Étienne Balibar, A terra é redonda, 14 de maio de 2021
Os ensaios que reunimos neste livro e, juntos, apresentamos ao leitor são resultado de nosso trabalho individual em diferentes períodos, e cada um de nós assume a própria responsabilidade. No entanto, as circunstâncias os tornaram elementos de um diálogo que se intensificou nos últimos anos e, atualmente, gostaríamos de repercuti-lo.
Trata-se de nossa contribuição para elucidar uma questão crucial: qual é a especificidade do racismo contemporâneo? Em que medida ela está relacionada à divisão de classes do capitalismo e às contradições do Estado-nação? E, vice-versa, em que medida o fenômeno do racismo nos leva a repensar a articula- ção entre o nacionalismo e a luta de classes?
Por meio dessa pergunta, trata-se de nossa contribuição também para uma discussão mais ampla, iniciada há mais de uma década no âmbito do “marxismo ocidental”, da qual esperamos que ele saia suficientemente renovado para acompanhar seu tempo. Sem dúvida, não é por acaso que essa discussão se apresenta como internacional, combina a reflexão filosófica com a síntese histórica e procura fazer uma revisão conceitual associa- da com a análise de problemas políticos mais que urgentes hoje, em especial na França. Pelo menos, essa é a convicção que desejamos compartilhar.
Permitam-me, aqui, algumas considerações pessoais. Quando encontrei, pela pri meira vez, Immanuel Wallerstein, em 1981, eu já conhecia o primeiro volume de sua obra The Modern World-System (University of California Press), publicada em 1974, mas ainda não tinha lido o segundo.
Portanto, eu ignorava que ele me creditara uma apresentação “teoricamente consciente” da tese marxista “tradicional” concernente à periodização dos modos de produção que identifica a época manufatureira com um período de transição e o começo do modo capitalista propriamente dito com a Revolução Industrial, diferentemente dos que, para marcar os começos da modernidade, propõem “cortar” o tempo da história, seja em torno de 1500 (com a expansão europeia, a criação do mercado mundial), seja por volta de 1650 (com as primeiras revoluções “burguesas” e a revolução científica).
A fortiori, ignorava que eu mesmo encontraria em sua análise da hegemonia holandesa no século XVII um ponto de apoio para situar o papel de Espinosa (com suas características revolucionárias não só no que diz respeito ao passado “medieval”, mas também às tendências contemporâneas) na disputa curiosamente atípica dos partidos políticos e religiosos da época (com a mistura que faziam de nacionalismo e cosmopolitismo, de democratismo e “medo das massas”).
Por sua vez, o que Wallerstein ignorava era que, desde o início dos anos 1970, após as discussões levantadas por nossa leitura “estruturalista” de O capital e, exatamente, para escapar das aporias clássicas da “periodização”, eu tinha reconhecido a necessidade de situar a análise das lutas de classes e de seus efeitos sobre o desenvolvimento do capitalismo no âmbito das formações sociais, não só nos limites do modo de produção, considerado um meio ideal ou um sistema que não varia (o que é uma concepção mecanicista da estrutura).
Por conseguinte, por um lado, era preciso, na configuração das relações de produção, atribuir um papel determinante a todos os aspectos históricos da luta de classes (inclusive os que Marx havia designado com o conceito ambíguo de superestrutura). Por outro, isso acarretava colocar no próprio cerne da teoria a questão do espaço de reprodução da relação capital-trabalho (ou do assalariado), reconhecendo todo o sentido da afirmação constante de Marx segundo a qual o capitalismo implica a mundialização da acumulação e da proletarização da força de trabalho, mas transpondo a abstração do “mercado mundial” indiferenciado.
Do mesmo modo, a emergência das lutas específicas dos trabalhadores imigrantes na França nos anos 1970 e a dificuldade de sua tradução política, juntamente com a tese de Althusseur, segundo a qual toda formação social se baseia na combinação de diversos modos de produção, me convenceram de que a divisão da classe operária não é um fenômeno secundário ou residual, e sim uma característica estrutural (o que não quer dizer que não varia) das sociedades capitalistas atuais, que determina todas as perspectivas de transformação revolucionária e até mesmo de organização cotidiana do movimento social.
