbou de seguida a profundidade da recessão nos países do mundo inteiro. Nos Estados Unidos, forçou os estados e as cidades a impor confinamentos sobre todas as atividades económicas, exceto as essenciais.
A amplitude da crise económica é surpreendente. O PIB real dos EUA contraiu-se em 31,7% no segundo trimestre e em 5% no ano. O colapso da economia lançou 20 milhões de pessoas no desemprego, aumentando a taxa de desemprego até cerca de 15%.
Atualmente, ainda que a economia tenha começado a endireitar-se, vendo a taxa de desemprego cair para os 8%, milhões de trabalhadores continuam sem emprego e enfrentam despejos massivos por não terem podido pagar a hipoteca ou a renda.
O governo dos EUA apressou-se a tentar parar a queda da economia, como durante a recessão de 2007. A Reserva Federal lançou mais de 2,3 mil milhões de dólares na economia, reduzindo as taxas de juro, imprimindo notas e fazendo empréstimos aos bancos, empresas e governos dos Estados e município.
O governo federal injetou dois mil milhões suplemantares para manter viva a economia. Enquanto os democratas obtiveram benefícios importantes para os trabalhadores, como o aumento dos subsídios de desemprego e pagamentos individuais únicos de 1.200 dólares por pessoa, Trump e o Partido Republicano velaram para que o essencial do resgate fosse para às mãos das empresas, mantendo vivas vários tipos de empresas zombies que, de outra forma, teriam colapsado.
Mas, contrariamente às esperanças e previsões da burguesia, este plano de resgate não produzia uma retoma forte. A pandemia em curso forçou os Estados e as cidades a confinar-se temporariamente, impedindo o funcionamento económico normal.
Só que Trump e os republicanos recusaram criar um outro plano de relançamento económico. Estão reticentes em aumentar a dívida e o défice do governo e opõem-se ao aumento dos subsídios de desemprego e a pagamentos em espécie com base no mito segundo o qual isso levaria os trabalhadores a não procurar emprego.
Porém, o Estado salvou mais uma vez o capitalismo. Mas, fazendo-o, impediu a limpeza das empresas que não são rentáveis ao sistema, garantindo que não assistiremos a uma recessão profunda seguida de um forte ressalto de crescimento, mas a uma recessão prolongada, com muitas empresas produzindo muitas coisas que não conseguem vender a taxas de lucro suficientemente elevadas.
Estas condições intensificaram a profunda polarização política do país. À direita, Trump, ainda que não seja fascista, deu mais um passo com o seu discurso racista sobre “a lei e a ordem” contra o movimento Black Lives Matter. Deu igualmente luz verde às formações de extrema-direita e fascistas, que se desenvolvem rapidamente no seio da pequeno burguesia, de uma parte da classe operária e do lumpen-proletariado.
Apesar da gestão desastrosa da pandemie e da economia, Trump conserva o apoio de cerca de 40% do país. Esta nova direita está aí para ficar, qualquer que seja o resultado das eleições.
À esquerda, a pandemia e a recessão alimentaram a subida em flecha dos membros dos Democratas Socialistas da América (DSA) bem como vários tipos de formações emergentes à esquerda. Estes formam o núcleo de um novo movimento socialista nos meios estudantis, da classe operário e grupos oprimidos.
JD: Qual é o estado atual do movimento Black Lives Matter? Mantém ainda uma dinâmica?
O movimento Black Lives Matter deste Verão foi a maior vaga de manifestações da história dos Estados Unidos. Não menos de 26 milhões de pessoas participaram nas manifestações que atravessaram o país desde o assassinato racista de George Floyd pela polícia em Minneapolis. O vídeo da sua morte despertou a consciência de todo o país, levando a uma rebelião de massa.
É a segunda grande vaga do movimento. A primeira eclodiu em 2014 no seguimento do assassinato de Michael Brown em Ferguson, no Missouri, por polícias racistas, e de Eric Garner em Nova Iorque, em seguida explodiu depois do assassinato de Freddie Gray numa rebelião em larga escala em Baltimore, no estado do Maryland, o que forçou a cidade a chamar a guarda nacional para impor a ordem.
