Governo Biden muda de opinião após pressão de uma centena de países. “As circunstâncias extraordinárias da pandemia exigem medidas extraordinárias”, diz representante do Comércio
Antonia Laborde, El País Brasil, 5 de maio de 2021
O presidente Joe Biden anunciou na quarta-feira que sua Administração aceitará suspender as patentes das vacinas contra o coronavírus. O anúncio chega quando a situação na Índia, que atravessa a pior onda da covid-19 do mundo desde o começo da pandemia, lembra aos Estados mais desenvolvidos que, até que o coronavírus seja derrotado em todo o planeta, ninguém estará totalmente a salvo.
AAntA isenção de propriedade intelectual permitirá aos países mais pobres fabricar as doses em seus territórios. “Esta é uma crise de saúde mundial e as circunstâncias extraordinárias da pandemia da covid-19 exigem medidas extraordinárias”, afirmou em um comunicado a representante do Comércio Exterior, Katherine Tai.
Os Estados Unidos, junto com a União Europeia, foram um dos principais opositores a uma proposta da Organização Mundial de Comércio (OMC) para levantar as proteções da propriedade intelectual com o objetivo de aumentar a produção de vacinas. Mas a pressão sobre Biden era cada vez maior. Com mais da metade da população adulta norte-americana vacinada, vários órgãos internacionais e até membros de seu próprio partido pediram que apoiasse a proposta.
“A Administração acredita firmemente nas proteções da propriedade intelectual, mas para terminar com esta pandemia apoia a isenção das proteções às vacinas da covid-19”, diz a embaixadora Tai em um comunicado, em que anuncia que Washington participará ativamente nas negociações na Organização Mundial do Comércio “para fazer com que isso ocorra”. A representante do Comércio acredita que a Administração democrata continuará trabalhando com o setor privado e todos os parceiros possíveis “para expandir a fabricação e a distribuição de vacinas”. Também trabalhará para aumentar as matérias-primas necessárias para produzir essas vacinas.
Nos últimos meses, a Índia e a África do Sul conseguiram com que outros 60 governos —a maioria entre os de menor renda do globo— se transformassem em apoiadores da liberação de patentes. No total, mais de 100 países apoiaram na OMC a primeira proposta apresentada em outubro pela Índia e a África do Sul. A Índia e a África do Sul anunciaram que apresentarão em maio uma nova proposta à OMC, com o objetivo de liberar as patentes de vacinas, medicamentos e produtos sanitários necessários para combater a pandemia. A iniciativa tenta ganhar tempo para alinhar posições com os governos que continuam se opondo à medida, ao mesmo tempo em que pretende somar novas forças ao apoio crescente e sem precedentes que recebeu nas últimas semanas.
O Brasil não se posicionou a favor da quebra de patentes dos imunizantes. Em declaração no último dia 28, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, afirmou não considerar a possibilidade de quebra de patentes de vacinas contra covid-19 como caminho mais eficaz para acelerar a vacinação no Brasil. Para o chanceler, a quebra não traria efeitos de curto prazo, devido à limitação de acesso aos insumos para a produção de imunizantes e limitações na capacidade de produção, informa a Agência Brasil.
Apesar disso, na última sexta, o Senado aprovou um projeto de lei que permite a quebra temporária das patentes. O texto segue para a Câmara dos Deputados. Na prática, os donos de patentes ficam obrigados a ceder ao poder público, se esse assim solicitar, todas as informações necessárias para a produção de vacinas e medicamentos de enfrentamento à covid-19. O relator da proposta, senador Nelsinho Trad, (PSD-MS), explicou que o Governo federal terá 30 dias para a regulamentação, elaborando uma lista das patentes e pedidos de patentes sujeitos ao licenciamento compulsório.
Em ato histórico, Biden apoia quebra de patente de vacinas; Brasil é contra
Jamil Chade, Uol, 5 de maio de 2021
Numa decisão sem precedentes, o governo de Joe Biden decidiu hoje apoiar a ideia de suspender patentes de vacinas e se alia aos países emergentes na OMC (Organização Mundial de Comércio).
A postura reflete uma mudança histórica na postura do governo norte-americano em relação à propriedade intelectual e deixa o Brasil como um dos poucos países no mundo a defender a posição de que patentes não devam ser quebradas e que as atuais regras do comércio são suficientes para lidar com a crise sanitária.
O gesto de Biden foi amplamente comemorado entre instituições. A OMS (Organização Mundial da Saúde) chamou a decisão de "monumental", enquanto seu diretor, Tedros Ghebreyesus, citou Biden como "exemplo de liderança internacional" e referência "moral".
No fim de 2020, sul-africanos e indianos apresentaram na OMC a proposta de que patentes de vacinas deveriam ser suspensas, enquanto a pandemia de coronavírus existisse. Na prática, isso permitiria que doses fossem produzidas por empresas de todo o mundo, aumentando o abastecimento ao mercado global e preços mais baixos.
Hoje, 1,1 bilhão de doses de imunizantes já foram administrados. Mas 80% deles estão apenas em países ricos e de renda média. Nos países mais pobres, apenas 0,3% das vacinas foram distribuídas.