Enfim, sem dúvida, eu tinha retido da crítica maoísta do “socialismo real” e da história da “revolução cultural” (tal como a entendia) não a demonização do re- visionismo e a nostalgia do stalinismo, e sim a indicação de que o “modo de produção socialista”, na realidade, consiste em uma combinação instável entre capitalismo de Estado e tendências proletárias ao comunismo. Em sua própria dispersão, todas essas diversas retificações tendiam a substituir uma problemática do “capitalismo histórico” pela antítese formal da estrutura e da história e a iden- tificar como questão central dessa problemática a variação das relações de produ- ção articuladas entre si na longa transição das sociedades não mercantis para as sociedades de “economia generalizada”.
Ao contrário de outros, eu não era demasiadamente sensível ao economicismo que, com frequência, foi criticado nas análises de Wallerstein. Na verdade, é preciso entender o significado desse termo. Na tradição da ortodoxia marxista, o econo- micismo se apresenta como um determinismo do desenvolvimento das forças produtivas: a sua maneira, o modelo da economia-mundo de Wallerstein substi- tuía bem o de uma dialética da acumulação capitalista e de suas contradições.
Ao se colocar a questão das condições históricas nas quais é possível se estabelecer o ciclo das fases de expansão e de recessão, Wallerstein não estava longe do que me parece ser a autêntica tese de Marx, a expressão de sua crítica do economicismo: a primazia das relações sociais de produção sobre as forças produtivas, de modo que as contradições do capitalismo não são contradições entre relações de produção e forças produtivas (por exemplo, contradições entre o caráter “privado” de umas e o caráter “social” das outras, segundo a formulação propagada por Engels), mas – entre outras – contradições no desenvolvimento das próprias forças produtivas, “contradições do progresso”.
Por sua vez, a chamada crítica do economicismo é feita, na maior parte das vezes, em nome de uma reivindicação de autonomia do político e do Estado, seja em relação à esfera da economia mercantil, seja em relação à própria luta de classes, o que praticamente reintroduz o dualismo liberal (sociedade civil/Estado, economia/política) contra o qual Marx argumentara de maneira decisiva. Ora, o modelo explicativo de Wallerstein, tal como o compreendo, permite pensar que a estrutura de todo o sistema é a de uma economia generalizada e, ao mesmo tempo, permite pensar que os processos de formação dos Estados, das políticas de hegemonia e das alianças de classes formam o tecido dessa economia.
Desde então, saber por que as formações sociais capitalistas adquirem a forma de nações, ou melhor, saber o que diferencia as nações individualizadas em torno de um aparelho de Estado “forte” e as nações dependentes, cuja unidade encontra oposição direta interna e externamente, e como essa diferença se transforma com a história do capitalismo deixou de ser um ponto cego para se tornar uma questão decisiva.
Para falar a verdade, é aqui que se inserem minhas perguntas e minhas objeções. Vou mencionar brevemente três, deixando para o leitor a incumbência de decidir se estão relacionadas ou não a uma concepção “tradicional” do materialismo histórico.
Em primeiro lugar, eu continuava convencido de que, em última análise, a hegemonia das classes dominantes se apoia em sua capacidade de organizar o processo de trabalho e, além disso, a própria reprodução da força de trabalho em um sentido amplo que engloba, ao mesmo tempo, a subsistência dos trabalhadores e sua formação “cultural”. Em outras palavras, o que está em causa é a subsunção real, que Marx considerou, em O capital, indicativa da constituição do modo de produção capitalista propriamente dito, ou seja, o ponto de não retorno do processo de acumulação ilimitada e de “valorização do valor”.
Pensando bem, a ideia dessa subsunção “real” (que Marx opõe à subsunção simplesmente “formal”) vai muito além da ideia de uma integração dos trabalhadores no mundo do contrato, do rendimento monetário, do direito e da política oficial: ela implica uma transformação da individualidade humana, que vai desde a educação da força de trabalho até a constituição de uma “ideologia dominante” suscetível de ser adotada pelos próprios dominados. Sem dúvida, Wallerstein não discordaria dessa ideia, uma vez que ele insiste no modo como todas as classes sociais, todos os grupos estatutários que se formam no âmbito da economia-mundo capitalista são submetidos aos efeitos da “mercantilização” e do “sistema dos Estados”.