Esta segunda vaga é muito maior e, sob certos pontos de vista, mais radical do que a primeira. Desta vez, os militantes negros mobilizaram bastante mais apoio dos brancos que anteriormente. Houve manifestações contra o racismo policial não apenas nas zonas urbanas negras e de outras populações de cor, mas igualmente nos subúrbios e nas pequenas cidade de maioria branca do país.
Esta rebelião multirracial dirigida pelos negros parece em grande medida espontânea mas no seu núcleo encontramos militantes das formações nacionais e locais. Os militantes negros estão organizados em grupos como o Movement for Black Lives, o Critical Resistance e muitos outros grupos nacionais e locais.
Para além deste núcleo, há uma corrente de massa organizada de maneira informal de jovens estudantes e trabalhadores que leram e discutiram livros anti-racistas e organizaram diversas ações nas suas escolas e comunidades depois da primeira vaga de manifestações. Assim, havia militantes pré-existentes, à espera, armados de ideias e também de cartazes, de faixas e de t-shirts Black Lives Matter.
A reivindicação central e radical do movimento é desmantelar a polícia. A ala esquerda do movimento é muito clara quanto ao objetivo ser a abolição da polícia no quadro de uma luta pela mudança de sistema através da luta coletiva das massas nas ruas, nas comunidades e nos lugares de trabalho.
Por outro lado, as correntes liberais e o Partido Democrata procuram conter este radicalismo, redefinir o “defunding” como simples cortes orçamentais nos serviços de polícia e redirigi-lo para o impasse da reforma da polícia e do investimento acrescido na formação da polícia. Os democratas esperar fazer o movimento sair das ruas e fazer campanha por Biden nas presidenciais. Desta forma, há uma luta no coração do movimento sobre a sua política, as suas estratégias e táticas.
O movimento provou uma vez mais que a luta social e de classe de massa é bem mais eficaz do que a política eleitoral para conseguir reformas. Conseguiu mais vitórias em alguns meses do que décadas de voto e de lobbying feito pelos democratas. Obrigou cidades a reduzir os orçamentos da polícia, a expulsar a polícia das escolas de várias cidades e a redirigir fundos para serviços sociais e para a educação.
Apesar destes avanços, estamos ainda longe de ter conseguido o desmantelamento da polícia e ainda menos a sua abolição. Ela continua a brutalizar e matar negros com toda a impunidade. A frustração face a esta situação forçou talvez a ação mais radical até à data – a greve levada a cabo pelos basquetebolistas profissionais negros da NBA – porque baseada na reivindicação da justiça racial. Interromperam as finais da NBA e despoletaram uma vaga de ações por parte das jogadoras da WNBA (a liga feminina), assim como de atletas em desportos com poucos jogadores negros como o basebol e mesmo o hóquei. Esta greve multiracial dos atletas abalou o país.
Enquanto a indústria do desporto fazia face a paragens de trabalhadores cada vez mais amplas, o antigo presidente Barack Obama interveio para ajudar a negociar um acordo de forma a que os jogadores da NBA voltassem ao trabalho. Os patrões do desporto prometeram apoiar o movimento pelas vidas negras e Obama encorajou os jogadores a ajudar os eleitores a votar por Biden.
Neste momento, o movimento está em declínio mas o massacre constante de negros e de outras populações de cor pela polícia continua a provocar explosões de protesto em diversas localidades. O frenesim sem fim de assassinatos policiais garante que o movimento explodirá uma e outra vez nos meses e anos por vir até que uma mudança sistémica seja ganha.
Por agora, contudo, a maior parte das forças organizadas estão envolvidas nas eleições para fazer campanha por Biden. Mas, longe de ser um apoiante do movimento, Biden opõe-se à sua principal reivindicação o “defunding” da polícia. Porém, a maioria não vê outra alternativa senão apoiá-lo de forma a vencer Trump.
Ao mesmo tempo, Trump demonizava o movimento e mobilizava a sua base para apoiar a polícia. Colocou o seu discurso racista da “lei e ordem”, que faz referência à celebração da polícia, à repressão das manifestações e à caracterização dos negros como criminosos perigosos, no centro da sua campanha de reeleição e apoiou-se numa das piores demagogias supremacistas brancas da história da política burguesa moderna.
