Diretriz da UE, que ainda será votada no Parlamento, reconhece que entregadores, motoristas e outros trabalhadores de plataformas digitais possuem vínculos de emprego e exige que tenham condições mínimas
Manuel V. Gómez, El País Brasil, 9 de dezembro de 2021
A precarização do emprego nas plataformas digitais levou a União Europeia a tentar regulamentar esse setor. A Comissão Europeia aprovou nesta quinta-feira uma medida que estabelece condições trabalhistas mínimas em todo o bloco, começando pelo mais polêmico e o que mais disputas tem provocado nos tribunais: trabalhadores a serviço de empresas aplicativos são assalariados ou autônomos? São assalariados, diz a nova norma, se houver algum tipo de controle por parte da empresa. Isto pode levar à regularização de 4,1 milhões de falsos autônomos, segundo o Poder Executivo da UE. A nova norma segue o rastro de uma nova lei na Espanha para os entregadores aprovada neste ano. Ambas partem da chamada presunção de vínculo trabalhista e não se restringem apenas ao setor das plataformas digitais de entregas, pois seu objetivo é alcançar todos os setores.
O primeiro objetivo, evidentemente, é esclarecer um aspecto que gerou uma grande quantidade de disputas trabalhistas e ações judiciais nos últimos anos. Segundo a comissão, nos últimos tempos houve mais de 100 sentenças que, “em sua maioria”, concluíram que os trabalhadores eram falsos autônomos. Para o comissário (ministro europeu) do Emprego, Nicolas Schmidt, as plataformas não estavam tentando violar a norma, apenas aproveitavam “as ambiguidades” legais.
O outro elemento destacado na diretriz comunitária, a ser submetida agora ao Parlamento Europeu e ao Conselho dos 27 países, determina que os Estados obriguem por lei as plataformas a informar aos seus trabalhadores —tanto assalariados como autônomos— sobre os algoritmos usados para controlar seu rendimento, e que se assegure que a supervisão final recairá sobre uma pessoa, e não sobre a tecnologia. Há um terceiro ponto que representa uma novidade importante: a obrigatoriedade de que estas empresas declarem o número de trabalhadores que têm, sob qual regime de contribuição previdenciária e com que nível de proteção social.
“Ninguém quer frear o crescimento das plataformas digitais”, aponta Schmidt em um encontro com o EL PAÍS e outros quatro veículos europeus, “mas é necessário que estes trabalhadores tenham direitos sociais”. É preciso haver, no entender do socialista luxemburguês, “mínimos comuns” na proteção trabalhista. Além do aspecto social —“Não se pode oferecer um novo serviço sem direitos sociais (salário mínimo, proteção...)”—, ele acrescenta outro motivo: a concorrência desleal. “Não se pode criar um setor que concorra com os supermercados, por exemplo [nos serviços de entrega], e os que trabalham para ele não tenham direitos”, argumenta.
Assim como no Brasil, a imagem cotidiana de entregadores com uma mochila nas costas distribuindo comida ou cumprindo tarefas é observada diariamente nas ruas de Madri, Paris, Bruxelas, Londres. São a fotografia mais reconhecível —e muitas vezes precarizada— da revolução trabalhista provocada pelas plataformas digitais. Mas vão além do setor de entrega de comida e encomendas: chegaram à tradução de idiomas, às aulas particulares, à advocacia e ao transporte urbano (Uber e Cabify, entre outros). Bruxelas se atreveu a pôr cifras num fenômeno que, por enquanto, tem dados muito escorregadios: calcula que haja na Europa entre 235 e 355 plataformas digitais que dão emprego a 28,1 milhões de trabalhadores, assalariados ou autônomos, que chegarão a ser 43 milhões em 2025.
Salário mínimo de referência
A enxurrada de cifras não para numa quantificação global do fenômeno. O Executivo do bloco europeu chega também a pôr números na precariedade quando aponta em um estudo que 55% desses trabalhadores ganham menos por hora trabalhada do que o valor estabelecido como salário mínimo no país correspondente. Ou quando aponta que esse coletivo trabalha 8,9 horas por semana sem receber remuneração alguma (esperando encomendas), contra 12,9 horas remuneradas. Também aponta que 5,5 milhões de pessoas estão submetidas a algum tipo de controle por parte da empresa e, portanto, poderiam ser falsos autônomos, embora reduza a 4,1 milhões o número dos que poderiam ser reclassificados.
Para detectar esse “certo controle” das plataformas, Bruxelas fixa vários critérios. Um deles é se o trabalhador tem poder de negociar a remuneração, já que, se não existir essa opção, pode entender-se que não há autonomia. À mesma conclusão se chega se houver supervisão eletrônica ou se o profissional sofrer consequências ao recusar tarefas. Dessa forma, a comissão abre mão de estabelecer uma definição de trabalhador assalariado, uma competência exclusiva dos Estados, mas dá ferramentas para identificá-los.
O passo dado nesta quarta-feira em Bruxelas é apenas o começo do processo legislativo que, provavelmente, não será pacífico nem isento de pressões. As plataformas digitais advertiram, como já fizeram na Espanha, que uma regulação deste tipo castigará os empregos. Algumas, como a Free Now, que na Espanha é um serviço de táxis, mas em outros países se parece mais com o Uber, queixa-se da incerteza jurídica, pois entende que as regras da comissão poderão ser eventualmente utilizadas pelos tribunais para revisar a situação trabalhista dos afetados.