Mas podemos nos perguntar se, para descrever os conflitos e as evoluções que deles resultam, é suficien- te analisar, como ele, o quadro dos atores históricos, de seus interesses e de suas estratégias de alianças ou de confrontos. A própria identidade dos atores depende do processo de formação e de manutenção da hegemonia. Assim, a burguesia moderna se formou para poder se tornar uma classe de enquadramento do proletariado, após ter sido uma classe de enquadramento do campesinato: ela precisou adquirir capacidades políticas e uma “consciência de si” que antecipavam a expressão das próprias resistências e que se transformam com a natureza dessas resistências.
Portanto, o universalismo da ideologia dominante se enraíza em um nível muito mais profundo que a expansão mundial do capital e até mesmo que a necessidade de encontrar, para todos, os “quadros” dessa expansão das regras de ação comuns: ele se enraíza devido à necessidade de construir, apesar de seu antagonismo, um “mundo” ideológico comum aos exploradores e aos explorados. O igualitarismo (democrático ou não) da política moderna é um bom exemplo desse processo.
Isso quer dizer, ao mesmo tempo, que toda dominação de classe deve ser formu- lada na linguagem do universal e que, na história, há universalidades múltiplas incompatíveis entre si. Cada uma – e é também o caso das ideologias dominantes da época atual – é trabalhada pelas tensões específicas de determinada forma de exploração, e não é inteiramente garantido que uma hegemonia possa englobar ao mesmo tempo todas as relações de dominação que se encontram no âmbito da economia-mundo capitalista. Para ser claro, duvido que exista uma “burguesia mundial”.
Ou, para ser mais preciso, reconheço totalmente que a extensão do processo de acumulação em escala mundial envolve a constituição de uma “classe mundial de capitalistas”, que tem como lei a concorrência contínua (e, paradoxo por paradoxo, vejo a necessidade de incluir nessa classe capitalista tanto os dirigentes da “livre empresa” quanto os gestores do protecionismo “socialista” de Estado), mas não acredito que essa classe capitalista seja ao mesmo tempo uma burguesia mundial no sentido de classe organizada em instituições, a única historicamente concreta.
Imagino que Wallerstein responderia logo a esse questionamento: mas há de fato uma instituição comum à burguesia mundial que tende a lhe conferir uma existência concreta, independentemente de seus conflitos internos (mesmo quando eles adquirem a forma violenta de conflitos militares) e, sobretudo, independentemente das condições muito diferentes de sua hegemonia sobre as populações dominadas! Essa instituição é o próprio sistema dos Estados, cuja estabilidade tornou-se bem evidente desde que, após revoluções e contrarrevoluções, colonizações e descolonizações, a forma do Estado nacional se estendeu formalmente à humanidade inteira.
Sustento, há muito tempo, que toda burguesia é “burguesia de Estado”, mesmo onde o capitalismo não é organizado como capitalismo de Estado planificado, e penso que concordaremos neste ponto. Uma das questões mais pertinentes entre as formuladas por Wallerstein, a meu ver, consiste em se perguntar por que a economia-mundo não conseguiu se transformar (apesar de diversas tentativas do século XVI ao XX) em um império-mundo, politicamente unificado, por que, nela, a instituição política adquiriu a forma de um “sistema interestatal”.
A essa questão não é possível responder a priori; é preciso refazer com exatidão a história da economia-mundo e, sobretudo, a dos conflitos de interesses, dos fenômenos de “monopólio” e os desenvolvimentos desiguais da força que não parou de se manifestar em seu “centro” – aliás, hoje cada vez menos localizado em uma única área geográfica –, mas também a das resistências desiguais de sua “periferia”.
