A “América”, “mestre-escola” da democracia, levou um murro no estômago. A invasão do Capitólio, o deboche e a violência de uma turba incitada por Donald Trump, são imagens devastadoras para um país que quer ser exemplo e exportador de democracia (como se isso fosse possível)
José Manuel Rosendo, meu Mundo minha Aldeia, 11 de janeiro de 2021
Mesmo atendendo ao contexto de um país em que as armas são o “pão nosso de cada dia”, ver grupos de milícias armadas a rondar o Capitólio, é algo que não pode fazer parte de um mundo civilizado. Não se entende como é possível ter na mesma equação, democracia, eleições livres e grupos de milícias equipadas com armas automáticas a ameaçarem as instituições que governam o país.
Felizmente para quem vive na Europa, as coisas são diferentes e essa diferença dá à União Europeia uma legitimidade que os Estados Unidos não tinham e agora ainda têm menos. Sim, perderam legitimidade. A altivez e sobranceria com que olhavam acontecimentos noutros pontos do mundo – muitos deles mais do que justos, por representarem reivindicações legítimas do povo que de outra forma não seriam tidas em conta – e a forma como têm aplicado sanções a Estados que não alinhavam com a vontade política norte-americana, é agora motivo de chacota.
De Teerão ao Mali, de Bagdad ao Zimbabwe, as reacções foram no sentido de ridicularizar quem quer ser farol da democracia e da liberdade, mas tem um Presidente que não aceita ceder o poder depois de ter sido eleitoralmente derrotado. O Médio Oriente não esquece tudo o que os Estados Unidos por lá têm feito e África também tem boa memória. Aliás, Trump referiu-se mesmo a alguns países africanos como “países de merda”. Sem descer a esse nível, muitas reacções com origem em África, lembram que, afinal, não acontece apenas em África. Também nos Estados Unidos, quem perde eleições recusa deixar o poder.
Apoiantes de Trump invadem Capitólio para impedir ratificação de resultados eleitorais
China e Rússia passam ao lado dos acontecimentos em Washington. É a atitude habitual de Estados com políticas soberanistas e que não conseguem pronunciar as palavras Liberdade e Democracia. Mas a União Europeia tem, mais do que nunca, possibilidade de se demarcar dos Estados Unidos na forma de olhar o mundo. As parcerias, apoios, alianças, Tratados Internacionais, nos quais a União Europeia entenda envolver-se não podem mais depender dos Estados Unidos. É certo que a ideia não agrada aos “Aiatolás” – no sentido de seguidores do dogma – de serviço (uns por convicção, outros apenas por ódio a tudo o que tem um leve cheiro a esquerda). Sempre defenderam, e provavelmente sempre defenderão, tudo o que chega com remetente da Casa Branca. Acaba de ficar exposto à evidência que os Estados Unidos, com muitas coisas admiráveis, têm outras verdadeiramente aterradoras e só a cegueira política ou interesses obscuros podem obliterar essa leitura.
Alguns, que defendiam Trump, continuam a fazê-lo, desvalorizando a irresponsabilidade presidencial nos acontecimentos no Capitólio. Outros, que também o defendiam, mas sentem agora alguma vergonha, demarcam-se de mansinho. Como se Trump fosse algo dissociável do todo que são os Estados Unidos para a política internacional e como se um novo Trump não possa surgir daqui a quatro anos. Que os norte-americanos elejam quem entenderem, é um direito que lhes assiste, e que na Europa surjam outros Orban também é uma possibilidade forte, mas aquela União Europeia que queremos preocupada com as pessoas, com a democracia, com a liberdade, não pode arrastar-se refém das políticas decididas em Washington.
Será bom não esquecer que o país herdado por Joe Biden está profundamente dividido e Trump tem centenas de milhar de fiéis seguidores. Biden vai certamente alterar o rumo dos Estados Unidos, mas tem problemas internos para resolver e embora não se possa medir a influência que Trump vai continuar a ter, é certo que o próximo Presidente não vai querer ter as ruas em efervescência e isso pode ter influência na política externa.
A questão central, colocada pelos acontecimentos do Capitólio, é a de saber como é possível que um país tão ferozmente democrático (presume-se que isso inclua aceitar resultados eleitorais) e sempre tão lesto a dar lições a outros, qual patrono da forma certa de estar no mundo, tenha tido um Presidente como Donald Trump. A questão já antes se colocava, mas agora Trump revelou-se em toda a sua plenitude. Nos Estados Unidos, pior do que a invasão do Capitólio, só mesmo quando John F. Kennedy foi assassinado ou se a invasão tivesse por alvo a Casa Branca ou o Pentágono. A Agência France Press dizia que a força policial que protege o Capitólio tem 2 mil agentes. 2 mil!!! A mesma polícia que não hesita em disparar – e matar – à mínima suspeita, seja do que for, assiste quase pacificamente à entrada de uma urbe desmiolada no santuário da democracia norte-americana. Os Estados Unidos são isto e, por muito que nos tenham levado à Lua, o melhor conselho para eventuais parceiros de jornada é caminhar com os pés bem assentes na terra.
Quanto às manobras para um novo processo de destituição ou para o afastamento de Donald Trump ao abrigo da 25ª emenda, chegam tarde. Ninguém, nos círculos políticos norte-americanos, pode alegar que não conhecia Trump e muito menos aqueles que estiveram com ele na Administração e agora saltam do barco, numa atitude hipócrita que apenas serve para não hipotecar o futuro político.