Durante o governo de Donald Trump, porém, os Estados Unidos foram contra a proposta e garantiram o apoio do Brasil para também se recusar a aceitar a ideia, que ganhou a adesão de grande parte dos países em desenvolvimento. A postura brasileira rompeu com uma longa tradição de diferentes gestões de defender o acesso amplo a tratamentos, com a saúde se sobrepondo à economia ou às patentes.
Mas Biden, sob pressão inclusive de seu partido, optou por abandonar esse quadro, num duro golpe contra as grandes farmacêuticas.
O gesto pode modificar de forma profunda as negociações que, há seis meses, vivem um impasse na OMC. Mais de 60 países emergentes insistem que apenas a quebra de patentes pode garantir uma maior produção de vacinas. Mas o projeto patinava e, nesta quarta-feira em Genebra, uma vez mais uma reunião terminou sem um avanço real.
Do lado da indústria farmacêutica, o argumento é de que a patente não é o obstáculo e, com milhões de dólares gastos em lobbistas, o setor tentou garantir a ideia de que só acordos voluntários de transferência de tecnologia poderia mudar o cenário de abastecimento.
As multinacionais ainda argumentavam que, sem patentes, os incentivos para a produção e inovação seriam abalados.
Em nota publicada nesta quarta-feira, a Federação Internacional da Indústria Farmacêutica criticou Biden e disse que a suspensão de patentes não vai resolver "os reais desafios" da vacinação. "Trata-se da solução fácil - e errada - para um problema complexo", disse. "Suspender patentes não vai ampliar a produção", insistem.
De acordo com o setor privado, mais de 200 acordos de transferência de tecnologia foram já fechados e a crise exige "soluções pragmáticas", exatamente o mesmo termo usado pelo governo de Jair Bolsonaro em reunião nesta semana na OMC.
Itamaraty mantém silêncio; Lula aplaude
Por enquanto, o Brasil continua apoiando a ideia de que a quebra de patentes não deva ser adotada, já que minaria a inovação e o interesse das grandes multinacionais. Numa reunião na OMC nesta quarta-feira, a delegação do Itamaraty voltou a citar a importância da transferência de tecnologia. Mas não demonstrou apoio à suspensão de patentes e insistiu que todo o processo precisaria estar baseado em uma "cooperação" com as empresas e atos "pragmáticos".
Procurado, o Itamaraty ainda não se pronunciou diante da decisão.
Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi às redes sociais para "saudar a decisão histórica" de Biden. "Desde 2020, defendemos que a suspensão do monopólio das patentes é a única saída para a vacinação em massa de toda a população. A saúde não pode ser mercantilizada. A humanidade vai vencer esse vírus", disse.
A organização Médicos Sem Fronteiras classificou a declaração do governo dos EUA como "um passo fundamental na direção do consenso de que proteger vidas é mais importante do que proteger direitos de propriedade intelectual". "É também uma oportunidade para que países como o Brasil retomem sua posição histórica de colocar a saúde pública acima dos interesses comerciais", disse Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso da entidade.
"As soluções voluntárias que o Brasil tem defendido não estão à altura do desafio de oferecer vacinação universal contra a covid-19 e precisam ser complementadas por estratégias como a suspensão dos direitos de propriedade intelectual na OMC", opinou Carvalho. "Suspender as patentes é essencial para reverter o cenário atual de desigualdade no acesso a vacinas e outras tecnologias essenciais de saúde."
A entidade Conectas Direitos Humanos também deixou claro que o isolamento do Brasil é cada vez mais evidente. "Com sua postura, o governo Bolsonaro continua contribuindo para ampliar ainda mais a catástrofe humanitária que estamos vivendo", disse a diretora-executiva da organização, Juana Kweitel. "Felizmente, ele está ficando cada vez mais isolado nessa posição. A virada dos Estados Unidos pode ser fundamental para reduzir a desigualdade abissal no acesso as vacinas entre os diferentes países", completou.
Pressão sobre países
Europeus, japoneses, suíços e outros continuam a se opor à ideia da suspensão de patentes. Mas o gesto americano coloca uma enorme pressão para que esses países também mudem de opinião publicamente e nas negociações.
Num comunicado que causou um terremoto entre diplomatas, a negociadora comercial chefe dos EUA, Katherine Tai, disse que seu governo era "a favor da suspensão (de patentes) na OMC" e que era "a favor do que os autores da proposta estavam tentando atingir, que é maior acesso, maior capacidade de fabricação e mais doses nos braços".
De acordo com a Casa Branca, o governo americano agora fará parte das negociações em Genebra para que um acordo seja atingido. Washington admite que não será um processo fácil.
Ações das empresas desabaram
Assim que o anúncio foi feito, as ações de empresas do setor desabaram. A proposta americana, porém, não é tão ampla quanto a dos países emergentes, que pedem a suspensão de patentes para todos os produtos, equipamentos e tecnologias que possam ser usadas contra a covid-19. A Casa Branca quer tal princípio apenas para vacinas.
A partir da próxima semana, negociações neste sentido vão ser iniciadas, rompendo um impasse que durava desde outubro de 2020.
Enquanto milhões de pessoas continuam aguardando por vacinas, as empresas do setor já estimam ganhos avaliados em bilhões de dólares. Só a Pfizer prevê US$ 26 bilhões em receita, o mesmo valor que seria necessário para vacinar todos os africanos.