No entanto, exatamente essa resposta (se for apropriada) me leva a reformular minha objeção. No fim do primeiro volume de The Modern World-System, Wallerstein propõe um critério para identificar os “sistemas sociais” relativamente autônomos: o critério da autonomia interna de sua evolução (ou de sua dinâmica). Ele tira uma conclusão radical disso: a maior parte das unidades históricas às quais se costuma aplicar o rótulo de sistemas sociais (das “tribos” aos Estados-nações) não é um sistema social; trata-se simplesmente de unidades dependentes; os únicos sistemas no sentido próprio da palavra considerados pela história são, por um lado, as comunidades de autossubsistência e, por outro, os “mundos” (os impérios-mundo e as economias-mundo).
Reformulada de acordo com a terminologia marxista, essa tese nos levaria a pensar que a única formação social no sentido próprio da expressão, no mundo atual, é a própria economia-mundo, por ser a maior unidade em que os processos históricos tornam-se interdependentes. Em outras palavras, a economia-mundo não seria apenas uma unidade econômica e um sistema de Estados, mas também uma unidade social. Por conseguinte, a própria dialética de sua evolução seria uma dialética global ou, no mínimo, caracterizada pela primazia das pressões globais sobre as relações de forças locais.
Não há a menor dúvida de que essa representação tem o mérito de dar conta sinteticamente dos fenômenos de mundialização da política e da ideologia aos quais assistimos há décadas e que nos parecem o resultado de um processo cumu- lativo plurissecular. Ela encontra uma ilustração particularmente surpreendente nos períodos de crise. Fornece, como veremos no desenrolar desta coletânea, um poderoso instrumento para interpretar o nacionalismo e o racismo onipresentes no mundo moderno, evitando confundi-los com outros fenômenos de “xenofobia” ou de “intolerância” do passado: o nacionalismo como reação à dominação dos Estados do centro, o racismo como institucionalização das hierarquias que fazem parte da divisão mundial do trabalho.
Mas me pergunto se, desta forma, a tese de Wallerstein não dá à multiplicidade dos conflitos sociais (e, em particular, das lutas de classes) uma uniformidade e uma globalidade formais ou, pelo menos, uni- laterais. A meu ver, o que caracteriza esses conflitos não é só a transnacionalização, mas o papel decisivo que nela desempenham, mais que nunca, relações sociais localizadas, ou formas locais do conflito social (econômicas, religiosas, político-culturais), cuja “soma” não é imediatamente totalizável.
Em outras palavras, se, em vez de tomar como critério o limite externo extremo no interior do qual se dá a regulação de um sistema, considero a especificidade dos movimentos sociais e dos conflitos que nele se estabelecem (ou, se preferirem, a forma específica sob a qual nele se refletem as contradições globais), eu me pergunto se as unidades sociais do mundo contemporâneo não devem ser diferenciadas de sua unidade econômica. Em suma, por que elas coincidiriam? Ao mesmo tempo, sugiro que o movimento de toda a economia-mundo é mais o resultado aleatório do movimento de suas unidades sociais que sua causa. Mas reconheço que é difícil identificar as unidades sociais em questão, pois pura e simplesmente elas não coincidem com unidades nacionais e podem, em parte, se sobrepor (por que uma unidade social seria fechada e a fortiori “autárquica”?).
Isso me leva a uma terceira questão. A força do modelo de Wallerstein, generalizando e, em paralelo, concretizando as indicações de Marx a propósito da “lei de população” inerente à acumulação indefinida do capital, é mostrar que esta não deixou de impor (pela força e pelo direito) uma redistribuição das popula- ções nas categorias socioprofissionais de sua “divisão do trabalho”, compondo-a com suas resistências, ou quebrando-a, e até mesmo utilizando suas estratégias de subsistência e jogando os interesses de uns contra os dos outros.
A base das formações sociais capitalistas é uma divisão do trabalho (no sentido amplo do termo, incluindo as diferentes “funções” necessárias à produção do capital), ou melhor, a base das transformações sociais é a transformação da divisão do trabalho. Mas será que o fato de basear na divisão do trabalho a integralidade do que Althusser chamou recentemente de “efeito de sociedade” não significa apenas queimar etapas? Em outras palavras, será que podemos considerar (como fez Marx em alguns textos “filosóficos”) que as sociedades ou formações sociais são mantidas “vivas” e constituem unidades relativamente duráveis pelo simples fato de organizarem a produção e as trocas em determinadas relações históricas?
