Um hiato geracional isola os jovens num presente extenso – sem o passado, porque os idosos se tornaram uma caricatura de 'jovens idosos'; e sem futuro, porque não há nenhuma sabedoria transmitida através da qual seja possível projetar um caminho, uma meta ou mesmo uma utopia. Nesse presente extenso, jovens são presas da cultura que exala juventude e novidade como verdades em si mesmas: a cultura meme, streamer e influencer. Terreno fértil para fake news e pós-verdades das estratégias alt-right.
Wilson Roberto Ferreira, blog Cinema Secreto: Cinegnose, 19 de junho de 2021
Dois eventos sincrônicos: no Brasil, a motociata convocada por Bolsonaro com seis mil motos de luxo de alta cilindrada montada, em sua maioria, por “tiozões”, brancos, com jaquetas de couro preto emulando a gang famosa dos Hell’s Angels, perfil dos atuais apoiadores do presidente que saem às ruas; e na Inglaterra, o gênio da guitarra Eric Clapton, 76, mais uma vez destilando o negacionismo ao afirmar que as vacinas contra a Covid-19 “podem afetar a fertilidade”.
O atual estado de coisas começou com as Jornadas de Junho de 2013 com a energia de jovens secundaristas e universitários. Para terminar com senhores calvos segurando bandeiras neo-nazistas ucranianas em manifestações verde-amerelas de rua em apoio ao “tiozão do churrasco”, personagem performado pelo atual presidente. A estratégia de comunicação da direita alternativa (alt-right) é favorecida por um fenômeno: o “hiato geracional” – a perda da função de elo geracional dos idosos, cujo ressentimento alimenta a extrema-direita, deixando os jovens expostos às táticas de guerra híbrida alt-right nas redes sociais.
“Ficar velho não quer dizer ficar melhor”. É o slogan que abre a série de “vídeocassetadas” envolvendo idosos no canal Failarmy – líder mundial de compilações de vídeos engraçados envolvendo pequenos acidentes domésticos, esportivos etc.
Ironicamente esse humilde blogueiro lembrou desse slogan quando assistiu a um vídeo em que o famoso e veterano guitarrista Eric Clapton, mais uma vez, posicionou-se contra as vacinas contra a Covid-19, afirmando que elas tornariam as pessoas inférteis. Para ele, estudos científicos e as opiniões de organizações médicas não passariam de “propaganda”.
O gênio da guitarra passou toda a pandemia dando declarações contra o isolamento social e questionando a própria existência de uma pandemia global. Mas em se tratando de Clapton, não é uma novidade: em 2004 lamentou a presença de imigrantes no Reino Unido e chamou o político anti-imigração Enoch Powell de “escandalosamente corajoso”.
Como assim? Por que Eric Clapton, aquele que deu um “shot” no xerife virou um velho ranzinza e reaça de extrema-direita? Tá certo que a cabeça dele já não andava boa nos anos 1970 com tantas drogas e álcool, até passar por uma temporada de reabilitação em Antigua... Já em 1976, Clapton havia protestado contra imigrantes num show em Birmigham. Mas ele diz não se lembrar...
O curioso é que ver um senhor tão talentoso de 76 anos como Eric Clampton dando declarações públicas de extrema-direita faz esse humilde blogueiro lembrar de congêneres brasileiros (guardadas as devidas proporções) como Lobão e Roger do “Ultraje a Rigor”: a idade também não lhes fez nada bem. O primeiro, um bolsonarista arrependido, e o segundo, ainda um bolsominion empedernido.
Além de lembrar as atuais manifestações de apoiadores de Bolsonaro, como também aquelas multidões de camisetas da CBF nas ruas querendo o impeachment da presidenta Dilma.
