Essas demissões em massa, assim como essas greves de trabalhadores, revelam um profundo descontentamento em relação ao trabalho nos EUA, processo que já remonta a décadas. As empresas exerceram forte controle sobre a política, gastando parte de seu dinheiro para fazer lobby junto ao governo a fim de garantir lucros ainda maiores à custa dos direitos dos trabalhadores.
Sonali Kolhatkar, Alencontre / Outras Palavras, 28 de outubro de 2021. A tradução é de Vitor Costa.
Em 14 de setembro de 2021, uma jovem da Louisiana chamada Beth McGrath postou no Facebook um vídeo em que trabalhava no Walmart. Sua linguagem corporal mostra uma forte tensão quando ela cria coragem para anunciar, pelo microfone, sua demissão aos compradores da loja. “Todo mundo aqui está com excesso de trabalho e é mal pago”, ela começa, e continua questionando alguns gerentes por seus comportamentos impróprios e desrespeitosos. “Espero que vocês não falem com suas famílias da mesma forma que falam conosco”, disse ela antes de terminar com um “foda-se este trabalho!”.
Talvez Beth McGrath tenha se inspirado em Shana Ragland, de Lubbock, cidade do Texas, que quase um ano atrás apresentou uma demissão pública semelhante em um vídeo de TikTok que ela postou da loja Walmart onde trabalhava. As queixas de Shana Ragland eram semelhantes às de Beth McGrath, pois ela acusava os gerentes de insultar constantemente as trabalhadoras. “Espero que você não fale com suas namoradas do jeito que fala comigo”, disse ela pelo microfone da loja, antes de concluir com um “fodam-se os responsáveis, foda-se essa empresa”.
As demissões dessas duas jovens viralizaram e resumem bem um ano de grande instabilidade na força de trabalho estadunidense, que os economistas batizaram de “A Grande Demissão”. As mulheres, em particular, são vistas como as pioneiras dessa tendência.
A grande demissão
A gravidade da situação foi confirmada pelo último relatório do Bureau of Labor Statistics (BLS de 12 de outubro de 2021), que indica que uma porcentagem recorde de 2,9% da força de trabalho deixou seus empregos em agosto de 2021, o equivalente a 4,3 milhões de demissões.
Se essa alta taxa de demissões ocorresse em um momento em que os empregos são abundantes, isso poderia ser visto como um sinal de uma economia próspera, onde os trabalhadores poderiam escolher seus empregos. Mas o mesmo relatório do BLS mostrou que as vagas também diminuíram, sugerindo que algo mais está acontecendo. Uma nova pesquisa da Harris (também de 12 de outubro) com pessoas que estão empregadas, descobriu que mais da metade dos trabalhadores deseja se demitir. Muitos deles citam a falta de atenção e cuidados por parte do empregador e a falta de flexibilidade no planejamento dos horários de trabalho para justificar o desejo de deixar o emprego. Em outras palavras, milhões de trabalhadores na América simplesmente estão de saco cheio.
A turbulência no mercado de trabalho é tão grave que Jack Kelly, um colaborador sênior da Forbes.com, uma mídia favorável às empresas, definiu a tendência como uma “espécie de revolução e levante de trabalhadores contra maus chefes e corporações que se recusam a remunerar adequadamente e que exploram seu pessoal” (publicada em 8 de outubro de 2021). No que pode ser uma referência a vídeos virais como os de Beth McGrath e Shana Ragland – e a tendência crescente de postagens com a hashtag #QuitMyJob – Jack Kelly continua: “Os que se demitiram estão fazendo uma declaração poderosa, positiva e assertiva, dizendo que eles não aguentarão mais esses comportamentos abusivos”.
Ainda assim, alguns consultores sugerem combater a raiva dos trabalhadores por meio de “exercícios de vínculo”, como “compartilhamento de reconhecimento” e jogos. Outros sugerem aumentar a confiança entre trabalhadores e chefes – ou “exercer uma curiosidade empática” com os funcionários. Mas essas abordagens mais superficiais ignoram totalmente o problema principal.
Essas demissões devem ser vistas em conjunto com outra poderosa corrente que muitos economistas ignoram: o desejo crescente dos trabalhadores sindicalizados de entrar em greve.
As grandes greves
Em 13 de outubro de 2021, as equipes de filmagem da indústria cinematográfica anunciaram que poderiam parar em breve porque 60 mil membros da Aliança Internacional de Teatro e Funcionários de Palco (IATSE) haviam convocado uma greve nacional. (No lançamento do movimento, no domingo, 17 de outubro, foi obtido um acordo para melhorar a condição das equipes de filmagem; o espectro de uma paralisação pesou na decisão).
Cerca de 10 mil trabalhadores da John Deere (máquinas agrícolas), representados pelo United Auto Workers (UAW), também estão se preparando para entrar em greve após rejeitarem uma nova tentativa de acordo. A rede de clínicas Kaiser Permanente deve enfrentar uma greve de pelo menos 24 mil de suas enfermeiras e outros profissionais de saúde nos estados do oeste devido à piora dos salários e das condições de trabalho. E cerca de 1.400 trabalhadores da Kellogg em Nebraska, Michigan, Pensilvânia e Tennessee já estão em greve por causa de salários e benefícios (como plano de saúde e aposentadoria) insuficientes.