Entendam bem o que digo: não se trata, aqui, de reeditar o conflito do materialismo e do idealismo e de sugerir que a unidade econômica das sociedades deva ser completada ou substituída por uma unidade simbólica da qual buscaremos a definição, seja no direito, seja na religião, seja na proibição do incesto etc. Trata–se, sobretudo, de se perguntar se por acaso não teriam os marxistas sido vítimas de uma gigantesca ilusão sobre o sentido de suas próprias análises, em boa parte herdada da ideologia econômica liberal (e de sua antropologia implícita).
A divisão do trabalho capitalista não tem nada a ver com uma complementaridade das tarefas, dos indivíduos e dos grupos sociais: ela leva mais, como reafirma com muita ênfase o próprio Wallerstein, à polarização das formações sociais em classes antagônicas, cujos interesses são cada vez menos “comuns”. Como basear a unidade (mesmo conflitual) de uma sociedade em uma divisão como essa?
Talvez devêssemos, então, inverter nossa interpretação da tese marxista. Em vez de representarmos a divisão do trabalho capitalista como o que fundamenta, ou institui, as sociedades humanas em “coletividades” relativamente estáveis, deveríamos pensá-la como o que as destrói? Ou melhor, como o que as destruiria, dando a suas desigualdades internas a forma de antagonismos inconciliáveis, se outras práticas sociais, também materiais, mas irredutíveis ao comportamento do homo oeconomicus, por exemplo as práticas da comunicação linguística e da sexualidade, ou da técnica e do conhecimento, não impusessem limites ao imperialismo da relação de produção e não a transformassem internamente?
A história das formações sociais não seria, então, tanto a da passagem das comunidades não mercantis à sociedade de mercado ou de trocas generalizadas (inclusive a troca da força humana de trabalho) – representação liberal e sociológica que conservou o marxismo –, e sim a das reações do conjunto das relações sociais “não econômicas” que fazem a ligação entre uma coletividade histórica de indivíduos e a desestruturação do que os ameaça, ou seja, a expansão da forma valor. São essas reações que dão à história social um ar irredutível à simples “lógica” da reprodução ampliada do capital ou até mesmo a um “jogo estratégico” dos atores definidos pela divisão do trabalho e pelo sistema de Estados.
São elas também que servem de base para as produções ideológicas e institucionais, intrinsecamente ambíguas, que são a verdadeira matéria da política (por exemplo, a ideologia dos direitos do homem, mas também o racismo, o nacionalismo, o sexismo e suas antíteses revolucionárias). Enfim, são elas que dão conta dos efeitos ambivalentes das lutas de classes, uma vez que, procurando operar a “negação da negação”, ou seja, destruir o mecanismo que destrói tendencialmente as condições da existência social, visam também, utopicamente, a restaurar uma unidade perdida e, assim, se propõem à “recuperação” por diferentes forças de dominação.
Mais que iniciar uma discussão nesse nível de abstração, nos pareceu à primeira vista que seria melhor reinvestir os instrumentos teóricos dos quais dispomos na análise de uma questão crucial sugerida pelo próprio momento atual, por meio de um trabalho de colaboração, cuja dificuldade seja de natureza tal que con- tribua para avançar a discussão. Esse projeto se materializou em seminários que organizamos durante três anos (1985, 1986, 1987) na Maison des Sciences de l’Homme de Paris.
Ele foi dedicado sucessivamente aos temas “Racismo e etni- cidade”, “Nação e nacionalismo”, “As classes”. Os textos apresentados a seguir não reproduzem literalmente nossas intervenções, mas retomam o assunto e o completam em diversos aspectos. Alguns foram expostos em outras apresentações ou publicações assinaladas. Nós os reorganizamos de modo a salientar os pontos de confronto e de convergência. Sua sucessão não pretende a coerência absoluta nem a exaustividade, mas, sobretudo, abrir a questão, explorar algumas vias de investigação. É muito cedo para concluir. No entanto, esperamos que neles o leitor encontre material para reflexão e crítica.