JD: Há outros movimentos que sejam influentes?
Desde a Grande Recessão, assistimos a explosões episódicas de lutas. Estas começaram com o Occupy, o movimento Black Lives Matter e um punhado de greves, sobretudo a do sindicato de professores Chicago em 2012 que inspirou as greves de professores nos anos seguintes.
Desde a sua eleição, Trump provocou um novo ciclo de protesto começando pela marcha das mulheres no início do seu reinado.
A partir daí assistimos a manifestações contra os seus ataques aos direitos dos migrantes e dos muçulmanos e a uma vaga de greves de professores, a começar pela revolta dos professores dos estados vermelhos em 2018, quando estes fizeram greve ilegalmente em vários estados controlados pelos republicanos. Esta revolta inspirou outros professores que organizaram greves em cidades controladas pelos democratas como Los Angeles, Chicago e Denver.
A pandemia e a recessão obrigaram os trabalhadores, em particular os trabalhadores negros e de cor das indústrias essenciais a tomar medidas para proteger a sua saúde. Os trabalhadores dos hospitais, das escolas, da Amazon e das fábricas de transformação de carne, para nomear apenas alguns, organizaram manifestações e, em alguns casos, greves para obter equipamento de proteção de individual e um prémio de risco.
Estamos claramente nos primeiros estádios de um crescendo de militância, depois de décadas de recuo, de derrota e de desorganização. Mas as principais instituições do nosso lado – as organizações do movimento social, as ONG e os sindicatos – estão fixadas nas eleições. Subordinam a construção da luta à política eleitoral na esperança vã de que a eleição de Joe Biden e dos democratas traga uma solução às catástrofes do capitalismo americano.
Contudo, as desigualdades crescentes do capitalismo americano obrigarão a base dos sindicatos e dos movimentos a criar organizações dispostas a fazer pressão para que haja níveis mais elevados de militância no ataque aos patrões e à extrema-direita. Estamos no primeiros estádios de toda uma época de crise, de polarização política e de luta.
JD: O que sobra do movimento? A esquerda pôde-se apoiar na dinâmica da sua candidatura?
A campanha de Bernie Sanders pela investidura presidencial do Partido Democrata foi uma das expressões contraditórias desta explosão episódica de luta social e de classe. De um lado, Sanders juntou os estudantes e jovens trabalhadores de todas as cores que se radicalizaram no ativismo através da ideia do socialismo com alternativa ao capitalismo. Contribuiu para dar um sentido ao socialismo para toda uma geração.
Por outro lado, aprisionou o projeto de luta pelo socialismo no seio do Partido Democrata. Ora este partido é capitalista, não é um partido social-democrata ou um partido dos trabalhadores. É estritamente controlado por doadores ricos, a burocracia do partido e os seus políticos burgueses.
A participação de Sanders neste partido teve dois impactos negativos. Em primeiro lugar, desvio a energia da construção de um novo partido para o impasse da tentativa de assumir o controlo dos democratas. Em segundo lugar, tentando obter votos neste partido, Sanders redefiniu o socialismo como o liberalismo do New Deal de Franklin Delano Roosevelt.
O DSA assumiu-se como o principal beneficiário à esquerda das campanhas de Sanders. Passaram de uma organização moribunda de um reformismo a envelhecer ligado ao Partido Democrata para uma nova organização jovem de 70.000 socialistas, inspirada pelas lutas a partir de baixo e atraída pela versão do socialismo de Sanders e a sua proposta de reforma social como o Medicare for All.
Tragicamente e de maneira previsível, todavia, o Partido Democrata bloqueou as duas tentativas de Sanders de ganhar a nomeação presidencial. Em 2016, o aparelho democrata juntou-se a Clinton e depois fez o mesmo com Biden.
De facto, Sanders teve um resultado pior em 2020 do que em 2016, provando que os democratas toleram alegremente os esquerdistas no seu seio para os impedir de construir um novo partido socialista mas bloqueiam qualquer sua tentativa de tomar conta do partido.