As greves anunciadas são tantas – e acontecem tão rápido – que o ex-secretário do Trabalho dos EUA (1992-1997, na gestão Bill Clinton) Robert Reich chamou a situação de “greve geral não-oficial” (The Guardian, 13 de outubro de 2021).
Ainda assim, a representação sindical permanece extremamente baixa nos EUA, resultado de décadas de esforços combinados das empresas para minar o poder de negociação dos trabalhadores e trabalhadoras. Hoje, apenas 12% dos trabalhadores e trabalhadoras são sindicalizados.
O número de greves e de trabalhadores e trabalhadoras em greve poderia ser muito maior se mais deles fossem sindicalizados. Trabalhadoras não sindicalizadas como Beth McGrath e Shana Ragland, contratadas por empresas historicamente antissindicais como o Walmart, poderiam ter conseguido organizar seus colegas de trabalho em vez de recorrer a demissões individuais divulgadas nas redes. Embora as mensagens de demissão nas redes sociais tenham um grande impacto nas discussões sobre o descontentamento dos trabalhadores e trabalhadoras, elas têm pouco impacto direto nas vidas dos colegas que permaneceram em seus empregos.
Um exemplo de como a organização sindical faz uma diferença concreta nas condições de trabalho é o acordo ratificado recentemente por 7 mil trabalhadores e trabalhadoras das farmácias Rite Aid e CVS (Consumer Value Store) em Los Angeles. A seção local da United Food and Commercial Workers negociou um aumento salarial de quase 10% para os trabalhadores e trabalhadoras, assim como benefícios sociais e padrões de segurança aprimorados.
E quando as empresas não atendem às demandas trabalhistas, os funcionários têm mais poder quando atuam como um coletivo unido numa negociação solidária do que como indivíduos. Vejamos o caso dos trabalhadores da Nabisco que entraram em greve em cinco estados neste verão. A Mondelez International, empresa controladora da Nabisco, registrou lucros recordes durante a pandemia graças ao aumento nas vendas de seus salgadinhos e biscoitos. A empresa ficou tão rica que pagou ao seu CEO uma remuneração anual de US$ 16,8 milhões e gastou US$ 1,5 bilhão na recompra de ações no início deste ano. Durante esse tempo, o salário médio de um trabalhador era de US$ 31.000 por ano, uma quantia muito baixa. Muitos dos empregos da Nabisco foram transferidos para o México, onde a empresa pôde reduzir ainda mais os “custos” com mão de obra.
Após semanas de piquete (iniciado em 10 de agosto de 2021), trabalhadores e trabalhadoras em greve da Nabisco, representados pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Panificação, Confeitaria, Tabaco e Moinhos de Grãos, voltaram ao trabalho (em 18 de setembro de 2021) após terem obtido aumentos retroativos de 2,25%, bônus de US$ 5 mil e um aumento nas contribuições do empregador para seus planos de aposentadoria. A empresa, cujo faturamento cresceu 12% no início do ano, pôde arcar com essas medidas e muitas outras ainda.
Essas demissões em massa, assim como essas greves de trabalhadores, revelam um profundo descontentamento em relação ao trabalho nos EUA, processo que já remonta a décadas. As empresas exerceram forte controle sobre a política, gastando parte de seu dinheiro para fazer lobby junto ao governo a fim de garantir lucros ainda maiores à custa dos direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o poder dos sindicatos caiu – uma tendência diretamente ligada ao aumento das desigualdades econômicas (desigualdades que refletem o fortalecimento das formas de exploração).
Empresas e legislação
Mas agora, na medida em que os trabalhadores fortalecem sua posição, as empresas estão preocupadas.
Na esteira dessas greves e demissões, parlamentares estão tentando ativamente fortalecer as leis trabalhistas federais existentes. Mas grupos empresariais estão pressionando os democratas para enfraquecer as medidas pró-trabalho incluídas na lei Build Back Better (BBB), que está atualmente sendo debatida no Congresso.
Atualmente, os empregadores podem violar as leis trabalhistas sem grandes consequências, já que o National Labor Relations Board (NLRB) não tem o poder de impor multas aos infratores. Mas os democratas querem dar ao NLRB o poder de impor multas de US$ 50 mil a US$ 100 mil a empresas que violem as leis trabalhistas federais. O projeto Build Back Better também inclui o aumento de multas para empregadores que violarem os padrões do Occupational Safety and Health Administration (OSHA), órgão do governo federal cuja missão é prevenir acidentes, doenças e mortes no local de trabalho.
A Coalizão por um Local de Trabalho Democrático, um grupo de lobby empresarial que quer tudo, menos democracia no local de trabalho, está muito preocupada com as mudanças propostas. Ela enviou uma carta aos parlamentares sobre esse tema. Resta saber se os lobistas corporativos terão sucesso, dessa vez, em manter as leis trabalhistas bem fracas. Mas como os trabalhadores continuam a pedir demissão e as greves entre os trabalhadores sindicalizados se multiplicam, os empregadores estão ignorando os sinais de raiva e frustração generalizadas por sua conta e risco.
Sonali Kolhatkar é fundador e apresentador de "Rising Up With Sonali", um programa de televisão e rádio transmitido pelas estações Free Speech TV e Pacifica.