Na primeira seção – “O racismo universal” –, nossa intenção foi esboçar uma problemática alternativa à ideologia do “progresso” imposta pelo liberalismo e amplamente retomada (veremos adiante em que condições) pela filosofia marxista da história. Constatamos que, sob formas tradicionais ou renovadas (mas cuja filiação pode ser identificada), o racismo não está regredindo, mas se encontra em progressão, no mundo contemporâneo. Esse fenômeno inclui desigualdades, fases críticas, e é preciso tomar cuidado para não confundir suas manifestações; em última análise, ele só pode ser explicado por causas estruturais.
Na medida em que o que está em jogo aqui – por meio de teorias eruditas, racismo institucional ou popular – é a categorização da humanidade em espécies artificialmente isoladas, é preciso que exista uma cisão violentamente conflitual no âmbito das próprias relações sociais. Não se trata, então, de simples “preconceito”. Além disso, é preciso não só que haja transformações históricas tão decisivas como a descolonização, mas também que essa cisão seja reproduzida no contexto mundial que criou o capitalismo. Não se trata, assim, de uma sobrevivência nem de um arcaísmo. No entanto, isso não é contraditório com a lógica da economia generalizada e do direito individualista? De forma alguma.
Nós dois pensamos que o universalismo da ideologia burguesa (portanto, também seu humanismo) não é incompatível com o sistema de hierar- quias e de exclusões que, antes de mais nada, adquire a forma do racismo e do se- xismo. Do mesmo modo que o racismo e o sexismo adquirem a forma de sistema.
Contudo, na análise detalhada, divergimos a propósito de vários pontos. Wallerstein remete o universalismo à própria forma do mercado (à universalidade do processo de acumulação), o racismo à clivagem da força de trabalho entre o centro e a periferia e o sexismo à oposição do “trabalho” masculino e do “não trabalho” feminino nos afazeres do lar ou na estrutura doméstica (household), que ele considera uma instituição fundamental do capitalismo histórico.
De minha parte, penso que a articulação específica do racismo é com o nacionalismo e creio poder demonstrar que a universalidade está paradoxalmente presente no próprio racismo. Nesse caso, a dimensão temporal torna-se decisiva: é questão de saber como a memória das exclusões do passado se transfere para as do presente, ou mais, como a internacionalização dos movimentos de população e a mudança do papel político dos Estados-nações desembocam em um “neorracismo” e, até mesmo, em um “pós-racismo”.
Em uma segunda seção – “A nação histórica” –, tentamos renovar a discussão das categorias “povo” e “nação”. Nossos métodos são bastante diferentes: procedo de modo diacrônico, em busca de uma trajetória da forma nação; Wallerstein, de modo sincrônico, em busca do lugar funcional que a superestrutura nacional ocupa, entre outras instituições políticas, na economia-mundo. Por isso, também articulamos de maneira distinta a luta de classes e a formação nacional. De ma- neira extremamente esquematizada, poderíamos dizer que minha posição consiste em inscrever as lutas de classes históricas na forma nacional (ainda que elas re- presentem sua antítese), enquanto a de Wallerstein inscreve a nação, com outras formas, no campo das lutas de classes (ainda que elas só se tornem classes “para si” em circunstâncias excepcionais – questão que retomaremos adiante).
Sem dúvida, é aqui que o significado do conceito de “formação social” desempenha um importante papel. Wallerstein propõe distinguir três grandes modos históricos de construção do “povo”: a raça, a nação, a etnicidade, que levam a estruturas diferentes da economia-mundo; insiste na ruptura histórica entre o Estado “burguês” (o Estado-nação) e as formas anteriores do Estado (na verdade, o próprio termo “Estado”, para ele, é um equívoco).
De minha parte, procurando caracterizar a passagem do Estado “pré-nacional” para o Estado “nacional”, dou muita importância a outra ideia dele (não retomada aqui): a da pluralidade das formas políticas na fase de constituição da economia-mundo. Apresento o problema da constituição do povo (o que chamo de etnicidade fictícia) como um problema de hegemonia interna e tento analisar o papel que as instituições que dão corpo respectivamente à comunidade linguística e à comunidade de raça exercem em sua produção.