Depois da sua derrota, Sanders manteve a sua promessa de apoiar o candidato democrata e juntou os seus apoiantes no apoio a Biden. Pior ainda, ele fez um lifting a Biden, prevendo que tinha o potencial para se tornar o presidente mais progressista a seguir a Franklin Delano Roosevelt. Qualquer leitura, ainda que superficial, do que Biden e os seus administradores dizem aos seus apoiantes de, se escarnece desta afirmação.
Como consequência disto, Sanders desorganizou largamente o seu movimento e tentou reorientá-lo, tal como as suas organizações, para apoiar Biden, na melhor das perspetivas enquanto progressista, na pior enquanto o mal menor para destronar Trump. O DSA foi desafiado nesta nova situação para reorientar a organização.
Enquanto as secções e membros do DSA estiveram ativos nas vagas de luta, a campanha de Sanders e campanhas eleitorais similares no seio do Partido Democrata ocuparam um lugar central para a organização. Com a derrota de Sanders, o DSA continuou a ter alguma vitórias eleitorais, em particular em Nova Iorque, mas perdeu a sua orientação. A fixação nos prazos eleitorais levou as organizações no seio do DSA a desviar-se dos seus objetivos principais e das novas vagas de luta. Por exemplo, enquanto os seus membros se juntaram às manifestações Black Lives Matter, o DSA como organização nacional e a maior parte das suas secções não desempenharam um papel de primeiro plano no movimento.
JD: Como a esquerda dos EUA se posiciona nestas presidenciais?
A eleição presidencial de novembro não é o que a esquerda e o DSA esperavam. Muitos, erradamente, esperavam que fosse Sanders que ganhasse a nomeação democrata. A partir daí, o DSA e a esquerda enfrentam uma armadilha pouco atraente e clássica de uma eleição entre um republicano de direita, Trump, e um democrata do sistema, Biden, que procurou restaurar as normas burguesas por intermédio de um governo de unidade nacional.
Face a esta “escolha”, a esquerda divide-se em três correntes principais. Em primeiro lugar, a esquerda liberal é completamente a favor de Biden com diversos graus de ilusão no seu programa. Alguns enganam-se pensando que ele será tão progressista como anuncia Sanders, enquanto que outros votam mais sobriamente por ele sabendo perfeitamente que se trata de um capitalista neoliberal mas pensando que é o único meio de fazer Trump sair do lugar.
Na esquerda socialista, a corrente principal é a que aceita a posição tradicional do mal menor. O melhor desta corrente é quem promete fazer campanha e votar em Biden e depois combatê-lo desde o primeiro dia. Outro alimentam a ilusão que ter Biden na Casa Branca facilitará a obtenção de reformas progressistas.
Uma pequena corrente de socialistas revolucionários, dos quais eu faço parte, pronuncia-se contra estas duas posições. Defendemos que não se pode combater o mal maior votando no mal menor por três razões. Primeiro, a partir do momento em que a esquerda aceite a escolha e se alinhe com o mal menor, somos dados como certos e as nossas exigências ignoradas.
Segundo, se e quando o mal menor ganhar, a esquerda que apoiou este mal será tentada a cooperar com ele no poder, alguns indo até ao ponto de se juntar à administração e outros que ficam no exterior oferecendo-lhe um “estado de graça” e esperando que faça algumas reformas. Isto deixa a extrema-direita como a única oposição.
Neste caso, a esquerda será tentada a defender o governo, selando a cooptação e a neutralização da esquerda. Ao mesmo tempo, o mal menor no poder concluirá acordos com o mal maior. Biden fez a sua carreira fazendo este tipo de acordos podres.
Terceiro, fazer campanha pelo mal menor não é uma decisão individual mas coletiva de consequências enormes. Se a escolha apoiar Biden, isto ajudará e encorajará as burocracias que controlam os sindicatos, as organizações do movimento social e as ONG a desviará o tempo, o dinheiro e a energia dos militantes da construção da luta para combater o que queremos e fazer votar o que não queremos – um mal menor neoliberal.