Nas últimas “motociatas” convocadas por Bolsonaro, a maioria dos integrantes eram homens brancos com mais de 50 anos com motos Harley Davidson, Kawasaki, BMW com propulsores de alta cilindrada e jaquetas de couro emulando a famosa gang Hell’s Angels. Esse é o “núcleo duro”, os bolsonaristas renitentes, verdadeiros “tiozões do churrasco” (aquela figura folclórica que fazia todos rirem com piadas misóginas e tiradas políticas extemporâneas), cuja imagem de Bolsonaro é a desforra de todos os tiozões que já foram zoados em todas as churrascadas da história brasileira.
Mesmo entre os manifestantes de verde-amarelo nas ruas mandando a presidenta tomar naquele lugar, era marcante a dominância de casais de meia idade para cima, esquisitões fascistas mais velhos com camisetas de camuflagem militar e senhores calvos segurando uma bandeira rubro-negra com tridente na Avenida Paulista, São Paulo, símbolo do nacionalismo ucraniano de extrema-direita.
Nada a ver com as manifestações que acenderam o rastilho de pólvora que deu em tudo isso: nas Jornadas de Junho de 2013 e manifestações de ruas subsequentes era massiva a participação de jovens estudantes secundaristas e universitários, além de militantes de novos coletivos políticos.
Hiato geracional
Como interpretar essa guinada etária na recente trajetória política brasileira em que... aquilo deu nisso? Por que o núcleo duro, recalcitrante e birrento, da extrema-direita é formado por apoiadores cinquentões, sessentões e setentões?
Essas questões não surgem do nada. Assim como a até aqui vitoriosa estratégia de comunicação da chamada direita alternativa (alt-right) não veio de um golpe do acaso. Há um fator sociológico e geracional pouco discutido na ascensão desse novo extremismo de direita: o hiato geracional – a crise da função dos idosos como elo geracional, ou seja, como transmissora de sabedoria e conhecimento acumulados em uma existência.
É claro que jovens e idosos são os dois lados de uma mesma moeda nessa questão: Bolsonaro contou com 60% de eleitores entre 16 e 34 anos. Desses, 30% tinham menos de 24 anos (clique aqui). Jovens conduziram um ex-militar com 26 anos de atuação do Baixo Clero do Congresso Nacional. Enquanto, hoje, de cinquentões para cima demonstram o apoio irrestrito ao capitão da reserva nas ruas.
Entre esses dois grupos, o hiato geracional, do qual alimentou a estratégia alt-right de comunicação.
Em culturas tradicionais, onde a velhice e a morte eram simbolicamente incorporadas no dia a dia, os idosos sempre foram “elos geracionais” como transmissores de um saber acumulado, conhecimento e sabedoria. Colocados em posição de destaque na sociedade, o natural declínio físico era compensado pela sabedoria, amor e trabalho unidos em uma preocupação com a posteridade na tentativa de equipar os mais jovens para levar adiante as tarefas dos mais velhos.
Narcisismo e cultura jovem
Desde o pós-guerra e a consolidação da sociedade de consumo através da Publicidade criou-se uma sensibilidade inédita na História: pela primeira vez, o jovem tornou-se o modelo de beleza, felicidade e consumo. Ou a sua versão politizada: a rebeldia e a revolução.
O jovem, o novo e a novidade passaram a ser moralmente bom, enquanto o “velho” (o idoso, o antigo) tornam-se ultrapassados, o oposto do progresso, da evolução ou da revolução.
Toda a indústria da moda e publicidade vai ao longo das décadas glamorizar o “novo” e a “novidade” como moralmente bom, prazeroso e estimulante. O ápice dessa verdadeira engenharia de opinião pública foi a construção da cultura pop e jovem nas décadas de 1950-60. “Não confie em ninguém com mais de 30”, dizia o desafiante lema jovem da contracultura: os “mais velhos” (pais e autoridades) passaram a ser encarados como “quadrados”, ultrapassados e intrinsecamente conservadores.
Se isso foi positivo em um momento histórico como revolução e crítica, por outro lado seus líderes não perceberam a ambiguidade dessa nova cultura: seria a base imaginária (ao lado do crédito no consumo) de toda a descartabilidade e hedonismo necessários para a aceleração da sociedade de consumo.