Por causa dessas diferenças, parece que Wallerstein compreende melhor a etnicização das minorias, enquanto sou mais sensível à das maiorias; talvez ele seja extremamente “americano”, e eu, demasiadamente “francês”… No entanto, o certo é que, para nós dois, parece igualmente essencial pensar a nação e o povo como construções históricas, graças às quais instituições e antagonismos atuais podem ser projetados no passado para conferir às “comunidades” uma relati- va estabilidade da qual o sentimento da “identidade” individual depende.
Com a terceira seção – “As classes: polarização e sobredeterminação” –, nós nos perguntamos sobre as transformações radicais que devem ser feitas nos esquemas da ortodoxia marxista (ou seja, para ser breve, no evolucionismo do “modo de produção” em suas diferentes variantes) a fim de que se possa analisar o capitalismo realmente como sistema (ou estrutura) histórico, de acordo com as indicações mais originais de Marx.
Seria cansativo resumir de antemão nossas proposições. O leitor malicioso terá o prazer de contabilizar as contradições que surgem entre nossas respectivas “reconstruções”. Não vamos transgredir a regra segundo a qual dois “marxistas”, quaisquer que sejam, se revelam incapazes de dar o mesmo sentido aos mesmos conceitos… Não nos apressemos em concluir que se trata de um jogo escolástico. O que, na releitura, me parece mais significativo é o grau de con- cordância das conclusões às quais chegamos a partir de premissas tão diferentes.
O que está em jogo, com muita clareza, é a articulação do aspecto “econômico” e do aspecto “político” da luta de classes. Wallerstein é fiel à problemática da “classe em si” e “classe para si” que eu recuso, mas a elabora com teses, no mínimo provocadoras, concernentes ao aspecto principal da proletarização (que não é, segundo ele, a generalização do trabalho assalariado).
De acordo com sua argumentação, o assalariamento se desenvolve, apesar do interesse imediato dos capi- talistas, sob o duplo efeito das crises de realização e das lutas operárias contra a superexploração “periférica” (a do trabalho assalariado em tempo parcial).
Discordo alegando que esse raciocínio pressupõe que toda exploração seja “extensiva”; em outras palavras, que não haja também uma forma de superexploração ligada à intensificação do trabalho assalariado submetido às revoluções tecnológicas (o que Marx chama de “subsunção real”, a produção de “mais-valor relativo”).
Mas essas divergências analíticas – sobre as quais podemos pensar que refletem um ponto de vista da periferia em comparação com um ponto de vista do centro – são subordinadas a três ideias comuns:
(1) A tese de Marx concernente à polarização das classes no capitalismo não é um erro desastroso, mas o ponto forte de sua teoria. No entanto, deve ser cuida- dosamente diferenciada da representação ideológica de uma “simplificação das relações de classe” com o desenvolvimento do capitalismo, ligada ao catastrofismo histórico.
(2) Não existe um “tipo ideal” de classes (proletariado e burguesia), mas processos de proletarização e de emburguesamento; cada qual comporta seus próprios conflitos internos (o que eu chamaria, conforme Althusser, de “sobredeterminação” do antagonismo): assim, explicamos que a história da economia capitalista depende das lutas políticas no espaço nacional e transnacional.
(3) Não se define a “burguesia” pela simples acumulação do lucro (ou pelo investimento produtivo): essa condição é necessária, mas não é suficiente. Leremos, no texto, a argumentação de Wallerstein concernente à busca, pela burguesia, de detenção de monopólio e de transformação do lucro em “renda” garantida pelo Estado de acordo com diversas modalidades históricas. Essa é uma questão à qual certamente será preciso voltar. A historização (e, portanto, a dialetização) do conceito de classes na “sociologia marxista” está só começando (o que significa que ainda há muito trabalho a ser feito para arruinar a ideologia que se concebeu como sociologia marxista).
Também neste caso, reagimos a nossas tradições nacionais: ao contrário de um preconceito tenaz na França (mas que remonta a Engels), procuro mostrar que a burguesia capitalista não é parasita; por sua vez, Wallerstein, que vem de um país onde se criou o mito do “empresário”, tenta mostrar que o burguês não é o oposto do aristocrata (nem foi no passado, nem é atualmente).