O DSA enquanto organização principal da esquerda está dividido entre estas correntes. Está interditado enquanto organização de apoiar Biden pela resolução “Bernie or Bust” que adotou na sua última convenção. Mas os membros de alguns destes caucus fizeram ativamente campanha por Biden e muitos, senão a maior parte dos seus dirigentes e membros votarão individualmente por Biden, mesmo desconfiando dele ou desprezando-o.
JD: Qual é a sua reação ao [primeiro]debate entre Donald Trump et Joe Biden?
Não foi um debate. Foi um espetáculo que simbolizava a degenerescência da classe política que “dirige” o capitalismo dos Estados Unidos. Trump foi inteiramente responsável pelo fiasco. Queria um combate de luta profissional e conseguiu. Vendo que perdia, optou por uma estratégia de cão raivoso contra Biden para o fazer sair da sua estratégia interrompendo-o com insultos pessoais, mentiras e distorções e apelos grosseiros à base da área direita do Partido Republicano.
Duas entre o conjunto de diatribes de Trump foram muito importante para nós ao nível da esquerda. Primeiro, apelou aos “observadores do escrutínio” para assediar as pessoas na cabine de voto. Segundo, não apenas recusou condenar os supremacistas brancos, apoiando-os e apelando aos Proud Boys a “recuar e manter-se em prontidão”, o que o grupo adotou agora como divisa. Trump continuou desta forma a dar luz verde ao crescimento dos “justiceiros” de extrema-direita e das milícias fascistas.
Biden, por seu turno, tentou posicionar-se como chefe de Estado competente, capaz de gerir as múltiplas crise que eclodiram durante a má gestão de Trump, da pandemia à recessão, ao levantamento contra o racismo policial ao desastre climático. Mas, e isto escapará às pessoas aterrorizadas por Trump, Biden virou à direita, procurando atrair a classe média e os eleitores centristas hesitantes. Rejeitou abertamente o Green New Deal, o Medicare for All e a redução de financiamento da polícia, demonstrando a ilusão de todas as afirmações feitas por aqueles, como Sanders, que diziam que Biden tinha potencial para ser o presidente mais progressista da história recente.
Biden é o que é – um defensor do capitalismo neoliberal e um opositor declarado do socialismo. Longe de ser um travão à direita, Biden e as suas políticas criaram as condições que levaram à ascensão do trumpismo e da direita – uma desigualdade de classe massiva, um Estado Social devastado, uma infraestrutura em decomposição, uma opressão institucional intensificada e toda a frustração política, a cólera e o desespero que se agravam nestas condições. Trump e a direita oferecem soluções reacionárias a estes verdadeiros problemas da vida das pessoas.
A eleição de Biden não travará assim a ascensão da direita porque manterá estas condições. E Trump, se perdier, não sairá da cena da história, mas unirá a direita através da afirmação que um “regime socialista” roubou as eleições, criando um movimento de estilo Tea Party, ainda mais à direita e com elementos fascistas armados no seu seio. E se Trump conseguir ganhar, seja através de uma vitória no colégio eleitoral, seja roubando as eleições através de contestações judiciais nos tribunais que seriam ratificadas num Supremo Tribunal manipulado, dirigirá uma direita ainda mais encorajada contra a esquerda, os sindicatos e as pessoa oprimidas que não terão outra escolha que não lutar pela vida.
Dito isto, Biden ganhou o debate não fazendo sequer nada mas apenas ultrapassando a barragem de ataques de Trump e não se apagando. Trump muito provavelmente desperdiçou a sua possibilidade de inverter a dinâmica da eleição e, pelo contrário, tornou a sua derrota ainda mais provável. Não fez nada para convencer os eleitores centristas hesitantes que tendem cada vez mais para Biden.
Mas, e toda a gente à esquerda deveria ser clara sobre isto, Trump é um perigo para os direitos democráticos. Apelou abertamente aos militantes da direita para assediarem os eleitores, ameaçou a integridade da eleição rejeitando os boletins de voto por correspondência e revelou que a sua nomeação de Barrett para o Supremo era totalmente concebida para garantir uma vitória no caso das eleições serem legalmente contestadas.
