Liza Featherstone, A terra é redonda, 26 de janeiro de 20221
A melhor estratégia da esquerda é não ignorar a ascensão desse novo Biden, nem insistir que o antigo foi embora para sempre
Joe Biden, sejamos francos, é uma figura bem improvável de sustentar uma agenda política que mire na transformação. Ele está implicado profundamente em muito do que há de errado com os Estados Unidos e o mundo de hoje: já trabalhou feliz da vida com segregacionistas nos anos 1970, depois virou um criminoso parlamentar, fato que resultou em encarceramento em massa, e foi também um campeão da guerra do Iraque, que matou dezenas de milhares de civis iraquianos e soldados estadunidenses. Em Yesterday’s Man (Verso, 2020), o novo livro de Branko Marcetic, você pode conhecer mais sobre essa deprimente figura pública do conservadorismo.
Vale perguntar por que, então, dado este histórico e contexto, a nova agenda política de Biden parece surpreendentemente decente? Parte disso se explica com a tentativa de desfazer o estrago e as falhas críticas dos últimos quatro anos; sabemos que seu antecessor, um aspirante a ditador adorado por fascistas ao redor do mundo, acabou com qualquer parâmetro. Entretanto, esta não é toda a história.
Ontem, durante seu primeiro dia de mandato, Biden assinou uma série de decretos executivos. Alguns deles acenam para o que qualquer democrata faria, mas ainda assim, são dignos de nota, já que são cruciais para a sobrevivência humana: ele assinou um decreto que obriga o uso de máscaras em todos as propriedades públicas, retornou ao acordo de Paris e a Organização Mundial da Saúde (OMS), e restaurou a capacidade deste governo de lidar com a pandemia de maneira coordenada.
Também deu fim à comissão racista e anti-intelectual de Trump, a Comissão 1776, e colocou os imigrantes mais próximos da residência permanente de novo. Os outros decretos visam reverter o ataque bárbaro à classe trabalhadora internacional empregado pelo governo Trump: o fim do “banimento muçulmano” (impedimento de entrada de pessoas de certos países, todos muçulmanos), a retomada das aplicações para vistos destes países, em um movimento para reunir famílias separadas na fronteira, criar proteções contra a discriminação racial, parar com a construção do muro, e reinserir não-cidadãos estadunidenses no Censo nacional.
Ainda, alguns desses decretos foram mais longe ainda, incorporando um afastamento mais decidido da política econômica bipartidária da era Reagan do que esperamos. Ele interrompeu o oleoduto Keystone, revogou permissões de combustível e gás em todos os monumentos nacionais, estendeu ordens de despejo e encerrou moratórias, pausou o pagamento de empréstimos estudantis e congelou as regulações contra o meio-ambiente de Donald Trump.
Sua agenda legislativa também se afasta da austeridade que muitos de nós esperávamos dele um ano atrás. Qualquer democrata em sã consciência – torcemos – rejeitaria a besteira anticientífica e machista que foi a resposta de Trump à pandemia e ao menos tentaria um estímulo econômico meia-boca para enfrentar a recessão.
A coisa é que Biden está propondo gastar dinheiro de verdade com essas urgências. E pediu ao Congresso 1.9 trilhões de dólares para vacinar todos o mais rápido possível, investir no auxílio às famílias estadunidenses, ajudar escolas a abrirem em segurança, os governos estaduais a sanar problemas públicos vitais, e aumentar o salário mínimo para 15 dólares/hora. Ele nomeou Janet Yellen para a secretaria do Tesouro e não um urubu capitalista qualquer. Biden parece aberto à ideia de taxar os ricos. Diz ele que quer expandir o acesso à saúde.
Ele também colocou uma ênfase sem precedentes na mudança climática, mesmo em meio à outras crises que naquele momento os eleitores considerassem mais urgentes, e nomeou um time de especialistas no clima para sua equipe na Casa Branca, estabelecendo a meta de descarbonizar o sistema elétrico em quinze anos, ação que surpreendeu tanto a indústria de combustível fóssil quanto ativistas climáticos.
Os planos de Biden não são a mesma coisa que a agenda social-democrata de Bernie Sanders. Ele não está insistindo no Medicare for All, no Green New Deal pra valer ou na gratuidade do ensino superior. Sanders promoveria o cancelamento de dívidas de aluguel e estudantis – esta última, para sempre. Ainda assim, após a revirada impensável, Joe Biden está parecendo, por enquanto, um bom liberal.
Essa espécie há muito em extinção tende a florescer quando seu habitat inclui duas condições históricas de uma vez: crise profunda e um movimento social organizado. Sem a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, Franklin D. Roosevelt provavelmente seria lembrado agora como um bem reputado branco de classe média com uma esposa com consciência social diferenciada e uma vida nada convencional.
Você consegue imaginar Joe Biden sem a devastadora pandemia da COVID-19, a recessão, os protestos em massa contra a brutalidade policial no último verão ou as duas campanhas presidenciais de Bernie Sanders e suas consequências (a viabilização de novos políticos socialistas democráticos como Alexandria Ocasio-Cortez, Cori Bush e Jamaal Bowman, novas prioridades dentro da social-democracia como saúde e moradia e o crescimento da militância organizada de esquerda)?
Claro que consegue! Todos conhecemos esse Joe Biden.
A melhor estratégia da esquerda é não ignorar a ascensão desse novo Biden, nem insistir que o antigo foi embora para sempre. Ao invés disso, nós devemos reivindicar o crédito por esse liberal bonzinho que começa agora sua passagem pela Casa Branca e criar as condições necessárias para garantir que ele faça tudo que prometeu e muito mais. Principalmente sobre o clima, uma pauta onde não existe tempo a ser desperdiçado e tem muito potencial para a ação.
Nós, da esquerda, parecemos ser mais inteligentes e realistas com nossos camaradas quando viramos nossos olhos e dispensamos a possibilidade de extrair alguma coisa desses democratas, quando ignoramos essas nuances e ficamos chamando nossos oponentes de neoliberais como se nada estivesse acontecendo. Precisamos também reivindicar as vitórias da esquerda e compreender a dramática crise global que produziu a nova encarnação de Joe Biden.
Desistir de pressionar o governo seria um erro; nós precisamos exigir que Biden cumpra suas promessas, enquanto também nos explica por que nosso mundo precisa de algo a mais que um bom liberalismo: se a história nos ensina alguma coisa é que a política externa de Biden tenderá a ser profundamente antissocialista e sangrentamente intervencionista.
Acima de tudo, nós precisamos construir o socialismo, a esquerda, e o poder operário da base, focando nos governos locais e estaduais e em nossos locais de trabalho. Esta é a única maneira de garantir que as futuras gerações possam esperar algo melhor que a versão liberal de Joe Biden. Não podemos permitir que esse momento caótico e complicado seja desperdiçado.
Liza Featherstone é professora na School of International and Public Affairs, Columbia University (EUA). Autora, entre outros livros, de Selling Women Short: The Landmark Battle for Workers’ Rights at Wal-Mart. Tradução: Guilherme Ziggy para a revista Jacobin Brasil.