Por razões diferentes, estou de pleno acordo em pensar que, no capitalismo atual, a escolarização generalizada não só se tornou “reprodutora”, como também produtora, de diferenças de classe. Porém, menos “otimista” que ele, não acredito que o mecanismo “meritocrático” seja politicamente mais frágil que os mecanismos históricos, anteriores, de aquisição de um status social privilegiado.
A meu ver, isso está relacionado com o fato de a escolarização – pelo menos nos países “desenvolvidos” – constituir-se como um meio de seleção dos quadros de executivos e, ao mesmo tempo, como um aparelho ideológico apropriado para naturalizar “tecnicamente” e “cientificamente” as divisões sociais, sobretudo a divisão do tra- balho manual e intelectual, ou a do trabalho de execução e o trabalho do staff, em suas formas sucessivas. Ora, essa naturalização que, como veremos, apresenta relações estreitas com o racismo tem a mesma eficácia que outras legitimações históricas do privilégio.
O que nos leva diretamente ao último ponto: “Deslocamentos do conflito social?”. O objetivo dessa quarta seção é retomar a questão inicialmente colocada (a do racismo ou, de modo mais amplo, do “status” e da identidade “comunitária”), cruzando as caracterizações anteriores ou preparando conclusões práticas – embora ainda estejamos muito longe disso. Trata-se também de avaliar a distância em relação a alguns temas clássicos da sociologia e da história. Naturalmente, as diferenças de abordagem e as divergências mais ou menos importantes que surgiram antes persistem: portanto, não seria o caso de concluir.
Se eu quisesse exagerar, diria que, desta vez, Wallerstein é muito menos “otimista” que eu, uma vez que ele vê a consciência de “grupo” necessariamente prevalecer sobre a consciência de “classe” ou, no mínimo, constituir a forma necessária de sua realização histórica. É verdade que, no limite (“assimptótico”), os dois termos se juntam, segundo ele, na transnacionalização das desigualdades e dos conflitos.
Quanto a mim, não creio que o racismo seja a expressão da estrutura de classes, e sim uma forma típica de alienação política inerente às lutas de classes no campo do nacionalismo, que se manifes- tam por meio de formas particularmente ambivalentes (racização do proletariado, obreirismo, consenso “interclassista” na crise atual). É verdade que meu raciocínio se baseia, fundamentalmente, no exemplo da situação e da história francesas, em que hoje a questão da renovação das práticas e das ideologias internacionalistas se coloca de modo incerto.
Também é verdade que, na prática, as “nações proletárias” do Terceiro Mundo, ou, mais precisamente, suas massas pauperizadas, e os “novos proletários” da Europa ocidental e de outros lugares – em sua diversidade – têm um mesmo adversário: o racismo institucional e seus prolongamentos ou suas an- tecipações políticas de massa. E um mesmo obstáculo a superar: a confusão do particularismo étnico ou do universalismo político-religioso com ideologias em si libertadoras.
Trata-se, provavelmente, do essencial, sobre o que ainda é preciso refletir e investigar não só nos círculos universitários, mas com os demais interessados. Todavia, um mesmo adversário não significa nem os mesmos interesses imediatos, nem a mesma forma de consciência, nem a fortiori a totalização das lutas. De fato, essa é apenas uma tendência à qual se opõem obstáculos estruturais. Para que ela se imponha, são necessárias conjunturas favoráveis e práticas políticas.
Por isso, em todo este livro, mantive que a (re)constituição em novas bases (e, talvez, com palavras novas) de uma ideologia de classe, suscetível de se opor ao nacionalis- mo galopante de hoje e de amanhã, tinha como condição – que, de fato, determina seu conteúdo – um antirracismo efetivo.
Étienne Balibar é professor na Universidade de Paris X-Nanterre. Autor entre outros livros de A filosofia de Marx (Jorge Zahar).
Referência
Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. Tradução: Wanda Caldeira Brant. São Paulo, Boitempo, 2021, 304 págs.