Seja qual for a posição sobre em quem votar, a esquerda deve unir as mais amplas forças possíveis para exigir que os democratas bloqueiem a nomeação de Barrett, preparem ações de massa para a defesa do direito de voto e manifestações de massa e greves no caso de Trump tomar as eleições reféns utilizando o Supremo Tribunal como fez Bush Jr. em 2000. Biden e os democratas não resistirão certamente a Trump sem uma pressão massiva a partir de baixo.
Tal como Gore em 2000, estarão predispostos a acietar a derrota porque fazem parte da mobília da democracia burguesa americana com todas as suas instituições reacionárias, do sistema bipartidário ao Colégio eleitoral e ao Supremo Tribunal. Ninguém nos salvará, apenas devemos contar connosco próprios. É tempo de nos unirmos e de lutar pela defesa dos nossos direitos democráticos.
Por fim, no meio desta luta, a esquerda deve começar a falar seriamente na construção de um novo partido socialista como alternativa para travar as lutas nas comunidades, nos locais de trabalho e nas urnas. Seja qual for o resultado das eleições, devemos bater-nos pelo que queremos através de uma luta de massas e devemos combater a direita com manifestações de massa para proteger o que resta da democracia neste país.
JD: Que futuro para o DSA e mais geralmente para a esquerda nos EUA?
Estamos no meio de uma crise profunda do sistema capitalista com múltiplas características interligadas – um marasmo mundial prolongado, uma pandemia em curso, as alterações climáticas e a intensificação da rivalidade inter-imperial entre os Estados Unidos e a China. É a crise sistémica mais grave desde os anos 1930.
Nos Estados Unidos, há uma profunda polarização política para a esquerda sob a forma do DSA e do novo movimento socialista e para a direita sob a forma de Trump no topo do Partido Republicano e das fileiras crescentes das milícias de extrema-direita e fascistas organizadas. O establishment capitalista está cada vez mais orientado para o Partido Democrata na esperança desesperada de estabilizar o que parece ser um Estado e uma economia em falência.
Nas condições de profunda recessão e de pandemia, os trabalhadores e os oprimidos são levados a bater-se pela sua vida, do levantamento multi-racial dirigido pelos negros contra a brutalidade policial às greves. A esquerda emergente dever-se-á fundir numa força, eventualmente um novo partido socialista que pode ajudar a travar estas lutas a partir de baixo e fornecer uma alternativa para desafiar ao mesmo tempo o establishment capitalista do Partido Democrata assim como o Partido Republicano e a extrema-direita.
O DSA é o melhor colocado para lançar o esforço de criação de um novo partido. Mas as suas inúmeras correntes não estão unidas na defesa deste projeto: alguns continuam envolvidos no projeto de Sanders de ganhar o Partido Democrata; muitos esperam utilizar a linha de escrutínio do Partido Democrata para constituir uma força de políticos eleitos com vista a lançar um novo partido no futuro; e a maior parte estão orientados numa via eleitoral para a formação deste novo partido.
A questão será saber se a esquerda revolucionária no interior e nas franjas do DSA pode lutar por uma estratégia diferente, centrada na luta de classe e na luta social e no trabalho eleitoral local independente dos dois partidos capitalistas, com o objetivo de lançar um novo partido socialista assim que seja possível. Toda a gente no interior da esquerda e no DSA debate estas ideias atualmente na perspetiva das eleições.
No caso improvável ainda que possível de uma vitória de Trump, estamos estaremos comprometidos no combate das nossas vidas contra uma direita ainda mais ousada. No caso mais provável de uma vitória de Biden, devermos fazer com que o DSA se comprometa numa luta com duas frente – um eixo será forçar a administração Biden a dar-nos o que queremos e a outra contra uma direita muito mais radical, militarizada e perigosa do que era o Tea Party no tempo de Obama.
Se Biden ganhar, o maior perigo é que lhe seja oferecido um “estado de graça” pela esquerda, abrindo a porta à direita para passar à ofensiva e fixar as condições da luta na política, na rua e nos locais de trabalho. Estamos no meio de uma crise profunda de proporções históricas, plena de perigos e de enormes oportunidades para a esquerda. O nosso futuro está em jogo.
Entrevista de Joseph Daher publicada na revista Contretemps. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.