Aos idosos restou a papel de negarem-se a si próprios, em primeiro lugar, através das “lições de vida” que os idosos nos ensinariam em pautas motivacionais de telejornais: um senhor de 70 anos que pratica maratonas; uma senhora que aos 75 anos retoma a sala de aula para concluir o ensino médio pensando na universidade e nova carreira profissional; outro senhor de 65 anos diz orgulhar-se por aventurar-se no “mundo das atividades físicas”: “faço atividades físicas com força na academia para fortalecer a musculatura e garantir que tão cedo eu não vou ter que ‘pendurar as chuteiras’”, brinca.
E segundo, todo um aparato terapêutico renovado a cada dia pela indústria farmacêutica na qual a função de “elo geracional” é esquecida: os idosos nada têm a dizer para as câmeras em termos de conhecimento ou sabedoria, a não ser negar a si mesmos numa tentativa a todo custo de aparentar uma atitude positiva e ficar parecidos com os mais jovens.
Christopher Lasch chamava a atenção para esse esvaziamento do elo geracional dos idosos por essas transformações trazidas pelas soluções médicas e sociais.
Lasch acredita que a negação em relação à velhice se deve à cultura da juventude, mas principalmente à perda do interesse dos homens pela vida terrena e o medo da velhice pela ascensão de uma personalidade narcísica.
Por ter o narcisista tão poucos recursos interiores, ele olha para os outros para validar seu senso de eu. Precisa ser admirado por sua beleza, encanto, celebridade ou poder – atributos que geralmente declinam com o tempo. Incapaz de alcançar sublimações satisfatórias nas formas de amor e trabalho, ele percebe que terá pouco para sustentá-lo quando a juventude passar (LASCH, Christopher. “A Cultura do Narcisismo”, R. de Janeiro, Imago, 1983, p. 254-55).
O sofrimento central da velhice (o fato de que vivemos vicariamente em nossos filhos ou em gerações futuras) perde suas formas sublimatórias religiosas ou filosóficas como o amor, a sabedoria e o conhecimento, formas que nos faziam se reconciliar com a nossa própria substituição.
Ressentimento e sublimação
Destituído das formas sublimatórias porque destituído da sabedoria e do conhecimento (afinal, vive numa sociedade em deve “nem parecer que é velho”), a frustração e o ressentimento o tornam presa fácil dos valores propagados como isca pela extrema-direita: justiçamento, intolerância, vingança, culto ao poder como sublimação substituta – idolatrar personalidades “fortes” e a simbologia fálica como motos de alta potência, armas etc.
Sem terem sabedoria ou o quê dizer aos mais jovens, instaura-se o hiato geracional que isola os jovens num presente extenso – sem o passado, porque os idosos se tornaram uma caricatura de “jovens idosos”; e sem futuro, porque não há nenhuma sabedoria transmitida através da qual seja possível projetar um caminho, uma meta ou mesmo uma utopia.
Nesse presente extenso, os jovens serão igualmente presas fáceis dessa cultura que exala juventude e novidade como verdades em si mesmas: a cultura meme, streamer e influencer. Terreno fértil para fake news e pós-verdades das estratégias alt-right.
Claro que o leitor pode se contrapor a esse argumento sócio-geracional dizendo nem sempre esse elo geracional do passado transmitiu sabedorias positivas para a juventude. Pelo contrário, em geral as sociedades se estruturaram em tradições persecutórias, obscurantistas e reacionárias, em torno do discurso da “moralidade” e dos “bons costumes”.
Porém, a diferença é que em última instância, esse elo geracional mantinha uma sociedade organicamente coesa pelas formas de transmissão cultural por meio da tradição.
Ao contrário, o hiato geracional cria isolamento e vulnerabilidade que permitem a manipulação pelas estratégias políticas midiáticas – o ressentimento que promete a recuperação (ou a sublimação) da potência perdida para os idosos por meio do fascínio pelos simbolismos fálicos na política; e para os jovens, o presente extenso hedonista e niilista.